Exame de um crime. Ao entregar estatal a especuladores, privatização aprofundará distorções do sistema elétrico. Lógica do lucro máximo despreza populações e natureza e extorque usuários para favorecer oligopólios. É preciso interrompê-la
Por Angélica de Freitas e Silva
Justo quando o Brasil atingiu a terrível marca de mais de meio milhão de vítimas de Covid-19 por irresponsabilidade do governo genocida e seus apoiadores, foi aprovada pelo Congresso Nacional a lei que autoriza a privatização da Eletrobras. Como fazem na dominação de territórios, milicianos assaltaram as instituições para destruí-las. Aliados a golpistas e controladores do poder político e econômico garantem a implementação de seu projeto fascista e entreguista, para a total colonização de tudo que resta. Eles têm pressa, e não começaram hoje.
O golpista Michel Temer abriu as porteiras da nova era de privatizações do Brasil. Sua breve passagem como o chefe do Executivo brasileiro é marcada por uma guinada silenciosa porém letal na natureza jurídica das empresas públicas do país. Essa guinada é feita por medidas discretas, como a retirada da cogência [obrigatoriedade] de determinados pareceres requisitados por lei complementar ou outro mecanismo legal específico. Por exemplo, durante a [indi]gestão Temer, uma alteração sutil e devastadora dos Planos Decenais de Expansão de Energia passa sem alarde: o Plano Decenal de Expansão de Energia (PDE17) 2017-2026, diferentemente dos oito PDEs lançados anteriormente, retira o caráter cogente-diretivo do documento, enfatizando o caráter meramente informativo dos planos decenais. A retirada da função diretiva como atributo e exercício da função de planejamento energético do Ministério de Minas e Energia – MME por meio do Conselho Nacional de Políticas Energéticas – CNPE e da Empresa de Pesquisa Energética – EPE é o meio do caminho para a privatização. Isso facilita a alteração de planos e a tomada de medidas rápidas que estejam mais vinculadas às flutuações de mercado. A principal consequência desses desmontes é o gérmen do sui generis fascismo-entreguismo do governo Bolsonaro.
Há muitos motivos por trás dessa urgência em abrir mão da Eletrobras. Ao cair atirando, a gangue que derrama sangue, seiva e lama pelo país pretende fazer o maior número possível de transações econômicas antes da aguardada prisão dos integrantes da familícia. Privatizar a Eletrobras é fundamental para a estruturação de um projeto de “retomada da economia no pós-pandemia”. Os liberais que rondam a cadeira presidencial mal podem esperar para implementarem suas cínicas políticas de austeridade pelo “desenvolvimento econômico do país”. E é claro que precisa de energia e infraestrutura pra isso. Mas por que a Eletrobras?
O Brasil é o maior produtor e distribuidor de energia elétrica da América Latina, ocupando a quinta posição no ranking internacional dos países mais represados (CIGB 2018). O país é responsável pelo fornecimento de eletricidade, petróleo e gás a alguns dos países vizinhos da América do Sul (Eletrobras 2016).
Ademais, o Brasil é um grande player no setor elétrico global. De acordo com a EPE em seu Anuário Estatístico de Eletricidade (MME e EPE 2018), no ano-base de 2017, o Brasil é classificado como o sétimo maior consumidor de eletricidade do mundo, o oitavo do mundo em capacidade instalada de geração de eletricidade, e ficou em terceiro lugar no mundo em geração de hidroeletricidade. A tabela abaixo traz o ranking da Aneel das maiores empresas de geração de energia elétrica do Brasil.
A maior empresa de geração de energia elétrica do Brasil é a holding Eletrobras. Da mesma forma que a Petrobras, as ações da Eletrobras são negociadas no mercado internacional. A estrutura acionária da empresa é dividida em ações ordinárias e preferenciais, configurando o capital social total da empresa. O governo federal brasileiro possui 51% das ações ordinárias, o mínimo necessário para tornar a Eletrobras uma empresa pública brasileira. O governo federal não possui ações preferenciais.
A propriedade do capital da Eletrobras reflete, no padrão de propriedade, sua natureza como empresa do setor privado vital e organicamente ligada aos mercados de capitais internacionais, com suas ações livremente negociadas nos mercados internacionais. O governo federal detém 41% do capital social da empresa e os outros 59% são divididos entre vários tipos de bancos de investimento, acionistas privados, corretores financeiros e assim por diante.
Isso ilustra que, apesar de o Brasil possuir empresas de destaque no negócio transnacional de energia, historicamente é dependente da internacionalização do capital. Como um reflexo da configuração de poder do sistema-mundo moderno-colonial, o Brasil é rico em recursos naturais e explora esse potencial, mas está acorrentado ao monopólio financeiro transnacional. A privatização do que resta das ações ordinárias da Eletrobras é a entrega de qualquer controle estratégico sobre a empresa.
As maiores empresas de geração de energia elétrica do Brasil estão no negócio de hidroeletricidade. De acordo com a EPE, a energia hídrica responde por 63% do total de eletricidade produzida no país (MME e EPE 2018, 58).
No topo da lista das maiores hidrelétricas estão Chesf, Furnas, Eletronorte e Norte Energia. A Chesf é uma subsidiária da Eletrobras, operando a maioria de seus empreendimentos de geração na região Nordeste do Brasil, e também é acionista da grande barragem hidrelétrica de Jirau (3.750 MW de capacidade instalada) na região Norte, estado de Rondônia, o maior empreendimento da Chesf. Furnas também é uma subsidiária da Eletrobras, operando negócios de geração hidrelétrica em todo o país, sendo a maior delas a hidrelétrica de Santo Antônio (3.570 MW de capacidade instalada), em Rondônia. A Eletronorte também é uma subsidiária da Eletrobras e seu maior empreendimento é a usina hidrelétrica de Tucuruí (8.300 MW de capacidade instalada) no estado do Pará. A Norte Energia é uma concessionária formada a partir de parcerias público-privadas para a construção e operação da grande hidrelétrica de Belo Monte, a maior hidrelétrica do país com capacidade instalada de 11.200 MW, localizada na área de proteção do Parque Nacional do Xingu, no Pará.
Grande produção de hidroeletricidade significa grandes represas construídas em áreas onde produzem profundos impactos, como a região Norte do Brasil, que compreende uma extensão da Amazônia brasileira. A região Norte responde por 16% da produção total de eletricidade do país. É a maior região do Brasil em extensão territorial e a menos povoada. A indústria é o maior consumidor de energia elétrica da região Norte, respondendo por 44% do total, enquanto o consumo residencial é de 27,5% da produção total (MME e EPE 2018, 89).
Para entender a problemática da construção de grandes hidrelétricas (ou o represamento) na região Norte, vamos observar de perto como os planejamentos de energia lidam com a questão. O Plano Decenal de Expansão de Energia 2015-2024 (PDE15), por exemplo, cita os projetos aprovados para a construção de grandes barragens hidrelétricas na região amazônica como coisas muito positivas (MME e EPE 2015, 82–86). O plano informa que a energia hidrelétrica produz ‘energia limpa’ (MME e EPE 2015, 392-94), ou seja, causa impacto ambiental mínimo e permite uma pegada de carbono positiva de acordo com os padrões internacionais de emissões de gases. O PDE15 ‘celebra’ a expansão da hidroeletricidade para atender às emissões de carbono desejadas.
Saiba mais em: https://outraspalavras.net/mercadovsdemocracia/venda-eletrobras-apagao-em-meio-as-trevas/
Comente aqui