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Oculta, a África volta ao centro da globalização

Crônica e mapa de novo esquecimento. Cinco séculos após o início da expansão europeia, e da escravização de seus povos, continente está no fulcro do comércio mundial de mercadorias. Como o fato se deu. Por que não serve aos africanos

Por Antonio Gomes, Maíra Azevedo e Luana Lessa | Mapa: Igor Venceslau

Atividade vital para a economia mundial, mas discreta aos olhos de quem não pesquisa ou trabalha com o tema, a circulação internacional de mercadorias teve sua fragilidade exposta diante do encalhe de um enorme navio porta-contêineres no Canal de Suez, (Egito), em 23 de março. Apesar da localização explícita do fato em território egípcio, poucos se lembraram, em suas análises, do continente atingido.

Falou-se de Taiwan (origem da empresa operadora do navio), do Japão (origem da proprietária da embarcação) e de Rotterdam, na Holanda (porto ao qual o navio se dirigia). Mas as referências à África relegaram-na em geral a mera passagem – ou ainda pior, um obstáculo – entre a Ásia e a Europa. A realidade mostra o contrário. Por situar-se no entrecruzamento dos oceanos Atlântico e Índico, e também dos mares Vermelho e Mediterrâneo, o continente africano sempre foi central às dinâmicas mundiais de circulação, muito além dos romantizados périplos europeus de circum-navegação do continente.

Do ponto de vista histórico, é comum atribuir-se à África um lugar sempre marginal nas dinâmicas econômicas mundiais, quando muito considerando-a fragilmente integrada ao sistema capitalista internacional. Mas será isso mesmo? Seria apenas um detalhe acessório o papel da África no tráfico transatlântico de escravizados, assim como nas dinâmicas de circulação geradas a partir dele? E quando, abolido o tráfico, as potências europeias encheram o continente africano de ferrovias e portos para saquear seus recursos econômicos, tratava-se de algo secundário no sistema colonial? Seguramente não, e os franceses sabiam disso quando resolveram abrir, no Egito, uma passagem entre os mares Mediterrâneo e Vermelho na segunda metade do século XIX.

Mas engana-se quem pensa ser o Canal de Suez o único ponto do continente africano vital para a circulação mundial. Em relação à circulação marítima, é impossível pensar o transporte internacional de mercadorias sem falar, por exemplo, da sul-africana Cidade do Cabo (no limite entre o Atlântico e o Índico), da marroquina Tânger (porta de entrada do Mar Mediterrâneo) e do Djibouti (que abriga bases militares das maiores potências mundiais no estreito de Bab el-Mandeb). Já no caso da circulação aérea, é reconhecida a importância estratégica do chamado “estrangulamento” entre Dakar (Senegal) e Natal (Brasil), trecho mais estreito do Atlântico Sul, assim como do arquipélago de Cabo Verde, base histórica de voos militares e comerciais transatlânticos. Atualmente, cidades como Addis Abeba (Etiópia) e Joanesburgo (África do Sul) apresentam-se como hubs fundamentais na interligação aérea entre as Américas, a Ásia, a Oceania e a Europa, assim como também garantem a integração interna do próprio continente africano.

Uma vez mais, porém, estamos pensando em uma África de passagem – posição, aliás, natural a um continente localizado “no meio” da massa continental mundial –, mas o continente africano também é produtor de circulações, enviando e recebendo mercadorias de e para todos os cantos do globo. Será possível pensar o mundo hoje, por exemplo, sem o cobalto congolês, fundamental para qualquer circuito de produção de smartphones? Será possível pensar a indústria mundial sem a exportação dos minérios sul-africanos, ou então o agronegócio, inclusive o brasileiro, sem os fosfatos (fertilizantes) marroquinos?

Entre essas dinâmicas, o petróleo merece atenção especial, e sem minimizar a importância de países saarianos como Argélia, Líbia e Egito (entre outros), os olhos do mundo se voltam cada vez mais à região do Golfo da Guiné. O grande arco que vai da Costa do Marfim a Angola tem sido cada vez mais cobiçado por suas reservas de petróleo offshore de boa qualidade, grande quantidade e, não menos importante, de fácil acesso. A proximidade dessas áreas produtoras em relação aos Estados Unidos, por exemplo, sem nenhum chamado “gargalo” logístico em toda a rota de escoamento, levou o governo estadunidense a criar um comando militar para a África (AFRICOM) em 2008, pretensamente argumentando (como sempre) preocupação com o narcotráfico e a pirataria. Mais do que isso, porém, os EUA preocupam-se com a presença crescente da China na região, hoje a maior compradora do petróleo angolano e fortemente interessada na circulação africana como um todo.

Tal interesse chinês data ao menos dos anos 1970, quando da construção de uma ferrovia ligando a Zâmbia ao litoral da Tanzânia, na costa leste da África. A parte oriental do continente, aliás, é vista com muito cuidado pelo governo chinês, que atualmente financia obras ferroviárias e portuárias em países como Etiópia, Djibouti, Quênia, Sudão do Sul, Uganda e Ruanda, sem contar outras de circulação rodoviária em Moçambique, na costa do Índico. Para não ficar apenas no leste africano, e expandindo um pouco a ideia de circulação, vale mencionar a participação chinesa na construção de um cabo submarino de fibra ótica entre Fortaleza (Brasil) a Kribi (Camarões), incrementando a circulação de dados binários no Atlântico Sul e interligando-a a uma empreitada chinesa mais ampla, de implementação de fibra ótica por boa parte do hinterland africano.

Fechando este circuito – que tem a África como centro –, além de outros cabos de fibra ótica sul-atlânticos, existiam, antes da decretação oficial de pandemia pela OMS em 2020, seis voos comerciais entre cidades brasileiras e africanas, além de duas rotas marítimas principais (operadas por diferentes companhias de navegação) transportando mercadorias diretamente entre o Brasil e a África. Uma destas empresas, especificamente, navega do litoral brasileiro até Tânger (Marrocos) e dali integra-se a outra rota até Port Said (Egito), adentrando o Canal de Suez e fazendo-nos voltar a nosso ponto de partida.

Saiba mais em: https://outraspalavras.net/desigualdades-mundo/oculta-africa-volta-ao-centro-da-globalizacao/

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