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A direita quer desinformação e ignorância fabricada, não democracia

A maré crescente da política fascista foi acompanhada por novas práticas antidemocráticas e novos modos de opressão e expressão

Por Henry A. Giroux / Créditos da foto: Ilustração da asa direita branca do Grande Selo dos Estados Unidos cobre os olhos do homem voltado para a frente (Jared Rodriguez/Truthout)

A ignorância fabricada agora prospera em um mundo de desastres entrelaçados. Esta era de catástrofes devastadoras é parte integrante de uma era de economia de sobrevivência dos mais aptos, alimentada pelo aumento do autoritarismo de direita e dos extremistas políticos. O comando dos mercados e sua noção legitimadora do darwinismo econômico representam um retorno às enormes desigualdades e à cultura de crueldade que marcaram a Idade de Ouro [últimas décadas do século XIX nos EUA]. Foi uma era em que devoções religiosas ao empreendedorismo foram usadas para legitimar mercados sem restrições e a concentração de poder nas mãos de uma elite financeira. Em suas versões atualizadas, a nova Idade do Ouro do capitalismo neoliberal continua, de modo vingativo, a recompensar os ultrarricos e poderosos enquanto assola trabalhadores, imigrantes e pobres não brancos.

Em uma época de pandemias e pragas econômicas e políticas, tem havido uma aceleração de medo, pavor e ansiedade, que alimenta o crescente extremismo de direita e o retorno de uma política fascista atualizada. A era atual é ainda mais cruel, pois, em uma época de desigualdade impressionante, essas populações, vistas como “mortos-vivos” e cada vez mais despojados de seus direitos civis, lutam, não mais pela promessa de mobilidade social e uma vida melhor, mas por mera sobrevivência. O roteiro do neoliberalismo agora é escrito na linguagem do capitalismo gangster. A linguagem da democracia, naquela época como hoje, é reduzida a valores comerciais, consumidores concorrentes, desregulamentações, a privatização de tudo, a busca incessante de lucros, interesse próprio desenfreado, uma pandemia de mentiras, noções estreitas de responsabilidade individual e a busca sem fim por lucros. O domínio dos mercados e a desobediências às leis pelo poder financeiro agora substituem qualquer noção viável de responsabilidade governamental. Na nova Idade do Ouro, o apelo à democracia funciona mais uma vez como um disfarce, senão como uma ficção implacável, para promover o roubo e o oportunismo político, oferecendo um álibi fácil para os crimes do capitalismo. As brutalidades do fascismo voltaram e a sombra da morte parece estar em toda parte.

Até a eleição de Ronald Reagan, a democracia era tolerada como um ideal, embora falsamente encenada. Mas depois das rebeliões sociais da década de 1960, o tom de tolerância mudou para desconfiança. Isso ficou claro quando o influente cientista político Samuel Huntington observou em seu notório Crisis of Democracy que a democracia tinha limites desejáveis que deviam ser postos em prática. Essa desconfiança na democracia foi articulada mais adiante no relatório da Comissão Trilateral de 1975, que afirmou que os problemas que os Estados Unidos enfrentaram nas décadas de 1960 e 1970 foram, em parte, o resultado de “um excesso de democracia”.

Os tempos mudaram. O capitalismo degenerou em um descarado empreendimento criminoso e não há mais desconfiança na democracia; pelo contrário, ela é desprezada, temida e sujeita ao desdém dos vigaristas que se passam por políticos. Em vez de haver excesso de democracia, o momento histórico atual está sendo marcado pelo apelo para sua completa eliminação. Sob a influência crescente de extremistas de direita como o atual Partido Republicano nos Estados Unidos, os ventos ideológicos do momento clamam pela substituição do ideal e da promessa de democracia pelos ditames do nacionalismo autoritário, da supremacia branca e de uma política de exclusão – todos os quais ecoam um passado perigoso em sua promoção de uma versão atualizada do fascismo.

A maré crescente da política fascista tem sido acompanhada por novas práticas antidemocráticas e modos de opressão e expressão. As lutas e revoltas democráticas são agora mais baseadas em imagens, dado o crescente papel da mídia na normalização de ideologias extremistas e na promoção de modos de identidade e agência em ressonância com ideias e valores fascistas. Por exemplo, de sua posição no horário nobre como apresentador de televisão na Fox News, Tucker Carlson se tornou o propagandista mais influente e a voz mais visível da ideologia do ressentimento branco e a teoria da “Grande Substituição’. Ele também subiu ao topo do ecossistema da mídia dominante com sua política de nacionalismo branco, sua crítica implacável de liberais e esquerdistas e seu apoio à alegação infundada de Donald Trump de que a eleição foi “fraudada” e roubada. Além disso, Carlson também é uma das vozes anti-imigração mais poderosas do país. Ele se refere à imigração como uma forma de expiação liberal e afirmou que: “temos a obrigação moral de admitir os pobres do mundo, dizem-nos, mesmo que isso torne nosso próprio país mais pobre, mais sujo e mais dividido”. Como Michael Kranish aponta, citando o conservador Christopher Rufo, “’Tucker Carlson Tonight‘ é o programa de maior audiência nos canais de notícias a cabo e, em grande medida, Tucker molda a narrativa para a política conservadora. Tucker não reage às notícias; ele cria as notícias.”

Tucker Carlson e a Fox News são indicativos do poderoso papel que a mídia social e uma cultura baseada na imagem agora desempenham na formação da política, particularmente na política de extrema direita. É parte de uma nova política de desinformação estimulada por máquinas de ‘desimaginação’ financiadas por empresas e aparatos culturais que comercializam mentiras, ignorância e resistência à verdade. A ignorância fabricada é a nova face da submissão e da fuga contínua da responsabilidade política e social. A desinformação tornou-se uma nova forma de necropolítica, espalhando medo, mentiras, ansiedade e inventando bodes expiatórios – política tornada mais óbvia na espiral de mortes causada, em parte, pela liderança desastrada de Trump no curso da pandemia de COVID-19. A mídia social tornou-se venenosa e perigosa por rastrear nossas necessidades, interesses, desejos e inclinações políticas, enquanto espalha informações falsas que alinham a consciência individual e coletiva com as forças de um autoritarismo aperfeiçoado. Por exemplo, a mídia social de direita incita continuamente a resistência à vacina entre uma ampla gama de conservadores, fundamentalistas religiosos e norte-americanos das zonas rurais, indiferentes à trágica quantidade de sofrimento e mortes que essas mensagens tanto legitimam quanto produzem. A ignorância fabricada se funde com um conjunto horrível de emoções preconceituosas e odiosas que avança através de milhões de norte-americanos como uma corrente elétrica. Como David Frum argumenta, “a América pró-Trump decidiu que recusar a vacina é uma declaração de identidade e um teste de lealdade”. A política não é mais simplesmente uma luta por instituições econômicas e relações de poder; é também uma luta por consciência, ideias, identidade e agência.

A era histórica atual testemunha uma fusão acelerada de cultura, poder e mídia social, que contribui para o desenvolvimento de novas formações sociais que produzem tsunamis de informações enganosas, chegando àquilo que a Organização Mundial da Saúde rotulou de “infodemias”. Nesse caso, as ecosferas da mídia e as máquinas de ‘desimaginação’ criaram entre grandes segmentos do público uma fuga do pensamento crítico e da responsabilidade social. Isso é ainda mais acentuado pelo que Zygmunt Bauman chamou de “tranquilização ética” – um tipo de silêncio terrível e recusa de opinar em face da injustiça. “Infodemias” são máquinas de despolitização que abrem caminho através da ordem social e da vida cotidiana, obscurecendo a conexão entre as relações sociais e as configurações de poder que as moldam, substituindo o que Wendy Brown chama de “vocabulários emocionais e pessoais por políticos na formulação de soluções para problemas políticos.” Consequentemente, torna-se difícil para o público, muitas vezes sem acesso a informações críticas, traduzir problemas privados em preocupações públicas. À medida que os interesses privados prevalecem sobre o bem público, os espaços públicos são corroídos e a vantagem pessoal de curto prazo substitui qualquer noção mais ampla de engajamento cívico e responsabilidade social. As “infodemias” tornam difícil para o público imaginar futuros alternativos e os horizontes de possibilidade começam a desaparecer.

Sob tais circunstâncias, para citar C. W. Mills, estamos testemunhando o colapso da democracia, a infantilização do pensamento, o desaparecimento de intelectuais críticos e “o colapso daquelas esferas públicas que oferecem um senso de agência crítica e imaginação social”. Os comentários prescientes de Mills amplificam o que se tornou uma realidade trágica. O que falta nas sociedades de mercado neoliberais são aquelas esferas públicas – da educação pública superior à mídia convencional e à cultura digital – onde as pessoas conseguem desenvolver o que pode ser chamado de imaginação cívica.

A “infodemia” tem contribuído muito para o que Timothy Snyder chama de morte da verdade e da democracia. Em suas palavras: “à medida em que perdemos pessoas que produzem fatos, corremos o risco de perder a própria ideia da verdade … A morte da verdade também acarreta a morte da democracia, pois as pessoas só podem governar quando têm os fatos dos quais precisam para se defender do poder.” As guerras culturais têm sido um grande sucesso para a extrema direita e precisam ser levadas a sério, encaradas como fundamentais para qualquer noção viável de política. Um novo modo de política cultural e educacional deve ser desenvolvido a fim de promover o pensamento crítico, encorajar a dissidência e usar o domínio cultural para ganhar poder a serviço da resistência generalizada. Uma ressalva política é o entendimento de que a luta contra o capitalismo gangster não pode ser reduzida à luta por ideias, consciência e agência.

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