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Crise e revide do capitalismo, segundo Dowbor

Se a produção depende agora do conhecimento, e se ele é imaterial e abundante, como o sistema poderá manter a desigualdade? Em novo livro, roteiro para examinar as novas lutas sociais e políticas, em tempos pós-modernos

Por Ladislau Dobor

O capitalismo surgiu com uma revolução nas forças produtivas: por meio do acoplamento do maquinário a novas fontes energéticas, o homem passou a operar máquinas ligadas a fontes externas de energia. Hoje, o homem programa a operação das máquinas. O que ele gera, fundamentalmente, são conhecimento, tecnologias, design, o chamado “imaterial”. Não se trata apenas da robótica, que penetra de forma acelerada em inúmeros setores, mas também do pequeno agricultor que usa inseminação artificial e análise de solos, do médico que se apoia em redes de laboratórios e de cirurgia acompanhada a distância. O grande eixo transformador é que a tecnologia é hoje o principal fator de produção. Isso desloca o capitalismo, porque o conhecimento tecnológico, diferentemente das máquinas e do trabalho físico, é imaterial. A máquina continua importante, sem dúvida, mas o eixo estruturante é o conhecimento incorporado. O conhecimento é um bem imaterial. É fluido, navega quase na velocidade da luz e pode ser indefinidamente apropriado sem custos adicionais. A base material do que conhecíamos como capitalismo industrial se transforma.

A tecnologia como principal fator de produção

Os estudos de Jeremy Rifkin sobre a sociedade com custo marginal zero ajudam a dimensionar a transformação. No caso dos bens físicos, por exemplo um relógio, trata-se de um bem rival, porque, se uma pessoa o toma, outra deixa de tê-lo. A centralidade da propriedade privada na sociedade capitalista tradicional encontra aqui toda a sua explicação. No caso das ideias, o fato de eu passar um conhecimento para outra pessoa não me priva dele: o conhecimento é um bem não rival. A implicação disso é que o principal fator de produção da economia moderna não tem seu estoque reduzido pelo uso, pelo contrário, pode ser multiplicado indefinidamente. Isso constitui um terremoto epistemológico para as ciências econômicas, baseadas na otimização da alocação de recursos escassos. O principal fator de produção não é escasso, e isso explica inclusive por que tantas corporações buscam gerar artificialmente escassez para poder cobrar o acesso, como se verifica com a propriedade intelectual. A natureza de um fator capaz de ser multiplicado para sempre sem custos adicionais é justamente a de poder ser acessado de maneira livre e aberta. Limitar o acesso a uma boa ideia não faz sentido, porque leva à subutilização dramática dos potenciais de desenvolvimento de uma sociedade, ainda que soe plausível para um capitalista individual. Historicamente, passamos da terra à máquina e da máquina ao conhecimento. A base produtiva da humanidade está se deslocando de maneira radical e muito acelerada, com impactos profundos sobre a lógica do conjunto.

A revolução no próprio sistema de expansão do conhecimento

Não há como não ver que a era da informação transformou o nosso modo de produzir, com aplicações científicas inovadoras em praticamente todas as áreas: energia, transportes, medicina, educação, cultura, geração de novos materiais e assim por diante. Mas um elemento central que impacta a profundidade e o ritmo de inovação é a própria capacidade de expansão e gestão do conhecimento. Desde os primeiros avanços conceituais de Alan Turing e do subsequente dispositivo de decodificação que tanto mudou a cara da Segunda Guerra Mundial, passamos a ter a máquina do conhecimento, abrindo a era digital. O fato de poder expressar com apenas dois sinais, “0” e “1”, praticamente todas as unidades de informação, sejam elas letras, números, cores ou sons, permitiu ancorar o conhecimento humano em sinais magnéticos. Trata-se de uma inovação radical na própria capacidade de inovação: a máquina da máquina, o prolongamento do cérebro. O conhecimento, até então preso em suportes materiais – o livro, o quadro, o disco –, passa a dispensá-los. O principal fator de produção é intangível e encontra o seu suporte imaterial, o sinal magnético.

É difícil imaginar a pesquisa sobre o DNA, por exemplo, sem o computador. E, em particular, imaginar as inovações na própria capacidade informática sem a informática. Em 1776, quando Adam Smith antevê na mecanização da produção de alfinetes uma imensa transformação, o que o leva a desenhar características da Revolução Industrial que até hoje constituem leitura relevante, ele não se baseia no aspecto quantitativo da manufatura, ridículo na época, mas no seu potencial de transformação do conjunto da sociedade. Tal como o avanço dos teares levou à expansão das técnicas de fiação, hoje a economia do conhecimento expande o instrumento de gestão desse conhecimento, a informática, gerando um processo cumulativo de transformações. O fato de evoluirmos para a sociedade do conhecimento e de dispormos das ferramentas correspondentes aponta para transformações tão profundas quanto a Revolução Industrial. A nova máquina, de certa forma, é o conhecimento. Nova base da economia, o conhecimento gerou seu “maquinário” correspondente, profundamente diferente porque imaterial em essência.

Conhecimento e conectividade: a era da Internet

Em termos de processo histórico de transformação, ainda estamos no início. Dois bilhões de pessoas ainda cozinham com lenha, mais de 1 bilhão ainda não têm acesso à eletricidade. No entanto, é questão de poucos anos para que a inclusão digital se generalize, inclusive porque esse é o interesse de numerosos atores do processo, e não só dos excluídos. A era do conhecimento está cobrindo rapidamente o planeta com computadores em cada domicílio com renda razoável, em cada empresa ou repartição pública, em cada avião, em cada carro, em cada bolso. Isso não constitui uma tecnologia a mais. Constitui uma tecnologia que permite receber, armazenar, tratar e articular volumes praticamente ilimitados de conhecimento e, portanto, desencadear um processo cumulativo de expansão.

A economia capitalista industrial dotou-se de infraestruturas de produção e distribuição, cobrindo o planeta com redes de energia, de ferrovias e rodovias, de telecomunicação e outros sistemas de articulação dos processos produtivos. Na era do conhecimento, estamos ultrapassando o telégrafo e a boa e velha telefonia e gerando a conectividade planetária global. Como estamos de certa forma dentro do processo de transformações, nem sempre nos damos conta da importância da mudança sísmica que representa o fato de podermos contatar instantaneamente qualquer pessoa, qualquer empresa e, inclusive, qualquer documento, filme ou outra unidade de informação em qualquer parte do mundo, praticamente sem custos. É a era da conectividade total e global, um universo imaterial que funciona praticamente à velocidade da luz. Contrariamente ao que, com presunção, se chamou de “fim da história”, estamos assistindo a transformações mais aceleradas e profundas do que nunca. Temos um fator de produção dominante imaterial, o conhecimento; a capacidade de seu armazenamento e tratamento, a informática; e também a conectividade planetária para tornar esse fator de produção disponível instantaneamente em qualquer ponto do planeta e para qualquer pessoa. Isso, em termos de organização econômica, social e política, é muito maior do que apenas mais uma etapa do capitalismo industrial.

Uma redefinição do espaço e do território

Nesta era de “spaceisdead” ou “theworldisflat”, de tudo aqui e agora, os próprios conceitos de território, de pertencimento e de identidade estão mudando. Pessoas geram novos vínculos de sociabilidade segundo interesses os mais variados, processos produtivos se articulam no plano internacional, fluxos financeiros passam a cruzar o planeta instantaneamente, um novo universo econômico, social e cultural se desenha. E também, obviamente, um novo universo político, com os espaços nacionais vendo as suas funções redesenhadas, e muito fragilizadas.

É familiar a noção do imperialismo como estágio superior do capitalismo. Estamos indo além dessa visão. O chamado Terceiro Mundo, distante e desconhecido alguns séculos atrás, depois usado para escravizar, em seguida para colonizar – os povos teriam o privilégio de serem explorados na própria casa – e, mais recentemente, no quadro do imperialismo industrial, sujeito aos mecanismos exploratórios do grupo de países industrializados, hoje busca os seus caminhos dentro de um espaço estreito permitido pelas economias dominantes. Temos países independentes, teoricamente soberanos, mas presos numa máquina mundializada de poder econômico, financeiro e, cada vez mais, também político e cultural. Como se redefine o espaço do Estado-nação do século XX no mundo globalizado do século XXI?

As corporações, sujeitos políticos e econômicos centrais da nova globalização, organizam-se em rede no planeta. Cada uma cobre dezenas ou mais de uma centena de países, influenciando ou controlando a política, a justiça, os meios de comunicação, a cultura dos povos. Nada disso é novo, e a tendência já pode ser encontrada no Manifesto Comunista, de Karl Marx e Friedrich Engels, publicado em 1848. Uma vez mais, no entanto, mudanças quantitativas acumuladas levaram a uma mudança qualitativa sistêmica. O grito nacionalista de um Donald Trump, “MakeAmericagreatagain”, ou o Brexit do Reino Unido soam como um estertor de glórias do século passado. Para o bem ou para o mal, um mundo novo está se desenhando. Até quando ignoraremos que praticamente todas as grandes corporações se apoiam em paraísos fiscais, um tipo de extraterritorialidade financeira – o conceito de offshoreé significativo –, para gerir os seus ativos financeiros fora não só do alcance como até da informação dos governos? Temos de ir além do capitalismo como elenco de economias nacionais às quais se acrescentam trocas externas, para analisá-lo no seu processo de osmose mundial. Há um desajuste sistêmico entre a dimensão mundial da economia e a fragmentação do poder regulatório das nações. A miríade de empresas que constituíam o mundo empresarial do passado necessitava de um Estado regulador que mantivesse a ordem e o respeito dos contratos. Com a estruturação atual do mundo corporativo, assistimos a um redimensionamento da política, que passa a ser exercida pelas próprias corporações. Como tão bem resume Wolfgang Streeck, não é o fim do capitalismo, e sim o fim do capitalismo democrático. Está nascendo um novo animal. Em termos de modo de produção, a mudança nas infraestruturas está gerando superestruturas correspondentes, como veremos em detalhe mais adiante.

Saiba mais em: https://outraspalavras.net/crise-civilizatoria/crise-e-transe-do-capitalismo-segundo-dowbor/

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