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Como ancestrais indígenas se preveniam de epidemias

Utilizado para conter pandemia de coronavírus, isolamento social é empregado há séculos por indígenas brasileiros frente a doenças por eles desconhecidas, com sacrifício individual justificando benefício coletivo.

Historicamente vítimas de doenças trazidas pelo “homem branco”, povos indígenas brasileiros podem mirar no passado para sobreviver à pandemia da covid-19, em um momento em que a Amazônia é um dos epicentros da doença. Desde os primeiros contatos com europeus, muitos povos indígenas recorreram ao isolamento social para se proteger de epidemias – justamente a estratégia hoje adotada mundialmente como a mais eficaz para o combate ao novo coronavírus.

“Diante daquelas epidemias do passado, os nossos especialistas de proteção e cura de doenças não tinham muito a fazer. Meus avós benzedores diziam que, diante das epidemias, se sentiam impotentes, pois não sabiam as raízes das doenças, não sabiam que tipos de seres causavam essas doenças”, conta à DW Brasil o padre Justino Sarmento Rezende, indígena do povo Tuyuka, morador do município de Santa Isabel do Rio Negro, no Amazonas. “Por isso, eles se retiravam das comunidades para viver em lugares mais afastados até que passasse a epidemia.”

Ou seja: na falta de medicamentos adequados, a regra era o isolamento. Rezende se recorda de que, quando era criança, no início dos anos 1960, houve uma epidemia de coqueluche que matou muitas crianças na região. “Minha irmã mais velha morreu. Eu consegui escapar. As famílias iam para acampamentos mais distantes para se proteger”, lembra. 

“Penso que no atual quadro de pandemia, nós, indígenas, podemos oferecer inspiração por resistirmos há mais de 500 anos de doenças, genocídios, etnocídios e ecocídios sem desistirmos de nossos sonhos na busca pelos territórios ancestrais e por alteridade”, diz à DW Brasil o historiador Carlos José Santos, também chamado de Casé Angatu Xucuru Tupinambá (em alusão a suas raízes indígenas), professor da Universidade Estadual de Santa Cruz (Uesc), na Bahia.

Pesquisador de etnologia indígena e professor da Universidade de São Paulo (USP), o antropólogo Pedro de Niemeyer Cesarino ressalta à reportagem que, “ainda que não tivessem como evitar a mortandade”, os povos indígenas “sempre tiveram suas estratégias de proteção”. “Em geral, elas consistem em tentar escapar de centros de contágio, quando havia a percepção de que isso era possível. O isolamento em áreas de difícil acesso da floresta, por exemplo, era e é uma opção praticada ainda nos dias de hoje”, exemplifica.

Os xamãs sempre tentaram compreender o que eram essas novas doenças, a fim de tratá-las a partir de suas técnicas e conhecimentos, mas, com o tempo, entretanto, muitos começaram a perceber que as “doenças dos brancos” eram distintas e demandavam cuidados diferentes daqueles que podiam ser realizados com seus conhecimentos, aponta o antropólogo.

“O que chamamos de isolamento social não foi praticado apenas no passado. Ele é uma estratégia ainda hoje corrente, que está sendo utilizada agora na proteção à covid-19, a doença causada pelo novo coronavírus. No entanto, não se trata exatamente de um isolamento social, mas de uma evitação da vida em comunidades situadas nas margens de rios navegáveis e de contato mais fácil com cidades”, afirma.

“Muitas vezes, famílias inteiras sobem para a direção das cabeceiras de rios e reformulam os seus modos de existência. Passam a viver de maneira similar à de seus antepassados, o que implica também a produção de novos corpos que sejam mais fortes e, ao mesmo tempo, mais sábios para lidar com os desafios provocados pela iminência do genocídio.”

Para a historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro, coordenadora do Laboratório de Estudos sobre Etnicidade, Racismo e Discriminação da USP, os saberes herdados das populações indígenas brasileiras devem ser preservados como “vestígios de uma cultura secular, única, um instrumento importante de combate as epidemias”. “Seus conhecimentos sobre a flora e fauna curam doenças do corpo e da alma, nem sempre valorizados pelos homens da ciência”, diz.

Tulio Chaves Novaes, promotor de Justiça, professor e pesquisador da Universidade Federal do Oeste do Pará, considera que é preciso humildade para “efetivar esse aprendizado” com o os povos indígenas. “Penso que o aprendizado mais relevante, ensinado atemporalmente por esses povos, massacrados pela ganância e pelo poder de uma razão instrumental ocidental soberana, encontra-se na ética”, pontua.

“A atitude do indígena aponta sempre para o bem-estar e para a preservação do grupo, para sua relevância frente ao indivíduo. Visto como um todo, desta maneira, na lógica do grupo, o destino de um é o destino do outro. A preocupação com o coletivo, ao ponto de justificar o sacrifício individual, talvez enseje outro parâmetro educativo ético que precisamos resgatar com a história desses povos. Se tivéssemos em mão hoje esse patrimônio moral, sem dúvida, seria mais fácil fazer frente aos inimigos comuns, como o atual coronavírus”, considera.

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