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Dowbor: o tripé necessário após a pandemia

Autor de A Era do Capital Improdutivo sustenta: covid-19 tornou-se muito mais grave devido à desigualdade e mercantilização – inclusive da Saúde. Em resposta, é preciso garantir a Renda Básica, os Comuns e os Bancos Públicos – e resgatar a Democracia

Por Portal da Fenae

Em condições de pandemia, a situação crítica permite o resgate do papel do Estado a partir dos bancos públicos, os únicos com vocação para financiar microiniciativas pelo país. Isso, porém, depende essencialmente de uma profunda virada política. O setor público, ao praticar juros que se situem na média da OCDE, poderia forçar os chamados “mercados” a liberarem a sua função de fomento da economia.

Essa análise é do economista Ladislau Dowbor, em entrevista ao portal da Fenae. Ele é professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), consultor de agências da ONU e autor de dezenas de trabalhos sobre desenvolvimento econômico e social, disponíveis online gratuitamente em regime Creative Commons, no blog. Também é autor de mais de 40 livros, entre eles o Mosaico Partido – a Economia Além das EquaçõesA Era do Capital Improdutivo e Pedagogia da Economia.

Diante do cenário de enfrentamento da Covid-19, Dowbor propõe renda básica generalizada, reforço do SUS e financiamento local, com transferência de recursos a cada município do país, mas de maneira organizada. “É no nível local que se sabe qual bairro é mais ameaçado, onde falta água ou saneamento, quais famílias estão mais fragilizadas”, declara.

O economista afirma ainda que um dos motivos da crise está na excessiva e cada vez maior concentração de renda, relacionada com a financeirização da economia, naquilo que a executiva norte-americana Marjorie Kelly chama de “capitalismo extrativo”, que drena as capacidades produtivas no lugar de fomentar o desenvolvimento.

O professor da PUC-SP diz que essa situação, no Brasil, é agravada pela falta de governo e lembra, também, que o custo efetivo total de crédito no país se situa entre 800% e 1.000% acima do que é praticado internacionalmente.

Confira a entrevista

Com a ausência de políticas públicas, de que forma o coronavírus influencia no desenho atual do Estado no Brasil?

Dizer que a economia está paralisada porque o Estado é grande demais, e abocanha um volume excessivo de recursos, é uma farsa. Não se trata do tamanho do Estado, e sim de a quem serve. Ver o ex-ministro da Saúde comparecer na conferência de imprensa com a sua equipe, todos com colete do Sistema Único de Saúde (SUS), o mesmo SUS que estavam atacando, é simbólico. As pessoas mais ricas que têm planos privados de saúde não viam necessidade do SUS. Fragilizaram as políticas públicas de saúde, o que está facilitando a expansão do vírus, atingindo a todos, inclusive as elites. O vírus não tem preferências.

A crise atual recoloca na mesa a discussão do papel do Estado. A pandemia está sendo enfrentada de maneira mais competente onde há um Estado presente, em particular nas áreas sociais. Produzir bens e serviços do nosso cotidiano, como roupa, alimentação e semelhantes, funciona melhor no setor privado, mas para as políticas sociais, como saúde, educação, segurança e semelhantes, as políticas públicas universais e gratuitas se demonstraram amplamente superiores. É só olhar os países onde as políticas sociais funcionam melhor.

Mas fica também evidente a necessidade de repensar o pacto federativo: nos países onde o Estado funciona melhor, e isso envolve sistemas politicamente diferentes como a China, a Suécia ou o Canadá, há uma radical descentralização do Estado, pois nas sociedades hoje urbanizadas cada cidade sabe melhor onde estão os seus problemas, como articular as diferentes iniciativas. No Brasil muitas políticas públicas foram transferidas para os municípios, mas não os recursos. Neste momento de crise, enquanto o governo federal passa o tempo em lutas estéreis de poder, o nível local de decisão, nos 5.571 municípios do país, está na linha de frente dos problemas e no último lugar em termos de recursos.

A pandemia está recolocando na mesa a discussão não do tamanho, mas sim da retomada do papel do Estado nas áreas de políticas sociais e de infraestruturas, e da descentralização radical dos recursos. Democracia baseada apenas no voto não funciona.

Como a pandemia muda a relação dos trabalhadores com o processo econômico no país?

Temos no país cerca de 140 milhões de pessoas em idade de trabalho, e 105 milhões constituem formalmente a nossa força de trabalho: há muitos desalentados. Mas, mesmo nesses 105 milhões, temos 13 milhões de desempregados (dados de antes da pandemia) e 40 milhões no setor informal, onde a renda média é a metade do setor privado formal. Portanto, temos 53 milhões de pessoas que ou estão paradas ou “se viram” na informalidade, a metade da nossa força de trabalho.

O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apresenta hoje, como capítulo da Síntese de Indicadores Sociais, a subutilização da força de trabalho como um problema central. Entramos na crise da pandemia com apenas 33 milhões de pessoas trabalhando no setor privado formal, com carteira assinada, 31% da força de trabalho. Isso num país de 210 milhões de habitantes.

Isto significa que certas políticas de proteção sociais que ainda subsistam, apesar da quebra de direitos trabalhistas e da fragilização da Previdência, cobrem apenas uma parcela da população. Dizer que a população tem de se proteger, de se isolar, nas condições atuais de nível de renda da maioria, das suas condições de habitação e das condições precárias de infraestruturas de saúde nas áreas mais pobres, denota uma incompreensão da gravidade do que vivemos, ou simples insensibilidade. Precisamos com toda urgência de uma renda básica generalizada, reforço do SUS e financiamento local. Em vez disso, o R$ 1,2 trilhão (16% do PIB) que o governo está mobilizando se destinam essencialmente aos bancos, apenas R$ 98 bilhões para a população mais necessitada.

Há comparação possível entre a crise de 2008 e a causada pelo vírus?

A crise de 2008 foi causada pelo sistema financeiro, no quadro do que hoje se chamou de financeirização. A forma de apropriação pelas elites da riqueza produzida pela sociedade continua sendo em boa parte baseada nos salários baixos, mas crescentemente passou a se basear no endividamento das famílias, das empresas produtivas e dos Estados.

A dinâmica que gerou a crise de 2008 está presente, não foi regulada, e sobrevive graças a massivas transferências de recursos públicos, que, em vez de financiarem políticas sociais e infraestruturas, favorecem os bancos e o mundo financeiro em geral. Isso vale tanto para os Estados Unidos como para a Europa, mas no Brasil adquiriu dimensões grotescas.

Não de hoje, portanto, de mais uma crise, mas de uma crise sanitária que se sobrepõe a uma crise econômica pré-existente. A recessão de 2015 e 2016 e a paralisia econômica que vivemos, desde então, se devem não ao Estado grande demais, mas ao dreno generalizado de recursos por parte dos bancos e do mundo financeiro em geral. O sistema financeiro drena, através do endividamento, a capacidade de compra das famílias, a capacidade de investimento das empresas e a capacidade do Estado investir em políticas sociais e em infraestruturas. O dreno improdutivo, essencialmente através de juros, é da ordem de 20% do PIB. Temos 64 milhões de adultos no Brasil “negativados”, em bancarrota pessoal por excesso de juros, a metade das empresas está na mesma situação, o Estado está pagando, em juros sobre a dívida pública, entre R$ 300 e 400 bilhões ao mundo financeiro. O sistema está vazando por todos os lados.

Com as famílias endividadas cai a demanda e as empresas não têm para quem vender, paralisando a economia pela base e aumentando o desemprego, que dobrou desde 2014. A redução do consumo e da atividade empresarial reduz o volume de impostos pagos ao Estado, aumentando o déficit. Em 2020 estamos no mesmo nível de produção de 2012, enquanto os rendimentos dos mais ricos aumentaram, no mesmo período, em 11% ao ano. Os 206 bilionários brasileiros pesquisados pela revista norte-americana Forbes aumentaram as suas fortunas, entre 2018 e 2019, em R$ 230 bilhões, em 12 meses, com a economia parada.

A discussão absurda entre os que dizem que se deve priorizar a economia e os que priorizam a saúde reflete uma incompreensão de que o sistema se tornou disfuncional. Com a dimensão das crises que convergem, transferir mais dinheiro para bancos, que é em termos práticos a única iniciativa do governo federal frente à pandemia, simplesmente não irá funcionar.

Saiba mais em: https://outraspalavras.net/outrasmidias/dowbor-o-tripe-necessario-apos-a-pandemia/

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