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Wayuri, mídia indígena na Amazônia profunda

No alto Rio Negro, onde não há sequer banda larga, jovens de oito etnias semeiam boletins, podcasts, correspondentes em cada rio, um canal no Youtube. Produzem em sete idiomas, falam para 23 povos. Enfrentam a pandemia e o pandemônio .

Por Juliana Radler, no ISA

Em novembro de 2017, no município mais indígena do Brasil, São Gabriel da Cachoeira (AM), um grupo de 17 jovens de oito etnias se reuniu para formar a Rede de Comunicadores Indígenas do Rio Negro, a Rede Wayuri. Para marcar a estreia, o maior artista da região, Feliciano Lana, do povo Desana, morto esse ano aos 84 anos pela Covid-19, desenhou seu símbolo: a imagem de um comunicador rionegrino animado falando no microfone em frente à montanha Bela Adormecida, cartão postal do Alto Rio Negro.

Wayuri em nheengatu significa trabalho coletivo, mutirão. Nheengatu, ou língua geral, é uma das quatro línguas indígenas co oficializadas em São Gabriel, município brasileiro com maior número de línguas oficiais além do português. Nesse palco multilinguístico, os comunicadores poliglotas dominam o português e em alguns casos até cinco idiomas indígenas, sem falar no espanhol, falado pelos hermanos da fronteira – Venezuela e Colômbia.

O nome Wayuri também é sinônimo de comunicação para os povos do Rio Negro. Ray Benjamim, da etnia Baniwa, comunicador da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn), conta que Wayuri é o boletim impresso produzido há mais de 20 anos pela Federação que representa os 23 povos indígenas da região e 750 aldeias. “Os primeiros boletins Wayuri foram impressos para divulgar os diários oficiais com a homologação das terras indígenas”, lembra Ray.

à frente do setor de Comunicação da Foirn, Ray se interessou pela área de artes visuais, fotografia, línguas e comunicação em geral quando ainda estudava na escola Pamáali, que foi referência de educação escolar indígena intercultural, situada na Terra Indígena Alto Rio Negro. Hoje, líderes Baniwa se articulam para reerguer a sede, que está em ruínas por falta de investimentos públicos na educação como um todo e, em particular, na educação escolar indígena.

Esse caminhar entre dois mundos – a interculturalidade – é uma característica da Rede Wayuri, que em novembro completa três anos. Ampliada em relação à sua criação, hoje conta com 26 comunicadores de 10 povos. Em três anos a Wayuri produziu mais de 50 boletins informativos (podcasts) que circulam pelos celulares, montou rádios poste, promoveu mobilizações sociais e oficinas de arte, enviou centenas de informes pela radiofonia e redes sociais. Do Spotify ao carro de som, os repórteres Wayuri dão um jeito de transmitir suas notícias. E agora pretendem chegar ao YouTube.

Atenção, parente!

E por falar em carro de som, foi na fase mais aguda da pandemia de Covid-19 na região, nos meses de abril, maio e junho, que os comunicadores usaram o carro de som para conscientizar a população sobre os riscos da doença. Falando nas línguas co-oficiais e em português, rodaram todos os bairros da cidade e zona rural alertando a população.

Somando os informativos em áudio, as cartilhas nas línguas indígenas e o envio diário de informações pela radiofonia da Foirn, o famoso canal 790 do Alto Rio Negro, os comunicadores foram fundamentais para ajudar as autoridades sanitárias a educar e informar a população. O trabalho rendeu ao coletivo o título da ONG francesa Repórteres Sem Fronteiras de “Heróis da Informação”, junto com profissionais de imprensa mundial, como o correspondente do New York Times na China, Chris Buckley, que passou 76 dias em Wuhan no pior momento da pandemia. Devido às reportagens, Chris foi forçado a deixar a China após o período e pela primeira vez em 24 anos seu visto não foi renovado.

“Alguns se arriscaram tanto para informar sobre a realidade da pandemia que perderam suas vidas, enquanto outros ainda estão desaparecidos ou atrás das grades”, constata o secretário geral da RSF, Christophe Deloire. Processados, agredidos, insultados, muitos pagaram um alto preço por defender o direito à informação e lutar contra os boatos e a desinformação que agravam as consequências da crise sanitária. Esses novos heróis nos lembram de que o jornalismo pode salvar vidas. Eles merecem toda a nossa atenção e admiração.” Essa fala de Deloire exaltando o trabalho dos 30 profissionais e/ou grupos de mídia ao redor do mundo selecionados pela RSF está no site oficial da organização em Português.

Além desse mérito, a RSF selecionou a Rede Wayuri para integrar o Programa de Apoio ao Jornalismo, que reúne organizações de mídia independente de quatro estados brasileiros: Amazônia Real e Rede Wayuri (Amazonas); Ação Comunitária, Caranguejo Uçá e Marco Zero Conteúdo, de Pernambuco; Data Labe e Fala Roça, do Rio de Janeiro; Alma Preta e Nós, mulheres da periferia, de São Paulo.

Para a RSF, “estes oito veículos vêm exercendo papel decisivo na mobilização em torno da defesa dos direitos humanos e na divulgação da cultura periférica — tanto na sua diversidade de expressões culturais e artísticas, quanto na produção de conhecimento e representação política. A atuação de suas equipes, comumente, representa a garantia do direito à informação confiável para camadas da população que estão à margem dos processos de comunicação hegemônicos”, enfatiza a organização.

Saiba mais em: https://outraspalavras.net/outrasmidias/wayuri-midia-indigena-na-amazonia-profunda/

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