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Toda fome é uma decisão política

Por Thiago Lima

Imagine uma vala aberta com lixo radioativo.[2] Por décadas. Por séculos. Agora, imagine que existam tecnologia e recursos para isolar completamente este lixo radioativo, tornando-o inofensivo. Mas, imagine que isso não seja feito. Imagine que as empresas invistam seus recursos na produção de medicamentos e tratamentos para venda. Imagine que os governos comprem esses medicamentos, tratamentos e outras terapias, e que os distribuam… há décadas, mas não para todas as pessoas. Imagine que as pessoas, aquelas que possuam dinheiro, comprem estes tratamentos e medicamentos. Agora imagine as que não possuem dinheiro e que não tenham acesso aos benefícios do governo. Estas estão abandonadas por uma crueldade intencional, posto que existem recursos não utilizados para cuidar delas.

Não é preciso ser físico para saber que a radiação provoca efeitos terríveis. Desde a morte rápida, doenças que se arrastam pela vida, até a desorganização dos genes que serão transferidos para as próximas gerações. Não é preciso ser um gênio para saber que o solo e a água estarão contaminados, por muito tempo. Quanto mais tempo a vala continuar aberta, mais seus efeitos perniciosos – e as oportunidades de lucro e de controle político delas decorrentes – permanecerão disseminados. Com a Fome é a mesma coisa. Para dar apenas um exemplo: a deficiência de ferro torna as grávidas mais vulneráveis à morte e os fetos a diversos tipos de doença e malformações. Uma em cada três mulheres em idade reprodutiva no mundo ainda sofre com anemia (FAO, 2018, p.16). Estes são males sofridos por indivíduos, famílias e pelas sociedades famintas, transmitidos inclusive por vias hereditárias (Batista Filho, Souza, Bresani, 2008).

Agora, pare para pensar em todos os recursos que foram investidos para o desenvolvimento da tecnologia radioativa. Todas as possibilidades. Claro, há coisas boas e importantes ali. Não se trata de rechaçar os materiais radioativos por princípio – bem, como leigo, talvez seja, mas isso não importa – O que importa é que muitos recursos foram aplicados para desenvolver uma tecnologia radioativa e tratamentos a ela, sem resolver os problemas em definitivo. Este cenário assustador que conseguimos traçar com a radioatividade se torna menos terrível quando falamos da Fome. Mas, por quê?

Talvez seja porque as pessoas pensem na Fome como uma coisa que não existe concretamente. De fato, o lixo radioativo existe; os químicos tóxicos existem; mas a Fome não existe como algo concreto. Por outro lado, mesmo se seguirmos o conselho do argentino Martin Caparrós (2016) e pensarmos que a Fome não existe: que o que existe são pessoas famintas; mesmo assim, de algum modo, as pessoas famintas não são uma preocupação imediata e urgente.

Isso não é à toa. Foram séculos de trabalho intenso e incansável para isolar as pessoas famintas e para anestesiar permanentemente a sociedade da dor que pode ser ter empatia com quem tem fome. Foram necessárias revoluções industriais e a disseminação global de um sistema social – o capitalismo. Foi necessária a instauração de um sistema político internacional sob a mão pesada do colonialismo. Foi necessária a instalação estrutural do racismo como princípio hierarquizante da distribuição de recursos, sobretudo dos alimentos (Patnaik, Patnaik. 2017; Almeida, 2019). Foram necessárias diversas medidas paliativas e diversos sistemas de crenças para que as pessoas e os governos, em geral, aceitassem os famintos como parte natural da paisagem. Principalmente as mulheres famintas, com suas filhas e filhos condenados, antes mesmo de concebidos, a terem seu potencial humano limitado como herança de gerações de mães subnutridas. Foram necessárias instituições maleáveis e adaptáveis às elites e populações, em diversos tempos e espaços, para que as pessoas famintas, enquanto tragédia – repito –, se tornassem parte natural da paisagem. Lamento, mas é a vida, dizem.

Saiba mais em: https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Direitos-Humanos/Toda-fome-e-uma-decisao-politica/5/49838

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