Parece haver um caminho oculto entre dois dos países mais pobres do mundo: a principal potência mundial retira suas tropas de Cabul após quase vinte anos de ocupação e as envia a Porto Príncipe, alegando uma suposta ajuda pós-terremoto. Há algo errado com essas ”reconstruções” que nunca favorecem as populações locais
Por Pedro Brieger | Tradução de Victor Farinelli | Créditos da foto: (Joseph Odelyn/AP)
A distância entre o Afeganistão e o Haiti sugere que os dois países n não têm nada em comum. Suas histórias, culturas, idiomas, origens étnicas e características geográficas são muito diferentes. É difícil encontrar algo que tenha relação com os dois países. Mas há sim um elemento muito poderoso que os une: os Estados Unidos.
Enquanto a principal potência mundial retira suas tropas do Afeganistão, após quase vinte anos de ocupação, os soldados estadunidenses começam a chegar… a voltar ao Haiti. Agora, alegam que o objetivo é levar ajuda humanitária para o país, sacudido recentemente por um terremoto, no dia de 14 de agosto. É possível que seja uma das razões, claro.
Esta nova presença em 2021 é só mais uma dentro de uma longa lista de intervenções norte-americanas no pequeno país que divide a Ilha de São Domingos com a República Dominicana. Mais de um século atrás, em 1915, os fuzileiros navais desembarcaram após o assassinato do presidente Jean Vilbrun Guillaume Sam para proteger seus interesses. E ali permaneceram por quase vinte anos – o mesmo que fizeram no Afeganistão, neste começo de Século XXI.
Naquela época, não havia Al Qaeda, não se falava em “terrorismo islâmico” e a União Soviética sequer havia nascido. Porém, já existia o discurso de intervir em outros países para “salvaguardar os interesses norte-americanos”, uma frase tão vaga quanto ampla, que permitiu aos Estados Unidos justificar inúmeras invasões tanto no Haiti – em diferentes momentos da sua história – quanto em outros vários lugares do planeta.
Atualmente, o Afeganistão e o Haiti são dois dos países mais pobres do mundo, e aparecem como prioridade da política externa dos Estados Unidos, conforme revelam os documentos do Congresso desse país relativos à criação do SIGAR (sigla em inglês do Comitê Especial para a Reconstrução do Afeganistão), um órgão independente explicitamente dedicado a analisar, como o nome diz, a reconstrução do país asiático.
O relatório publicado pelo SIGAR em agosto de 2021, intitulado “O que precisamos aprender: lições de vinte anos de reconstrução no Afeganistão”, levanta a necessidade de assimilar a experiência afegã para outras missões de reconstrução: “instituições, sociedade civil, economia e forças de segurança devem ser consideradas ao se desenhar um projeto em outros países”. O documento também cita Haiti e Panamá como possíveis oportunidades para aplicar esse aprendizado.
Diferente do caso do Afeganistão, que foi invadido em 2001, o Haiti já recebeu, desde aquela primeira ocupação no início do Século XX, milhões de dólares investidos pelos Estados Unidos através de numerosos “projetos de ajuda”, todos eles prometendo “construir instituições sólidas” no país. Entre essas “ajudas” estão incluídos o apoio à brutal ditadura da família Duvalier, que governou entre 1956 e 1986, e os milhões de dólares que foram destinados à “reconstrução” após o terrível terremoto de 2010, novamente sem os resultados visíveis.
O Haiti continua a ser o país mais pobre das Américas, mesmo depois de todas as intervenções e ocupações estadunidenses. Tanto governos democratas quanto republicanos já reivindicarem o direito de realizar tarefas de “reconstrução”, do Haiti e de outros países, mesmo sem ter recebido um mandato oficial das Nações Unidas para isso. Algo está errado com essas “reconstruções” que não favorecem as populações locais. O Afeganistão e o Haiti são provas disso.
O Talibã, tão longe e ao mesmo tempo tão perto da América Latina
O Afeganistão está muito longe do Haiti e de toda a América Latina. É um dos países da Ásia Central que tem menos pontos de contato com a nossa região, já que não havia sequer possui fluxos migratórios importantes, como houve, em diferentes momentos históricos, com a Síria, Líbano, Ucrânia, Rússia, China e Japão, para citar alguns exemplos.
As diversas culturas e tradições étnicas afegãs são quase incompreensíveis para os nossos padrões culturais, da mesma forma que as culturas andinas devem ser misteriosas para quem vive no Afeganistão, embora um olhar antropológico certamente encontrará elementos em comum entre os que nasceram lá e aqui, como o fato de serem povos rodeados por enormes cadeias de montanhas, algumas delas com mais de 4 mil metros de altura.
Quando o Talibã tomou o poder em 1996, a ampla cobertura do fato pela mídia fez com que a palavra “Talibã” fosse incorporada aos nossos idiomas latinos como sinônimo de “fanatismo” e de “teocracia”, apesar de que, no idioma dos pachtuns, essa palavra é somente o plural de “talib”, que significa “estudante”. Como acontece em muitos casos, o uso e o costume distorcem o significado original de um termo.
As imagens da retirada das tropas estadunidenses daquele país após vinte anos de ocupação não deveria ser algo estranho aos nossos olhos, embora as invasões estadunidenses no Século XX na América Latina e no Caribe não tenham tido a mesma cobertura midiática por falta de tecnologias modernas, essas que permitem, hoje em dia, que você veja o que está acontecendo instantaneamente em Cabul.
Infelizmente, o mundo não pôde ver ao vivo a derrubada de Jacobo Arbenz na Guatemala em 1954, ou a invasão de Cuba em 1961, ou da República Dominicana em 1965, entre tantas outras invasões de uma longa e conhecida lista de intervenções norte-americanas que, como no Afeganistão, a Casa Branca promoveu com a promessa de “fortalecer a democracia” nesses países. Do ponto de vista ideológico, nada há em comum entre o Talibã e os diversos movimentos populares e nacionalistas latino-americanos que resistiram aos fuzileiros navais, exceto pelo fato de lutarem contra ocupações estadunidenses.
A política dos Estados Unidos de demonizar o inimigo não distingue ideologias, como podemos ver refletido em tantos filmes produzidos por Hollywood, onde alemães, japoneses, soviéticos, vietnamitas, guerrilheiros cubanos, árabes ou muçulmanos, dependendo do momento histórico, são mostrados da mesma forma infame. Todos são ridicularizados ao extremo, para gerar consenso na população estadunidense de que são um inimigo implacável, que é preciso destruir e que qualquer método para fazê-lo é justificado, incluindo as bombas atômicas lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki.
Saiba mais em: https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Pelo-Mundo/La-ruta-de-Afganistan-a-Haiti-pasa-por-Estados-Unidos/6/51458
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