Clipping

“O racismo está inscrito no corpo negro”

Geandra Nobre, atriz da Cia Marginal de Teatro, no Complexo da Maré, fala sobre estereótipos e o “doloroso” processo para se libertar deles. “Nossos corpos negros são marginalizados, são os corpos que a polícia mata.”

A recente onda de mobilizações mundo afora contra o racismo, que também chegou ao Brasil, reforçou a importância de iniciativas negras e periféricas no âmbito político e cultural, que questionem e enfrentem de forma criativa o racismo estrutural sofrido por negras e negros no país. É o caso da Cia Marginal de Teatro, nascida na Maré, no Rio de Janeiro, em 2006.

A última peça do grupo, Hoje não saio daqui, é sobre a vida de angolanos que vieram à Maré, e o palco fica no Parque Ecológico da Maré. Cinco atores angolanos participam da peça, que é impossível de imaginar em um teatro fechado com a plateia sentada. Em 2019, a peça foi indicada ao prêmio “Faz Diferença”, iniciativa do Globo, e foi considerada uma das dez melhores do ano no Rio de Janeiro pelo jornal.

Geandra Nobre vive na Maré – que, com cerca de 140 mil habitantes, é o maior complexo de favelas do Rio de Janeiro –começou a atuar aos 16 anos, em 1998, e hoje é atriz da Cia Marginal.

Em entrevista, ela fala sobre a importância do teatro em sua vida e sobre as dificuldades enfrentadas por negros no Brasil. “O racismo está inscrito no corpo […] O corpo negro é problemático e busca igualar-se com o corpo branco. Nossos corpos negros são marginalizados, são os corpos que a polícia mata, são sempre os corpos mais espancados”, afirma. “A libertação dos nossos corpos é um processo doloroso.”

DW: Como se deu o seu encontro com o teatro?

Geandra Nobre: A princípio eu detestava fazer teatro. Em um projeto municipal que visava treinar jovens na área da saúde, o teatro foi usado como ferramenta para desinibir os jovens de contar suas experiências. As professoras que nos ensinaram, Isabel Penoni e Joana Levi, tinham um método de trabalho que fazia os adolescentes pensarem. Foi algo novo para mim e me deixou desconfortável, já que toda a minha vida eu tinha sido colocada em uma cadeira sem poder dizer nada. A liberdade que eu tinha me incomodava.

Quais foram as inspirações iniciais do grupo?

Temos muita referência no que consideramos clássicos, como o [método] Teatro do Oprimido, para trabalhar a autoestima e a inversão de papéis. Mas criamos nosso próprio método de trabalho a partir das nossas memórias, do nosso corpo, um trabalho físico muito forte e uma narrativa que não te coloca em uma situação de reprodução de estereótipos. Não seguimos uma dramaturgia pronta, mas criamos cenas e construímos narrativas a partir de pequisas que fazemos junto aos sujeitos cujas histórias queremos contar na peça. Histórias que cruzamos com nossas vivências enquanto sujeitos negros e favelados. E somente em um segundo momento construímos, a partir disso, a dramaturgia para a peça como um todo.

Pode nos dar um exemplo?

Nosso primeiro espetáculo se chama Qual é a nossa cara? É uma homenagem aos habitantes da Nova Holanda, as pessoas anônimas que construíram essa favela. Porque você não presta homenagem ao anônimo. É sempre alguém que tem um grande nome. E isso é uma característica da Cia Marginal, a gente faz uma referência aos nossos próximos, contamos a história desses moradores que são anônimos. Como é que você eterniza a memória dessas pessoas? Num espetáculo. É o que fazemos.

A experiência do teatro experimental negro tem algum significado para você?

É difícil, em um processo como o nosso, conhecer autores negros e metodologias de autores negros. Há tentativas de recuperar a história do negro, do movimento negro que também se reflete em nossa vida pessoal. Se eu quiser contar a história da minha família, não consigo passar da terceira geração, porque só a conheço até minha avó. Eu, minha mãe, minha avó. É o mesmo com a história do teatro negro como a do Abdias do Nascimento, que era um grande ator, escritor, dramaturgo, professor universitário, político e ativista negro. Não a conhecemos bem porque ela foi apagada, assim como a história de qualquer pessoa negra é apagada todos os dias. Na Cia Marginal, não nos construímos como um teatro negro explicitamente. No nosso grupo, assim como nas nossas favelas, há pessoas brancas, não brancas e negras. Podemos dizer que fazemos um teatro negro e favelado.

Saiba mais em: https://www.dw.com/pt-br/o-racismo-est%C3%A1-inscrito-no-corpo-negro/a-54255034

Comente aqui