Um roteiro para desafiar o urbanismo hostil dos homens brancos. Contra a especulação imobiliária, Moradia Pública e aluguéis solidários. Frente à opressão, redesenhar o modelo de casas para socializar o cuidado e as tarefas domésticas
Por Vanesa Valiño | Tradução: Rôney Rodrigues
Em fevereiro deste ano, Aliya Hamid Rao, socióloga da London School of Economics, publicou um estudo interessante sobre a distribuição de espaços domésticos em casais heterossexuais durante a pandemia. Assim, os locais ideais para trabalhar, como salas e escritórios separados, eram reservados para o homeoffice dos homens. E as áreas comuns e corredores, como a cozinha ou a sala de jantar, para as mulheres. Essa localização significava que as mães, ao contrário dos pais, trabalhavam apenas um terço do dia, sem interrupção.
A distribuição desigual de espaços – e tempos – entre casais heterossexuais não é um pacto de casais, nem se refere exclusivamente à pandemia. Tampouco é uma frivolidade. O objetivo deste artigo é justamente analisar a discriminação sofrida pelas mulheres tanto para ter uma casa como para usufruí-la. Feito o diagnóstico, anotam-se algumas das respostas que começam a ser vislumbradas em Barcelona.
Num livro essencial, Mulheres, casas e cidades, Zaida Muxí aponta que a moradia é o lugar onde começa a socialização e são desenvolvidas as primeiras relações entre os gêneros. Assim, enquanto para alguns a casa é um local de descanso, para muitas mulheres é apenas mais um local de trabalho. Na medida em que os comportamentos dos casais heterossexuais não mudaram tanto, a distribuição física e o uso das casas tiveram pouca variação. As escuras e minúsculas cozinhas e lavanderias que só admitem uma pessoa continuam a ser majoritárias, e um dos quartos concentra iluminação e metros quadrados, enquanto os demais cômodos são relegados à mínima expressão.
Em termos gerais, a marginalização dos lugares destinados às tarefas domésticas, e a sua existência individual, dificilmente é questionada. Daí as abundantes manchetes: Cozinhas maiores para acabar com o machismo: a polêmica medida do País Basco; O governo basco quer cozinhas maiores para os homens cozinharem; O governo basco obriga a ampliação das cozinhas para “combater o machismo” – o que gerou a ampliação de alguns metros quadrados do tamanho mínimo estabelecido para as cozinhas, através de políticas promovidas pelo governo basco em 2019.
Essa falta de consideração pelo trabalho desempenhado pelas mulheres tem ampla repercussão dentro e fora de casa. Apesar das melhorias nos últimos anos, a disparidade salarial na Espanha significa que as mulheres ganham em média 500 euros por mês a menos [segundo o IBGE, em 2019, o salário médio das mulheres brasileiras ficou em R$ 2.112 enquanto o dos homens alcançou R$ 2.873, o que significa que elas ganharam 26,5% a menos do que eles]. Além disso, a super-representação, especialmente de mulheres negras e migrantes, no trabalho doméstico e de cuidados, no turismo e no setor de alimentação, tem levado alguns lugares a falarem em “she-cessão”, em oposição à “man-cessão”, a última grande recessão de 2008, caracterizada pelo desemprego masculino.
Em um país com quase nenhum estoque de moradias públicas e com pouco ou nenhum controle do mercado privado, a marcada precariedade econômica das mulheres é um obstáculo difícil de ser solucionado. Em particular, a situação das mulheres chefes de família que vivem de aluguéis é alarmante. No caso delas, de acordo com dados do Eurostat, a vulnerabilidade habitacional é superior a 50% e geralmente compromete o acesso a outras necessidades básicas, como alimentação ou vestuário.
Uma fase particularmente preocupante é a velhice. Na Espanha, mesmo sendo um dos países com uma das maiores taxas de envelhecimento do mundo, os idosos são considerados um fardo. Esse etarismo afeta as mulheres de forma mais intensa devido à sua marcada precariedade econômica, ao peso dos cuidados que são obrigadas a suportar e aos que elas próprias requerem à medida que vivem mais. Além disso, os desejos e as capacidades das mulheres mais velhas estão mudando. A vontade de viver suas próprias vidas e o retumbante fracasso de residências exigem novas políticas habitacionais.
Dinheiro, (tempo) e um quarto só meu
“Uma mulher deve ter dinheiro e um quarto próprio”, disse Virginia Wolf, em 1929. Mais de 90 anos depois, as dificuldades econômicas enfrentadas pelas mulheres continuam a comprometer seu direito à moradia digna. Diante disso, as respostas terão que ser necessariamente complexas.
Um primeiro esforço deveria se concentrar em ter informações disponíveis e garantir sua participação. Conhecer a magnitude da tragédia, as necessidades específicas das mulheres – negras, migrantes, solteiras, chefes de família, idosas, deficientes, com dependentes idosos, lésbicas, trans, etc – e garantir sua participação na formulação de política seria um primeiro passo essencial. Assim, se poderia analisar de uma perspectiva interseccional a carência habitacional das mulheres, o esforço econômico que elas devem realizar e a qualidade de suas casas. Paradoxalmente, apesar da relevância social que o feminismo adquiriu nos últimos anos, é notória a falta de informações e análises desagregadas da questão da habitação popular. Chegou ao ponto de que é mais fácil saber as nacionalidades dos compradores de casas e a rentabilidade do mercado de aluguéis, do que o impacto dos auxílios aluguel ou à reforma de moradias em termos de gênero.
Um segundo aspecto relevante diz respeito à presença da mulher na concepção e na condução das políticas habitacionais e na promoção de ações voltadas para a reversão do patriarcado. Nesse sentido, é verdade que na esfera pública está aumentando a quantidade de ministros, parlamentares e vereadores com responsabilidades habitacionais e também ministérios, secretarias e conselhos dedicados à igualdade de gênero e feminismo. Porém, na maioria dos casos, são mulheres de classe média e alta, brancas e não-imigrantes. Uma realidade que se distancia de uma população cada vez mais precária, mestiça e com diversas origens. Em qualquer caso, onde a desigualdade é claramente visível é no setor privado. Basta olhar os fóruns e debates com os principais corretores imobiliários para perceber a sobrerrepresentação dos homens “brancos” das classes média e alta.
As melhores práticas habitacionais mostram que um terceiro aspecto essencial para a melhoria do direito à moradia de pessoas precárias é corrigir os desmandos do mercado. De acordo com a Constituição, trataria de garantir a função social da habitação, sancionando a especulação e submetendo a riqueza ao interesse coletivo. Na prática, estaríamos falando de medidas generalistas à primeira vista, como proibir aluguéis abusivos e prolongar a duração dos contratos, evitar o acosso imobiliário ou facilitar a renovação e adaptação de edifícios. De forma efetiva, uma política habitacional preocupada com as condições de moradia das mulheres terá de regular o mercado privado de aluguéis. Como aponta Carme Trilla, uma espécie de seleção natural fez com que atualmente residam em aluguéis locatários de longa data, pessoas que não puderam comprar um imóvel e um pequeno setor por convicção. Ou seja, mulheres idosas locatárias, migrantes e jovens.
Em quarto lugar, é urgente melhorar as casas existentes em termos de energia e acessibilidade. A maior expectativa de vida das mulheres e a piora de seu estado de saúde as tornam mais vulneráveis à falta de elevadores ou à existência de banheiras [comuns na Europa, podem provocar acidentes domésticos]. Por outro lado, o mau isolamento e os altos preços da conta de luz fazem com que a escassez de energia as prejudique intensamente. Em Barcelona, dois em cada três usuários do programa de auxílio energético são mulheres, com a maioria das mulheres mais velhas morando sozinhas.
Saiba mais em:https://outraspalavras.net/cidadesemtranse/e-se-feministas-reinventassem-casas-ecidades/
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