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Apelo de Chomsky à Internacional Progressista

Em discurso notável, o intelectual dissidente adverte: há uma ameaça dupla contra o planeta e a democracia. O fascismo dos Trump, Bolsonaro e Modi, exibe as garras e pode vencer. Contra ele, não serve a volta ao “velho normal”. É hora de ousadia

Por Noam Chomsky / Tradução de Simone Paz

Discurso de abertura do membro do Conselho durante a cúpula inaugural da Internacional Progressista, em setembro de 2020.

Estamos reunidos num momento extraordinário, um momento que é, de fato, único na história da humanidade, um momento de mau agouro e, ao mesmo tempo, repleto de esperança por um futuro melhor. A Internacional Progressista (IP) tem um papel crucial a desempenhar: determinar o rumo que a história vai tomar.

Nos encontramos num momento de confluência de crises de extraordinária gravidade, com o destino do experimento humano literalmente em risco. Nas próximas semanas, os problemas atingirão o ponto crítico nas duas maiores potências imperiais da era moderna.

A decadente Grã Bretanha, depois de ter declarado publicamente que rejeita o direito internacional, está à beira de um rompimento agudo com a Europa, a caminho de se tornar um satélite americano, ainda mais do que já é. Mas, é claro, o mais importante para o futuro é o que acontece na hegemonia global — diminuída por Trump, mas ainda com poder avassalador e vantagens incomparáveis. Seu destino, e com ele o destino do mundo, pode ser determinado em novembro.

Não é de estranhar que o resto do mundo esteja preocupado, quando não horrorizado. Seria difícil achar um comentarista mais sóbrio e respeitado do que Martin Wolf, do London Financial Times. Ele escreveu que o Ocidente está enfrentando uma crise grave e que, se Trump for reeleito, “será terminal (ou o fim)”. Palavras fortes, e isso que ele nem se refere às grandes crises que a humanidade enfrenta.

Wolf se refere à ordem global, uma questão crítica, embora não na escala de crises que nos ameaçam com consequências muito mais sérias, as crises que empurram os ponteiros do famoso Relógio do Juízo Final em direção à meia-noite — rumo à extinção.

O conceito de “terminal” de Wolf não é novo no discurso público. Há 75 anos vivemos à sombra dele, desde que soubemos, em um inesquecível dia de agosto, que a inteligência humana havia criado os meios que em breve produziriam a capacidade de destruição terminal. Isso já foi esmagador, mas ainda havia mais. Na época, não se sabia que a humanidade estava entrando em uma nova era geológica, o Antropoceno, em que as atividades humanas estão expropriando o meio ambiente de tal forma que agora também ele se aproxima da destruição terminal.

Os ponteiros do Relógio do Juízo Final foram estabelecidos pouco depois das bombas atômicas terem sido usadas num paroxismo de massacre desnecessário. Os ponteiros vêm oscilando desde então, à medida em que as circunstâncias globais tem evoluído. Para cada ano de Trump no poder, os ponteiros chegaram mais perto da meia-noite. No passado mês de janeiro, analistas pararam de falar em minutos, e passaram a utilizar os segundos: cem segundos para a meia-noite. Eles citaram as mesmas crises de antes: as crescentes ameaças de guerra nuclear e catástrofe ambiental, e a deterioração da democracia.

À primeira vista, essa última pode parecer fora de contexto, mas não está. A deterioração da democracia se encaixa nesse trio sombrio. A única esperança de escapar das duas ameaças de extinção é uma democracia vibrante na qual cidadãos interessados ​​e informados estejam totalmente envolvidos na deliberação, formulação de políticas e ação direta.

Isso foi em janeiro passado. Desde então, o presidente Trump ampliou as três ameaças, numa conquista nada trivial. Continuou a demolir o regime de controle de armas, que oferecia certa proteção contra a ameaça da guerra nuclear, enquanto pressiona o desenvolvimento de novas armas ainda mais mortais, para deleite da indústria militar. Em seu dedicado compromisso de destruir o meio ambiente que sustenta a vida, Trump abriu vastas novas áreas para perfuração, incluindo a última grande reserva natural. Enquanto isso, seus capangas estão sistematicamente desmantelando o sistema regulatório que de alguma maneira amenizava o impacto destrutivo dos combustíveis fósseis e protegia a população de produtos químicos tóxicos e poluição, uma maldição que agora é duplamente mortal durante uma grave epidemia respiratória.

Trump também liderou sua própria campanha para acabar com a democracia. Por lei, as nomeações presidenciais são sujeitas à confirmação do Senado. Trump foge desse inconveniente deixando as vagas abertas e, em vez disso, preenchendo os cargos com “nomeações temporárias” que atendem à sua vontade — e se não o fizerem com lealdade suficiente, são demitidos. Ele acabou com qualquer voz independente dentro do Executivo. Só permanecem os bajuladores. Há muito tempo, o Congresso estabeleceu Inspetores-Gerais para monitorar o desempenho do Poder Executivo. Eles começaram a desvendar o pântano de corrupção que Trump criou em Washington, mas o presidente cuidou rapidamente despediu-os para preservar sua imagem. Não sobrou quase ninguém para espiar o que estava acontecendo no Senado Republicano, já que Trump havia controlado todo mundo; com isso, só restam alguns lampejos de integridade, aterrorizados e imobilizados pela base popular que Trump articulou.

Este ataque à democracia é apenas o começo. O último passo de Trump será o de avisar que ele não pode deixar o cargo enquanto não estiver satisfeito com o resultado da eleição de novembro. A ameaça é levada muito a sério nos altos escalões. Para citar apenas alguns exemplos, dois comandantes militares aposentados, altamente respeitados, divulgaram uma carta aberta ao presidente do Estado-Maior Conjunto, General Milley, reforçando sua responsabilidade constitucional de enviar o exército para tirar à força um “presidente sem lei” que se recuse a deixar o cargo após derrota eleitoral, convocando em sua defesa os tipos de unidades paramilitares que despachou para Portland, Oregon, a fim de aterrorizar a população por causa da forte objeção das autoridades eleitas.

Muitas autoridades consideram o aviso realista, entre eles o Projeto de Integridade de Transição de alto nível, que acaba de relatar os resultados do “jogo de guerra” que vem conduzindo, sobre os possíveis resultados das eleições de novembro. Os membros do projeto são “alguns dos mais destacados republicanos, democratas, funcionários públicos, especialistas em mídia, pesquisadores e estrategistas”, explica o codiretor do projeto, que incluiu figuras proeminentes de ambos os partidos. Em qualquer cenário plausível além de uma clara vitória de Trump, os jogos levaram a uma espécie de guerra civil, com Trump escolhendo encerrar “o experimento americano”.

Novamente, palavras fortes, nunca antes ditas por vozes sóbrias do mainstream. O próprio fato de que tais pensamentos surjam já é bastante ameaçador. Eles não estão sozinhos. E dado o incomparável poder dos EUA, o que está em risco é muito mais do que a “experiência americana”.

Na frequentemente conturbada história da democracia parlamentar, nunca aconteceu nada parecido a isso. Nos anos recentes, Richard Nixon — longe de ser a pessoa mais encantadora da história presidencial — tinha boas razões para acreditar que havia perdido a eleição de 1960 apenas por causa da manipulação criminosa realizada por operativos democratas. Ele não contestou os resultados, privilegiando o bem-estar do país antes que sua ambição pessoal. Albert Gore fez o mesmo em 2000. Não é o que acontece hoje.

Saiba mais em: https://outraspalavras.net/crise-civilizatoria/o-apelo-de-chomsky-a-internacional-progressista/

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