Clipping

“Pandemia deve elevar tanto a fome como a obesidade entre brasileiros”

Ex-chefe da FAO, José Graziano se diz preocupado com queda na qualidade da alimentação de crianças fora da escola, bem como com fim do auxílio emergencial, que pode levar milhões a passarem fome e dependerem de caridade.

Os efeitos da pandemia de covid-19 na alimentação dos brasileiros são múltiplos e incluem a fome, mas também o seu problema inverso, a obesidade. O fechamento das escolas, que tirou de muitas crianças sua refeição mais completa e balanceada do dia, e a permanência de milhões de pessoas em casa levaram ao aumento do consumo de alimentos processados e ultraprocessados.

A análise é de José Graziano da Silva, diretor-geral da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) de 2012 a 2019 e ministro de Segurança Alimentar e Combate à Fome no início do governo de Luiz Inácio Lula da Silva. Em entrevista à DW Brasil, ele projeta um aumento da obesidade entre adultos e crianças no período pós-pandemia. A condição já atingia 20% dos brasileiros em 2019, contra 12% em 2006.

“A obesidade em crianças compromete as gerações futuras, [pois] crianças obesas têm maior probabilidade de desenvolver doenças crônicas não transmissíveis, como doenças cardíacas e diabetes”, afirma Graziano, hoje consultor do Instituto Comida do Amanhã.

Indagado sobre o problema da desnutrição, Graziano diz ser provável que o Brasil já tenha voltado ao Mapa da Fome, do qual saiu pela primeira vez em 2014, devido a uma combinação perversa de crise econômica prolongada com enfraquecimento de políticas públicas voltadas à segurança alimentar.

O Mapa da Fome reúne países nos quais mais de 5% da população consomem diariamente menos calorias do que o recomendado. Os últimos dados oficiais disponíveis sobre o Brasil são de 2018, quando 4,6% da população enfrentava insegurança alimentar grave. Graziano estima que essa parcela dos brasileiros hoje supere os 6%.

O fim do auxílio emergencial, em dezembro, sem a ampliação do Bolsa Família e a retomada do emprego preocupa o especialista, pois deve levar os brasileiros a reduzirem a qualidade de suas dietas, isso “se não passarem fome e começarem a depender de caridade”, afirma.

DW Brasil: Há um debate entre pesquisadores sobre se o Brasil já voltou ou não ao Mapa da Fome. Qual é a sua análise e por que essa discussão é relevante?

José Graziano da Silva: Pelos dados do IBGE, o Brasil tinha, em 2018, 4,6% da população com insegurança alimentar grave. Para voltar ao Mapa da Fome, precisa ter pelo menos 5%, então tecnicamente em 2018 não tinha voltado ainda. Escrevi um artigo mostrando uma projeção linear e encontrei um número perto de 15 milhões de pessoas passando fome em 2020, o que significa 6,6% da população. Ou seja, se a tendência registrada pelo IBGE entre 2013 e 2018 continuou, em 2020 nós com certeza já voltamos ao Mapa da Fome.

Por que isso é relevante? Um país com menos de 5% da população com fome, pelas estatísticas internacionais, não é considerado relevante [devido ao] erro de estimativa, que pode reduzir bastante esse valor. Cinco por cento ou mais significa que a fome é um problema grave no país. Também é emblemático no caso do Brasil: levamos dez anos para sair do Mapa da Fome aplicando políticas de segurança alimentar, e voltamos a ele em pouco mais de quatro ou cinco anos.

José Graziano da Silva, ex-diretor-geral da FAO, em foto de 2015
José Graziano da Silva, ex-diretor-geral da FAO

Qual é a responsabilidade da crise econômica e de falhas de políticas públicas para essa alta da fome?

O número das famílias ingerindo uma dieta de qualidade inferior ao mínimo necessário é [hoje] muito maior, e isso se deve à crise econômica prolongada. Desde a crise das commodities, em 2008-2010, o Brasil não conseguiu retomar o crescimento econômico satisfatório. Isso significa aumentar o desemprego e não gerar emprego de qualidade, só empregos precários, bicos, trabalho informal.

Soma-se a isso a irresponsabilidade do governo de desmontar as políticas públicas de segurança alimentar e nutricional e congelar as políticas de proteção social, como o Bolsa Família. O direito à alimentação é assegurado pela Constituição, portanto uma política de segurança alimentar e nutricional deveria ser uma política de Estado, independente dos governos.

Saiba mais em: https://www.dw.com/pt-br/pandemia-deve-elevar-tanto-a-fome-como-a-obesidade-entre-brasileiros/a-55331769

Comente aqui