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Agroecologia ou Colapso (1)

No esforço por repensar o mundo, é preciso olhar ao campo. Ali há um sistema de produção cooperativo e sustentável. Subestimado inclusive pelo marxismo ortodoxo, está sendo redescoberto. Será uma das bases para o pós-capitalismo

Por Paulo Petersen e Denis Monteiro

No dia 8 de abril, a Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) publicou uma proposta para retomada do Programa Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar (PAA). O documento foi assinado por 774 organizações, redes e movimentos sociais do campo e das cidades e propõe a alocação imediata de 1 bilhão de reais para compra e distribuição de alimentos para as populações em situação de fome e de insegurança alimentar e nutricional, montante que deve chegar a 3 bilhões até o fim de 2021. Como procuraremos demonstrar, esta proposta é coerente com a perspectiva agroecológica para transformação dos sistemas alimentares, cuja configuração hegemônica atual é responsável pelo encadeamento de crises que tem nos levado a um verdadeiro impasse civilizatório. Apresentamos aqui o sentido político desta proposição nesse momento histórico de extrema gravidade marcado pelo súbito aprofundamento de crises pré-existentes deflagrado pela disseminação do coronavírus. 

A necessidade de um enfoque sistêmico

Crises que se agravam enquanto realimentam-se reciprocamente, como as que se tornaram evidentes nesse momento, conformam um quadro político de excepcional complexidade. Superar os enfoques setoriais que prevalecem no mundo da gestão pública é condição indispensável para que as medidas emergenciais implementadas contribuam para desarticular os círculos viciosos regressivos que fazem com que causas e efeitos da pandemia se confundam. Nesse sentido, urge desfazer a falsa dicotomia entre saúde e economia que polariza o debate público e as iniciativas governamentais no Brasil, enquanto o número de mortos se multiplica e a economia vai à bancarrota. Em um e em outro caso, são as camadas mais empobrecidas e vulneráveis da população as mais penalizadas. 

Entender a saúde como direito a ser ativamente promovido pelo Estado e a economia como a administração das riquezas sociais para a promoção do bem comum é condição primeira para que o antagonismo intersetorial característico das gestões neoliberais dê lugar a estratégias de intervenção pública capazes de impulsionar círculos virtuosos entre economias justas e democráticas e a saúde coletiva. 

É nessa perspectiva que a proposta apresentada pela ANA deve ser entendida. Mais do que nunca, o fomento público à demanda por alimentos saudáveis mostra-se como uma estratégia ganha-ganha indispensável ao equacionamento combinado de desafios sociais e econômicos de longa data, mas agora agudizados pelo surto da Covid-19. Indo mais além, trata-se de uma estratégia triplamente ganhadora, na medida em que também traz consigo o potencial de produzir benefícios ambientais de suma relevância quando levamos em conta o fato de que os sistemas alimentares organizados segundo lógica técnico-econômica do agronegócio respondem pela emissão de quase 40% dos gases de efeito estufa, sendo ainda responsáveis por acelerados ritmos de desmatamento e perda da biodiversidade, de degradação da terra e dos corpos hídricos. Além desses efeitos desestabilizadores da dinâmica ecológica planetária, numerosos especialistas vêm apontando a relação direta entre surgimento de pandemias e os mega confinamentos nos criatórios industriais do agronegócio.

Ao fim e ao cabo, a crise do coronavírus escancara os limites do capitalismo neoliberal como modelo de gestão política e econômica das sociedades contemporâneas. No mesmo bojo, escancara os limites do regime agroalimentar corporativo (ou neoliberal), abrindo novos horizontes políticos para que a agroecologia seja socialmente assumida e defendida como um enfoque para a transformação dos padrões dominantes de produção, beneficiamento, distribuição e consumo de alimentos. 

A retomada imediata do PAA segundo a proposição defendida pela sociedade civil insere-se nesse contexto como uma medida emergencial de caráter estruturante. Uma medida politicamente exequível, desde que fortemente apoiada pela cidadania ativa e suas organizações em um momento em que o receituário neoliberal está colocado em xeque. 

 Saiba mais em: https://outraspalavras.net/crise-brasileira/agroecologia-ou-colapso-1/

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