O filósofo, psiquiatra e militante revolucionário Frantz Fanon foi uma figura-chave na luta contra o colonialismo europeu. O pensamento inovador de Fanon sobre o racismo e sua relação com a opressão de classe ainda tem muito a nos ensinar atualmente.
Por Peter Hudis / Tradução Paulo de Tarso
Os protestos renovados contra o racismo e a brutalidade policial durante os últimos dois anos nos EUA deram novo ímpeto ao pensamento sobre a natureza do capitalismo, sua relação com o racismo e a construção de uma alternativa a ambos. Poucos pensadores falam mais diretamente sobre essas questões que Frantz Fanon, o filósofo, psiquiatra e revolucionário martinicano, que é amplamente considerado o principal pensador de raça e racismo no século XX.
Fanon vivenciou diretamente o domínio colonial francês, do Caribe ao norte de África, e utilizou essa experiência no seu trabalho intelectual. Ele desempenhou um papel ativo no movimento revolucionário argelino que lutava pela independência na década de 1950, mas advertiu que Estados africanos independentes simplesmente substituiriam o sistema colonial por uma burguesia nacional, a menos que seguissem o caminho da revolução social.
Alguns dos principais trabalhos de Fanon estão disponíveis em inglês há vários anos, mas a recente publicação de mais de seiscentas páginas de escritos de Fanon sobre literatura, psiquiatria e política anteriormente indisponíveis faz com que esse seja um momento adequado para reexaminar seu trabalho.
Desnaturalizando o racismo
Nascido em 1925, Fanon cresceu em uma Martinica sob controle francês nas Pequenas Antilhas. Originalmente, ele se via – assim como tantos outros nessa época – como francês, e não como “negro”. Isso começou a mudar quando ele se alistou como soldado nas Forças Francesas Livres durante a Segunda Guerra Mundial. A experiência fez com que ele dolorosamente levasse consigo para casa o racismo da “civilização” francesa.
Ao retornar à França no final de 1940, Fanon imergiu na literatura da Négritude, um movimento de orgulho negro de língua francesa. Ao mesmo tempo, ele absorveu os mais recentes avanços intelectuais europeus, tais como a fenomenologia, o existencialismo, a psicanálise e o marxismo. Isso o levou ao seu primeiro livro, publicado em 1952, quando Fanon tinha apenas vinte seis anos: Pele negra, máscaras brancas.
O grande avanço de Fanon em Pele negra, máscaras brancas foi analisar o racismo em termos sociogenéticos, negando qualquer base natural. A cor da pele pode ser determinada biologicamente, mas a forma como a visualizamos e interpretamos é condicionada por forças sociais que estão fora do nosso controle.
Esse fenômeno é tão pervasivo que raça e racismo se apresentam como fenômenos “naturais”, trans-históricos. Para Fanon, tal mistificação não pode ser superada por uma mera crítica esclarecida, pois está profundamente enraizada em realidades sociais objetivas e deve ser questionada nesse nível.
Nas últimas décadas, a “construção social da raça” se tornou tão cliché que as implicações radicais do pioneirismo teórico de Fanon são facilmente desconsideradas. Se a raça é construída socialmente, isso significa que relações sociais específicas são responsáveis pelo seu nascimento e perpetuação. Quais podem ser essas relações? Fanon insiste que se tratam de relações econômicas:
A verdadeira desalienação do homem negro implica uma dura tomada de consciência da realidade social e econômica […] a questão Negra não é apenas sobre Negros vivendo entre brancos, mas sobre Negros explorados, escravizados e desprezados por uma sociedade capitalista e colonial que porventura é branca.
No entanto, isso não significa que a raça seria secundária em relação à classe ou que a luta contra o racismo estaria subordinada à luta contra o capitalismo. Um fenômeno não é definido exclusivamente por suas origens. O racismo adquire vida própria e define os horizontes mentais dos indivíduos bem depois de alguns dos seus imperativos econômicos terem saído de cena. Desse modo, Fanon insistia que “o negro deve lutar em dois níveis”, o objetivo e o subjetivo. Qualquer “libertação unilateral é falha, e o pior erro seria acreditar que a dependência mútua entre eles é automática”.
Infelizmente, esse “erro” caracterizava os tipos dominantes de marxismo na época de Fanon: eles viam o racismo, quando muito, como uma consideração secundária, ao mesmo tempo em que falhavam na elaboração de uma teoria marxista crível da racialização. Por essa razão, apesar de sua firme oposição ao capitalismo, Fanon nunca se associou a qualquer tendência marxista existente. Sylvia Wynter sintetiza a posição inovadora de Fanon: “a solução deve ser alcançada tanto no nível objetivo do socioeconômico como no nível da experiência subjetiva, da consciência, e, dessa maneira, da ‘identidade’”.
De objeto a sujeito
Para Fanon, a afirmação positiva da identidade era um momento crítico no desenvolvimento da autoconsciência. A libertação do povo negro enquanto sujeito dependia da recuperação de um senso de individualidade e dignidade que fora roubado pelo “olhar branco”. Ter orgulho dos atributos raciais das pessoas negras denegridas [1] pela sociedade seria uma forma crucial de desafiar a naturalização das relações sociais que fundamentavam o racismo.
Fanon desenvolveu esse ponto de vista através de um engajamento crítico com a Fenomenologia do espírito de Hegel. Ele sustentou que o reconhecimento mútuo era impossível em uma sociedade definida pelo olhar branco, uma vez que isso significava que as pessoas negras [2] eram vistas como coisas: “descobri que era um objeto em meio a outros objetos”.
Essa era a questão central para Fanon: o racismo não somente priva suas vítimas de recursos econômicos e status social, ele também as desumaniza e despersonaliza, fazendo com que as pessoas negras “habitem uma zona de não-ser, uma região extremamente árida e estéril, um aclive destituído de tudo o que é essencial para que um genuíno novo ponto de partida possa emergir”. Isso produz um complexo de inferioridade, uma percepção de se ter menos valor como ser humano. Aqueles que ele chamou de “condenados da terra” somente poderiam transcender essa questão pela garantia do reconhecimento da própria humanidade, baseada em uma afirmação positiva de suas características raciais ou nacionais.
O reconhecimento é um termo muito mal-entendido no trabalho de Fanon. No pensamento político moderno, a frase política de reconhecimento se refere ao mútuo reconhecimento de “direitos iguais” entre cidadãos. Todas as relações contratuais, seja na política, seja na economia, envolvem o reconhecimento dos direitos da outra parte. Sem dúvida Fanon não falava de reconhecimento nesse sentido.
Ele não tinha qualquer ilusão de que o racismo seria superado com reivindicações de igualdade formal, pois, como ele percebeu, as pessoas negras não eram consideradas totalmente humanas e, desse modo, eram excluídas do contrato social. Ele criticava aqueles que almejavam reconhecimento na sociedade existente, vendo essa atitude como um esforço para “se tornar branco” e as pessoas que a adotavam, como sujeitas a um complexo de inferioridade.
Fanon visava um tipo bem mais profundo de reconhecimento, um que reconhecesse a dignidade humana e o valor dos marginalizados e oprimidos. Atingir esse objetivo, ele afirmava ousadamente, “implicava reestruturar o mundo”.
Dessa maneira, a abordagem de Fanon oferece uma alternativa à forma como os debates sobre raça, classe e identidade são normalmente conduzidos na esquerda hoje. Ele se opunha ao tipo de revolucionarismo abstrato que concebia o proletariado como um guardião da libertação, enquanto minimizava a importância da luta contra o racismo. Ele também rejeitava a versão de política identitária que procurava autoafirmação e consolo dentro da estrutura das relações capitalistas existentes. Isso era particularmente evidente no seu trabalho como psiquiatra.
Socioterapia
Fanon começou a estudar psiquiatria em Lyon no final da década de 1940 e inicialmente submeteu o texto de Pele negra, máscaras brancas como sua tese de doutorado em 1951. Os seus supervisores acadêmicos prontamente rejeitaram o trabalho por seu conteúdo inconveniente. Fanon respondeu transformando-o em um estudo técnico sobre as implicações psiquiátricas da ataxia de Friedreich, uma degeneração neurológica da medula espinhal.
A tese, que foi publicada em inglês apenas recentemente, é o último lugar onde se esperaria encontrar uma discussão sobre relações sociais, mas a sacada de Fanon a respeito do caráter sociogenético do racismo também pode ser observada nela Ele insistiu que as doenças mentais, embora possam ter origens orgânicas, eram “sempre psíquicas na sua patogenia”.
Fanon se recusou até a reduzir doenças neurológicas aos seus componentes biológicos. Guiado em sua abordagem por um humanismo implacável, ele estava interessado no ônus psíquico que elas impunham ao indivíduo:
O ser humano [individual] deixa de ser um fenômeno a partir do momento em que ele ou ela encontra o rosto do outro, pois o outro me revela a mim mesmo; e a psicanálise, ao propor a reintegração do indivíduo louco ao grupo, estabelece-se como a ciência do coletivo par excellence. Isso significa que o ser humano saudável é um ser humano social, ou seja, a medida do ser humano são, psicologicamente falando, será sua maior ou menor integração perfeita ao socius.
Essa perspectiva guiaria Fanon pelos próximos oito anos em que ele passaria trabalhando em uma série de clínicas psiquiátricas, primeiro na França, depois na Argélia e na Tunísia, onde praticaria socioterapia, inicialmente sob a supervisão de François Toquelles. Isso significava liberar pacientes de condições de prisão e procurar reintegrá-los à sociedade.
Fanon e seus colegas utilizaram técnicas como a terapia ocupacional, fazendo com que os pacientes produzissem jornais ou peças e permitindo que interagissem entre si na instituição. Como parte do seu trabalho, Fanon ainda podia administrar drogas farmacêuticas e até empregar terapia de choque. Mas ele o fazia ao mesmo tempo em que almejava criar um ambiente humanista que tratasse o paciente como uma pessoa.
Uma abertura às possibilidades humanas embasava sua abordagem no trabalho, na psiquiatria e no papel que mais tarde desempenharia como ativista revolucionário. Sua tese citou um comentário de Jacques Lacan:
Saiba mais em: https://jacobin.com.br/2021/02/o-humanismo-revolucionario-de-frantz-fanon/
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