O crítico literário, filósofo e militante socialista, Walter Benjamin, nasceu neste dia em 1892. Em sua memória, publicamos o ensaio concluído enquanto ele era cercado pelas hordas nazistas que o levaram à morte. Nele, Benjamin trabalha o conceito de História visto do único ponto de vista possível para um revolucionário: o dos oprimidos.
Por Walter Benjamin / Tradução: Sérgio Paulo Rouanet
Conhecemos a história de um autômato construído de tal modo que podia responder a cada lance de um jogador de xadrez com um contralance, que lhe assegurava a vitória. Um fantoche vestido à turca, com um narguilé na boca, sentava-se diante do tabuleiro, colocado numa grande mesa. Um sistema de espelhos criava a ilusão de que a mesa era totalmente visível, em todos os seus pormenores.
Na realidade, um anão corcunda se escondia nela, um mestre no xadrez, que dirigia com cordéis a mão do fantoche. Podemos imaginar uma contrapartida filosófica desse mecanismo. O fantoche chamado “materialismo histórico” ganhará sempre. Ele pode enfrentar qualquer desafio, desde que tome a seu serviço a teologia. Hoje, ela é reconhecidamente pequena e feia e não ousa mostrar-se.
“Entre os atributos mais surpreendentes da alma humana”, diz Lotze, “está, ao lado de tanto egoísmo individual, uma ausência geral de inveja de cada presente com relação a seu futuro”. Essa reflexão conduz-nos a pensar que nossa imagem da felicidade é totalmente marcada pela época que nos foi atribuída pelo curso da nossa existência.
A felicidade capaz de suscitar nossa inveja está toda, inteira, no ar que já respiramos, nos homens com os quais poderíamos ter conversado, nas mulheres que poderíamos ter possuído. Em outras palavras, a imagem da felicidade está indissoluvelmente ligada à da salvação.
O mesmo ocorre com a imagem do passado, que a história transforma em coisa sua. O passado traz consigo um índice misterioso, que o impele à redenção. Pois não somos tocados por um sopro do ar que foi respirado antes? Não existem, nas vozes que escutamos, ecos de vozes que emudeceram? Não têm as mulheres que cortejamos irmãs que elas não chegaram a conhecer? Se assim é, existe um encontro secreto, marcado entre as gerações precedentes e a nossa. Alguém na terra está à nossa espera.
Nesse caso, como a cada geração, foi-nos concedida uma frágil força messiânica para a qual o passado dirige um apelo. Esse apelo não pode ser rejeitado impunemente. O materialista histórico sabe disso.
Ocronista que narra os acontecimentos, sem distinguir entre os grandes e os pequenos, leva em conta a verdade de que nada do que um dia aconteceu pode ser considerado perdido para a história. Sem dúvida, somente a humanidade redimida poderá apropriar-se totalmente do seu passado.
Isso quer dizer: somente para a humanidade redimida o passado é citável, em cada um dos seus momentos. Cada momento vivido transforma-se numa citation à l’ordre du jour – e esse dia é justamente o do juízo final.
Lutai primeiro pela alimentação e pelo vestuário,
e em seguida o reino de Deus virá por si mesmo
Hegel, 1807
Aluta de classes, que um historiador educado por Marx jamais perde de vista, é uma luta pelas coisas brutas e materiais, sem as quais não existem as refinadas e espirituais. Mas na luta de classes essas coisas espirituais não podem ser representadas como despojos atribuídos ao vencedor.
Elas se manifestam nessa luta sob a forma da confiança, da coragem, do humor, da astúcia, da firmeza, e agem de longe, do fundo dos tempos. Elas questionarão sempre cada vitória dos dominadores. Assim como as flores dirigem sua corola para o sol, o passado, graças a um misterioso heliotropismo, tenta dirigir-se para o sol que se levanta no céu da história.
O materialismo histórico deve ficar atento a essa transformação, a mais imperceptível de todas.
Averdadeira imagem do passado perpassa, veloz. O passado só se deixa fixar, como imagem que relampeja irreversivelmente, no momento em que é reconhecido.
“A verdade nunca nos escapará” – essa frase de Gottfried Keller caracteriza o ponto exato em que o historicismo se separa do materialismo histórico. Pois irrecuperável é cada imagem do passado que se dirige ao presente, sem que esse presente se sinta visado por ela.
Saiba mais em: https://jacobin.com.br/2021/07/sobre-o-conceito-de-historia/
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