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A esquerda, os militares e o imperialismo

O que surpreende não é a deriva neoliberal dos generais: o desenvolvimento que defendiam era “a convite” dos EUA; quando Washington mudou seu programa, sucumbiram. Estranha é a relutância da esquerda em trocar o paradigma

Por José Luís Fiori

As grandes potências são aqueles Estados de toda parte da Terra que possuem elevada capacidade militar perante os outros, perseguem interesses continentais ou globais e defendem estes interesses por meio de uma ampla gama de instrumentos, entre eles a força e ameaças de força, sendo reconhecidos pelos Estados menos poderosos como atores principais que exercem direitos formais excepcionais nas relações internacionais.

Charles Tilly, Coerção, Capital e Estados Europeus.
São Paulo: EDUSP, 1996, p. 247

Foi depois da Primeira Grande Guerra que o movimento socialista internacional repudiou o colonialismo europeu e transformou o “imperialismo” no inimigo número um da esquerda mundial. Assim mesmo, quando os socialistas chegaram pela primeira vez ao poder, na Europa, e foram obrigados a governar economias capitalistas, não conseguiram extrair consequências da sua própria teoria do imperialismo para o plano concreto das políticas públicas. E quando foram chamados a comandar diretamente a política econômica, como no caso de Rudolf Hilferding, entre outros, seguiram o receituário vitoriano clássico, do sound money and free markets – até muito depois da Segunda Guerra, quando aderiram, já nos anos 60 e 70, às ideias, propostas e políticas keynesianas. Mas na década de 80, estes mesmos partidos se converteram ao programa ortodoxo da austeridade fiscal e das reformas liberais que levaram à desmontagem parcial do Estado de Bem-estar Social.

Esse mesmo problema reapareceu de forma mais dramática quando lhes tocou aos socialistas e às forças de esquerda governarem países “periféricos” ou “subdesenvolvidos”. Também nestes casos, os teóricos do imperialismo e da dependência tiveram muita dificuldade para decidir qual seria o modelo de política econômica “ideal” para as condições específicas de um país situado no “andar de baixo” da hierarquia mundial do poder e da riqueza.

No caso da América Latina, a CEPAL formulou nos anos 50 uma teoria “estruturalista” do comércio internacional e da inflação, e propôs um programa de industrialização por “substituição de importações” que lembrava as teorias e propostas de Friederich List, economista alemão do século XIX, com a diferença de que as ideias cepalinas não tinham nenhum tipo de conotação nacionalista, ou de coloração anti-imperialista. Na prática, entretanto, dentro e fora da América Latina, os governos de esquerda dos países periféricos acabaram, quase invariavelmente, derrubados ou estrangulados financeiramente pelas grandes potências do sistema mundial, sem terem conseguido descobrir o caminho do crescimento e da igualdade, dentro de uma economia capitalista subdesenvolvida, e no contexto de um sistema internacional assimétrico, competitivo e extremamente bélico. Apesar de tudo, essas experiências deixaram um ensinamento fundamental: que os modelos e as políticas econômicas que funcionam em um país do “andar de cima” não funcionam necessariamente em países situados nos escalões inferiores do sistema, e menos ainda, quando estes países do “andar de baixo” tiveram a ousadia de querer mudar sua posição relativa dentro da hierarquia mundial do poder.

Desta perspectiva, para poder avançar neste debate, é útil distinguir pelo menos quatro tipos ou grupos de países1, do ponto de vista de sua estratégia de desenvolvimento e de sua posição com relação à potência dominante em cada um dos grandes tabuleiros geopolíticos e econômicos do sistema mundial. No primeiro grupo, encontram-se os países que lideram ou lideraram a expansão do sistema mundial, em distintos níveis e momentos históricos, as chamadas “grandes potências”, do presente e do passado, desde a origem do sistema interestatal capitalista. No segundo grupo, estão os países que foram derrotados e submetidos pelas grandes potências, ou que adotaram voluntariamente estratégias de integração econômica com as potências vitoriosas, transformando-se em seus dominiums econômicos e protetorados militares. No terceiro grupo devem ser situados os países que lograram se desenvolver questionando a hierarquia internacional estabelecida e adotando estratégias econômicas nacionais que priorizaram a mudança de posição do país dentro do poder e da riqueza mundiais. Por fim, no quarto grupo, podemos incluir todos os demais países e economias nacionais situadas na periferia do sistema e que não puderam ou não se propuseram sair dessa condição, ou mesmo sofreram um processo de deterioração ou decadência depois de terem alcançado níveis mais altos de desenvolvimento, como no caso de alguns países africanos e latino-americanos.

No caso da América Latina, a potência dominante sempre foram os Estados Unidos. E desde a Segunda Guerra Mundial até o final da década de 70 pelo menos, os Estados Unidos defenderam e patrocinaram na sua “zona de influência” um projeto de tipo “desenvolvimentista” que prometia rápido crescimento econômico e modernização social, como caminho de superação do subdesenvolvimento latino-americano. Mas depois da sua crise dos anos 70, e em particular na década de 80, os norte-americanos mudaram sua estratégia econômica internacional e abandonaram definitivamente seu projeto e patrocínio desenvolvimentista. Desde então, passaram a defender, urbe et orbi, um novo programa econômico de reformas e políticas neoliberais que ficou conhecido pelo nome de “Consenso de Washington”, que se transformou no núcleo central de sua retórica vitoriosa depois do fim da Guerra Fria. Combinavam a defesa dos mercados livres e desregulados com a defesa da democracia e da desestatização das economias que haviam seguido seu ideário anterior, que propunha um crescimento econômico rápido e induzido pelo Estado. Foi o momento em que o neoliberalismo se transformou no pensamento hegemônico de quase todos os partidos e governos da América Latina, incluindo os partidos socialistas e social-democratas. Na segunda década do século XXI, entretanto, os Estados Unidos voltaram a redefinir e mudar radicalmente seu projeto econômico para a periferia latina e mundial, defendendo um ultraliberalismo radical e com forte viés autoritário, sem nenhum tipo de preocupação social ou promessa para o futuro, seja de maior justiça ou de maior igualdade.

É nesse contexto hemisférico que se deve ler, interpretar e discutir a trajetória econômica brasileira da Segunda Guerra Mundial até hoje, começando pelo sucesso econômico do seu “desenvolvimentismo conservador”, que foi sempre tutelado pelos militares e apoiado pelos Estados Unidos. Em troca, durante todo esse período, os militares brasileiros submeteram-se à estratégia militar dos Estados Unidos durante a Guerra Fria, transformando-se no único caso de sucesso no continente latino-americano daquilo que alguns historiadores econômicos costumam chamar de “desenvolvimento a convite”, que se encaixa diretamente no segundo tipo de estratégia e de desenvolvimento da nossa classificação anterior. Ressalva deve ser feita ao governo Geisel, que se manteve fiel ao anticomunismo americano, mas ensaiou uma estratégia de centralização e estatização econômica e de conquista de maior autonomia internacional, que foi vetada e derrotada pelos Estados Unidos e pelo próprio empresariado brasileiro2.

É exatamente o período “geiselista” do regime militar brasileiro que deixa muitos analistas confundidos quando o comparam com o ultraliberalismo do atual governo “paramilitar” instalado no Brasil em 2018. Na verdade – excluída a “excrecência bolsonarista” – os militares brasileiros seguem no mesmo lugar, ocupando a mesma posição que ocuparam nos golpes de 1954 e de 1964: aliados com as mesmas forças conservadoras e com a extrema-direita religiosa, e alinhados de forma incondicional e subalterna com os Estados Unidos. E é por isto exatamente que não representa nenhum constrangimento para eles o fato de terem sido “nacional-desenvolvimentistas” na segunda metade do século XX, e serem agora “nacional-ultraliberalistas” neste início do século XXI. Acreditam que, uma vez mais, seu alinhamento automático com os Estados Unidos lhes garantirá o mesmo sucesso econômico que tiveram durante a Guerra Fria, só que agora através de mercados desregulados, desestatizados e desnacionalizados.

Saiba mais em: https://outraspalavras.net/crise-brasileira/a-esquerda-os-militares-e-o-imperialismo/

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