Da água provêm mitos e divindades. Ela convida-nos à contemplação e às memórias afetivas. Às crianças, basta a chuva ou uma mangueira para a felicidade plena. Matar ou privatizar rios é também sepultar uma fonte de bem-estar gratuito .
por Flávio José Rocha
“Tudo é água.” Esta frase atribuída a Tales de Mileto é considerada o marco inicial da filosofia ocidental. “Tales teria observado, segundo Aristóteles, que a água está presente em tudo o que cresce, em tudo o que é natural.” (BOLZANI FILHO, 2006, p. 105). Basta notar em quantas cosmogonias dos Povos Originários ela é a personagem principal em distintos lugares do planeta, aquela de onde surge a vida. Esta máxima filosófica, que a princípio pode nos levar para o campo da matéria, deve nos lembrar que a palavra “tudo” da frase dita por Tales também faz referência a imaterialidade da água. Um outro filósofo, o francês Gaston Bachelard (2013 p. 15), escreveu em seu livro A água e os sonhos: ensaio sobre a imaginação da matéria que “A água é matéria que vemos nascer e crescer em toda parte.” Talvez por isso ela seja utilizada como metáfora para situações boas e más, revelando como nós a vemos de forma polissêmica e onipresente.
Insubmissa, incontrolável, geradora e mantenedora da vida, a água é também causadora de morte por sua falta e por isso ela é disputada e amada. Fonte de saúde e vetor de doenças, ela é “tratada” para o consumo humano enquanto torna-se depósito de lixo por ação destes mesmos humanos. Arma para vencer o inimigo ou para fazer amizades, ela sempre foi, de alguma maneira, um fio condutor para a sociabilidade, pois os chafarizes públicos, os lagos, os rios, os açudes e as fontes eram e são um ponto de encontro para os que lá se dirigem em busca deste líquido. Moeda de troca e novo território do capital internacional com seu apetite incontrolável, a água gera conflitos quando disputada ou paz quando partilhada. A lista para sua importância na história da evolução humana pode aumentar, mas paro por aqui para falar do que me levou a escrever este texto: a água como fonte de prazer e felicidade.
Sentida no corpo de quem é por ela tocado suavemente, traduzida em um sorriso da pessoa que dela emerge depois de um mergulho profundo ou na serenidade e contenteza de quem contempla a sua correnteza, a felicidade gerada pela água é uma experiência individual e única. Todas as pessoas já a sentiram em algum momento, mas as palavras que tenho ainda não alcançam a dimensão exata para defini-la. Sei que encontraremos descrições nos dicionários para a palavra felicidade, mas acredito que ela ainda é órfã de uma explicação convincente e completa por ser algo tão particular para cada ser humano. Então que cada uma, cada um que lê estes parágrafos se aposse de sua própria definição de felicidade e das memórias felizes proporcionadas pelas águas que tocaram os seus corpos.
A Hidrofelicidade
Esta reflexão surgiu inspirada no artigo La fluvioterapia, de autoria de um dos fundadores da Fundación Nueva Cultura del Agua1 e professor universitário, Francisco Javier Martinez Gil, que vem escrevendo sobre este assunto há alguns anos. Ele acredita que “En ese sentido, el poder emocional que nos transmite el agua tiene una magia especial.” (GIL, 2008, 230). Mas não é qualquer emoção que o professor tem como referência, aqui falamos da felicidade ao estarmos próximos, tocados ou imersos na água, algo que tem um poder curativo para as dores da alma e para mitigar as mazelas do cotidiano. É para onde tem água que milhões de pessoas se dirigem em seus momentos livres ou nos feriados, como se algo lhes sussurrasse que lá é um endereço certo para uma paz perdida na correria das cidades.
“Perto de muita água, tudo é feliz” sentenciou o autor de Grande Sertão Veredas. Sim, parece que quando estamos próximos aos corpos de água límpida, há um estado de calma que se apossa dos nossos corpos, transformado em estado de felicidade. Para além da necessidade física essencial para a sobrevivência, a conexão entre seres humanos e água parece algo atávico. É no mundo moderno industrial e urbano que esta relação começa a ter uma nova dinâmica. “Ao longo do século XX, cada vez mais a água foi sendo identificada com saneamento, energia, esgoto, indústria, irrigação e enchente.” (CORREIA; ALVIM, 1999. p. 20). No mundo neoliberal em que estamos forçados a viver ela até ganha o epíteto de recurso hídrico, um eufemismo para nos convencer de que é uma mercadoria, como quer nos persuadir os que defendem a sua mercantilização. Não seria a felicidade por ela emanada o maior argumento para frear a insanidade da sua posse pelo Mercado da Água?
Quanto custa um banho em um rio, um mergulho no mar, um banho de chuveiro com água quente depois de um dia estressante? E quanta felicidade e prazer nos proporcionam estes momentos. Para as crianças, em especial, a água é uma fonte inesgotável de prazer. Até mesmo uma mangueira aberta com a água escorrendo da cabeça aos pés é fonte de uma alegria imensurável. Sim, há mesmo algo que nos atrai para onde há água porque sabemos o quão prazeroso é contemplá-la ou tê-la em seu contato com a nossa pele.
Não é apenas o professor Gil que vem refletindo sobre a relação entre água e bem-estar mental. Na Europa há um grupo de pesquisadores e pesquisadoras de uma organização chamada BlueHealth2 que vem se dedicando a estudar esta relação. Percebam a sutileza do nome da organização, que significa Saúde Azul (em tradução livre), que se contrapõe a expressão Blue Gold ou Ouro Azul, que trata a água como mercadoria. Em uma matéria do jornal The Guardian3, os pesquisadores falam da importância dos Espaços Azuis (Blue Spaces), ou espaços com a presença de água. Eles chegaram à conclusão de que a ela exerce um efeito restaurativo na mente e nos corpos das pessoas que a contemplam, fazendo com que os seres humanos se sintam mais felizes quando estão em sua proximidade.
Saiba mais em: https://outraspalavras.net/descolonizacoes/hidrofelicidade-a-agua-como-fonte-de-prazer/
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