“Tiemblan los Chicago Boys.
Aguanta el movimiento feminista”
(Grafitti na fachada da Universidade Católica de Chile, 2018)
Por Veronica Gago | Tradução: Antonio Martins
1.
Com a ferramenta da greve feministas, mapeiam-se novas formas de exploração dos corpos e territórios, a partir de uma perspectiva simultânea de visibilização e insubordinação. A greve revela a composição heterogênea do trabalho em chave feminista, reconhecendo labores historicamente depreciados, mostrando sua engrenagem com a precarização geral e se apropriando de uma ferramenta tradicional de luta para transbordá-la e reinventá-la
A greve internacional abriu uma perspectiva feminista sobre o trabalho. Porque a perspectiva feminista reconhece o trabalho territorial, doméstico, reprodutivo e migrante, ampliando a partir da base a própria noção de classe trabalhadora. Começa por assumir que 40% dxs trabalhadorxs do nosso país (Argentina) estão em diversas dimensões da economia chamada informal e reivindicada como popular. Porque torna visível e valoriza o trabalho historicamente desconhecido e desvalorizado. Por isso, gostamos de afirmar que #TrabalhadorasSomosTodas.
Mas, de modo ainda mais radical: a greve feminista nos coloca em estado de investigação prática. O que chamamos de trabalho, a partir das experiência vital e laboral de mulheres, lésbicas, trans e travestis? Ao ritmo do que significa parar, vamos mapeando de modo prático a multiplicidade de tarefas e jornadas intensivas e extensivas que não são pagas, são mal pagas, ou são remuneradas sob estrita hierarquia. Algumas destas tarefas quase nem eram nomeadas; outras tinham nomes que as menosprezavam.
A greve feminista, além disso, ganha força a partir da impossibilidade: as que não podem parar, mas desejam fazê-lo; as que não podem deixar de trabalhar nem um dia, e querem rebelar-se contra este esgotamento; as que acreditavam que sem autorização da hierarquia do sindicato não havia como, e chamaram a greve as que imaginaram que a greve pudesse ser feita contra os agrotóxicos e as finanças. Todas e cada uma ampliamos as fronteiras da greve. Da conjunção entre impossibilidade e desejo, surge uma imaginação radical sobre a forma múltipla do parar feminista, que leva a greve a lugares insuspeitos, que a desloca em sua capacidade de inclusão de experiências vitais, que a reinventa desde os corpos desobedientes ao que é reconhecido como trabalho
Com a greve, construímos uma economia da visibilidade para o diferencial de exploração que caracteriza o trabalho feminizado. Ou seja, para a subordinação específica que marca o trabalho comunitário, de bairro, migrante, reprodutivo. Entendemos no dia a dia como sua subordinação se relaciona com todas as outras formas de trabalho. Também frisamos que há um ponto concreto de partida deste diferencial: a reprodução da vida, desde sua organização minuciosa e permanente, que é explorada pelo capital às custas de sua obrigatoriedade, gratuidade ou pagamento insuficiente. Mas fomos além: a partir da reprodução – historicamente negada, subordinada e ligada a processos de domesticação e colonização – construímos as categorias para repensar os trabalhos assalariados, sindicalizados ou não, atravessados por níveis cada vez maiores de precarização.
Com esta forma de entrelaçar todos os modos de produção de valor (e sua exploração e extração), mapeamos também a imbricação concreta entre as violências patriarcais, coloniais e capitalistas. Isso evidencia, uma vez mais, que o movimento feminista não é exterior à questão de classe, embora às vezes procure-se apresentá-lo assim. Tampouco à questão de raça. Não há possibilidade de “isolar” o feminismo destas tramas onde se situa o combate às formas renovadas de exploração, extração, opressão e domínio. O feminismo como movimento exibe a classe em seu caráter histórico, marcado pela exclusão sistemática de todxs aquelxs não consideradxs trabalhadores assalariados brancos. E, portanto, não há classe sem pensar sua racialização, inscrita em uma divisão internacional de trabalho. Evidencia-se assim até que ponto a própria narrativa e as fórmulas organizativas de classe foram modos de subordinação sistemática do trabalho feminizado e migrante e, como tal, pedra angular da divisão do trabalho capitalista, patriarcal e colonial.
2.
Com a greve, produzimos uma nova compreensão da violência. Saímos do gueto da violência doméstica para conectá-la com a violência econômica, laboral, institucional, policial, racista e colonial. Deste modo, fica evidente a relação orgânica da violência machista e feminicida com a atual forma de acumulação de capital. O caráter anticapitalista, anticolonial e antipatriarcal do movimento feminista, em seu momento de massificação, vem de estabelecer e difundir esta compreensão de maneira prática.
Com a greve, produz-se um ponto de vista simultâneo de resistência à exploração, de insubordinação ao trabalho e de desobediência financeira.
Isso nos permite investigar o vínculo entre os conflitos nos territórios, diante das iniciativas neoextrativistas e de violência sexual; o nexo entre assédio e relações de poder, nos espaços laborais; também o modo como se combina a exploração do trabalho migrante e feminizado com a extração de valor realizada pelas finanças; o declínio da infraestrutura pública nos bairros e a especulação imobiliária (formal e informal); a clandestinidade do aborto e a criminalização das comunidades indígenas e negras. Todas estas formas de violência tomam o corpo das mulheres e os corpos feminizados como botim de guerra. Esta conexão entre as violências das despossessões e dos abusos não é apenas analítica: é praticada como elaboração coletiva para entender as relações de poder em que os feminicídios se fazem compreensíveis e para diagramar uma estratégia de organização e autodefesa. Neste sentido, o movimento feminista pratica uma pedagogia popular com este diagnóstico, que relaciona violências e opressões e o faz desde a iniciativa de desacatá-las.
Neste ponto, fugir da vitimização como narrativa totalizadora permite que o diagnóstico sobre as violências não se traduza em uma linguagem de pacificação, nem de puro luto ou lamento. Também repele as respostas institucionais que reforçam o gueto e que pretendem isolar ou resolver o problema com uma secretaria ou um programa. Estes instrumentos não deixam de ser importantes, sempre e quanto não sejam parte de uma tutelagem que codifica a vitimização e restringe a violência como unicamente doméstica. O diagnóstico da interseccionalidade das violências tornou-se possível por meio da greve, que é onde se constrói e amplifica outro lugar de fala e outro horizontes organizativo do movimento. O mapeamento amplo que isso permitiu amplia nosso olhar e vai às raízes da conexão entre patriarcado, capitalismo e colonialismo, traduzindo-a como construção de um sentido comum compartilhado.
3.
O movimento feminista atual caracteriza-se por duas dinâmicas singulares: a conjunção de massividade e radicalidade. É capaz de fazê-lo por construir proximidade entre lutas muito diferentes. Desta maneira, inventa e cultiva um modo de transversalidade política. O feminismo atual explicita algo que não parecia óbvio: que ninguém precisa de um território, refutando assim a ilusão metafísica do indivíduo isolado. Todxs estamos situadxs e, também neste sentido, o corpo começa a se perceber como um corpo-território. O feminismo, como movimento, deixou de ser uma exterioridade que se relaciona com “outrxs”, para ser tomado como chave para ler o conflito em cada território (doméstico, afetivo, laboral, migrante, artístico, camponês, urbano, feirantes, comunitário, etc). Isso faz com que emerja um feminismo de massas e intergeracional, porque é apropriado pelos mais diversos espaços e experiências.
Como se produz esta composição que se caracteriza por ser transversal? A partir da conexão entre as lutas. Mas a trama construída entre as lutas diversas não é espontânea nem natural. Em relação ao feminismo, prevaleceu o contrário, durante muito tempo: era entendido em sua variante institucional e ou acadêmica, mas historicamente dissociado de processos de confluência popular. Algumas linhas genealógicas fundamentais tornaram possível a expansão atual. Na Argentina, identificamos quatro: a história de luta pelos direitos humanos desde os anos 1970, protagonizada pelas Mães e Avós da Praça de Maio; as mais de três décadas do Encontro Nacional de Mulheres (agora plurinacional de mulheres, lésbicas, trans e travestis); a irrupção do movimento piqueteiro, de um protagonismo também feminizado no momento de enfrentar a crise social do começo do século; e uma ampla história do movimento de dissidências sexuais, que vai da herança da FLH (Frente de Libertação Homossexual) dos anos 70 à militância lésbicas pelo acesso autônomo ao aborto e o ativismo trans, travesti, intersexual e transgênero que revolucionou os corpos e as subjetividades do feminismo contra os limites biologicistas.
A transversalidade alcançada a partir da organização da greve atualiza estas linhas históricas e projeta um feminismo de massas, enraizado nas lutas concretas das trabalhadoras da economia popular, nas migrantes, nas cooperativistas, nas defensoras dos territórios, nas precarizadas, nas novas gerações de dissidências sexuais, nas donas de casa que renegam encerrar-se, na luta pelo direito ao aborto que é a luta ampliada pela autonomia do corpo, nas estudantes mobilizadas, nas que denunciam os agrotóxicos, nas trabalhadoras sexuais. Estabelece um horizonte comum em termos organizativos e funciona como catalisador prático.
O poderoso é que ao integrar esta multiplicidade de conflitos, redefine-se a dimensão de massas a partir de práticas e lutas que foram historicamente definidas como “minoritárias”.
Com isso, a oposição entre minoritário e majoritário se desloca: o minoritário ganha escala de massas como vetor de radicalização, no interior de uma composição que não para de se expandir. Desafia-se assim a máquina neoliberal de reconhecimento de minorias e de pacificação da diferença.
Esta transversalidade política nutre-se a partir dos diversos territórios em conflito. Constrói uma afetação comum para problemas que tendem a ser vividos como individuais; e um diagnóstico político para as violências que tendem a ser encapsuladas como domésticas. Isso complexifica certa ideia de solidariedade que supõe um grau de exterioridade que ratifica a distância em relação a outrxs. A transversalidade prioriza uma política de construção de proximidade e alianças, sem desconhecer as diferenças de intensidade nos conflitos.
Saiba mais em: https://outraspalavras.net/feminismos/oito-teses-sobre-a-revolucao-feminista/
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