O surgimento, no céu, da Jararaca já não coincide com as chuvas. As cheias do rio Tiquié perderam a exuberância. O sol queima as frutas. Às margens do alto Rio Negro, encontro de muitas etnias debate: como preservar as culturas indígenas?
Por Ana Amélia Hamdan
É novembro e, em algumas comunidades no Rio Tiquié, na Floresta Amazônica, é como se fosse Ano Novo. Todo final de ano começa a contagem dos ciclos do calendário indígena da região: a constelação “Jararaca” aparece no céu, indicando que é época de cheia do rio por cerca de duas semanas. Depois de o fluxo de peixes diminuir, até quase escassear, ele em seguida cresce novamente. Entretanto, esse ciclo vem se alterando.
“A constelação aparece e o rio enche ainda, continua enchendo. Mas é diferente: começa a encher e para. Não enche mais do mesmo jeito. Fica mais difícil fazer os planejamentos de acordo com constelações. Era mais certinho”, lamenta o agente indígena de Manejo Ambiental (AIMA) do Instituto Socioambiental (ISA), Mauro Monteiro Pedrosa, da etnia Tukano.
Mauro denunciou a transformação dos ciclos anuais durante a IV Assembleia Eletiva do Departamento de Jovens Indígenas da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (DAJIRN/Foirn). E não foi somente ele que percebeu essas mudanças. Outros jovens reunidos na assembleia trouxeram relatos semelhantes. Segundo eles, os mais velhos confirmam que o sol está mais forte, a época de frutas se alterou e o comportamentos dos rios não é mais o mesmo.
O encontro aconteceu nos dias 5 e 6 de novembro, em São Gabriel da Cachoeira (AM), e reuniu adolescentes e jovens de diversas etnias, entre elas Tukano, Desano, Wanano, Yanomami, Baré, Dâw. O tema da assembleia foi: “Pandemia da Covid-19 e a Emergência Climática: Desafios para a Juventude Indígena do Rio Negro”. Foram escolhidos dois jovens que estarão à frente do DAJIRN/Foirn entre 2021 e 2024: são eles Elson Kene, de 27 anos, da etnia Baré e Gleice Maia, de 18 anos, da etnia Tukano.
Em sua apresentação, Mauro reforçou a necessidade de preservação da floresta. “Se a gente derrubar, o que as futuras gerações vão consumir? Nós não podemos derrubar. É preciso pescar só da maneira adequada. Falar do desenvolvimento sustentável é falar sobre o que a natureza nos oferece. Os peixes, as frutas silvestres. Para não acabar tudo isso, tem que usar de forma correta. Se não usar de forma correta, o que a futura geração vai ter?”, questiona.
Para Mauro, o impacto sobre o clima e, consequentemente, nos ciclos, vem da ação direta do homem. As consequências aparecem também na saúde das pessoas. Há relatos de dor de cabeça, mal estar, dor de barriga, diarreia, falta de ar, entre outros.
Coordenadora do DAJIRN/Foirn, Adelina Sampaio, da etnia Desana, explica que tanto a pandemia como a emergência climática estão impactando diretamente a vida dos jovens em seus territórios, conforme consultas feitas via lives e conversas. “Temos ouvido (…) sobre os impactos do desmatamento. Sabemos que o desequilíbrio no meio ambiente traz doenças. Não só Covid, mas dengue, malária”, lembra.
“Antes não era assim”
Adolescentes e jovens que participaram do encontro vivem em comunidades nos municípios de São Gabriel da Cachoeira, Santa Isabel do Rio Negro e Barcelos, muitas delas em área de difícil acesso. Como o território é extenso – apenas São Gabriel tem 110 mil quilômetros quadrados –, a percepção das alterações no clima varia de acordo com cada povo e localização da comunidade. Mas todos trazem os relatos preocupados dos mais velhos.
A adolescente Fabiana Castro Marques, de 16 anos, da etnia Dâw, é da comunidade Waruá, às margens do Rio Negro, no lado oposto à principal orla de São Gabriel da Cachoeira. A travessia de um lado a outro leva em média 10 minutos. Ela relata que já se cansou de ouvir a mãe dizer que o clima está mudando. “Minha mãe diz que as plantas morrem, que a chuva não vem no tempo certo”.
Liderança da comunidade Waruá, a professora Auxiliadora Fernandes, do povo Dâw, também fala que o sol está muito mais quente. “A gente planta frutas e, se a gente não cuidar, depois de três dias estão todas mortas. Abacaxi, açaí, maxixe – tudo murcha. Cobrimos com folha grande de sororoca para não morrer. Antes não era assim”, afirma.
Auxiliadora conta também que seu povo costumava observar o clima e as estações por meio da época de procriação de animais, como cutias e pacas. Entretanto, esses ciclos já não ocorrem com precisão. “Primavera era época de colher mel, vários tipos de mel. Verão era época de filhote de caça. Cada uma dessas estações têm seu significado. Mas não existe mais isso”, lamenta.
Saiba mais em: https://outraspalavras.net/outrasmidias/amazonia-jovens-indigenas-encaram-a-ameaca-climatica/
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