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Cinema de resistência

Respostas enérgicas de reafirmação da indústria do audiovisual brasileiro às tentativas de submissão da nossa cultura mostram forte resistência ao desprezo com que ela está sendo tratada – em particular ao incêndio na Cinemateca Brasileira

Por Léa Maria Aarão Reis / Créditos da foto: ‘Mangueira em 2 Tempos’ (Reprodução/Youtube)

”Nem parece acidente”, afirmou o diretor pernambucano Kleber Mendonça Filho, de passagem por Paris, voltando de Cannes onde foi jurado de um dos festivais de cinema mais importantes do universo cinematográfico. Durante a grande festa da Croisette o autor do filme Bacurau responsabilizou o atual governo brasileiro pelas mais de 500 mil mortes por Covid-19 no país e pelo desmonte do cinema brasileiro. Para ele, assim como para uma multidão de indivíduos ligados de algum modo ao áudio-visual no Brasil – trabalhadores técnicos, artistas, cinéfilos e público em geral -, o incêndio em um dos prédios da Cinemateca Brasileira, em São Paulo, pode ter sido intencional. Uma retaliação à corajosa resistência, produto de um esforço hercúleo que a indústria do audiovisual nacional vem desenvolvendo para não se submeter e sobreviver.

Faz sentido o que diz Mendonça, e há fatos que não devem ser menosprezados. Para o cineasta (o incêndio) é ”muita coincidência” depois do Museu Nacional pegar fogo, em 2018 e do seu próprio alerta à comunidade cinematográfica internacional, há 20 dias, em Cannes, sobre a precariedade com que atualmente trabalha a nossa indústria de filmes. Em uma entrevista ao jornal Libération, ele observou: ‘As perdas ainda não são conhecidas com precisão, mas são inestimáveis”.

”Foram (queimados) quatro toneladas de arquivos de papel de instituições públicas que construíram o cinema brasileiro durante 60 anos”! lamentou Roberto Gervitz, um dos líderes do movimento SOS Cinemateca. Eles estavam sendo catalogados antes do brutal fechamento da cinemateca, meses atrás. ”Trata-se de uma perda irrecuperável para os pesquisadores”.

 “O cinema brasileiro depende de financiamento público. Mais de 800 projetos estão paralisados ou avançam atualmente à fórceps e a golpes de intervenção judicial”, lembra Mendonça. ”O incêndio é uma sabotagem que mostra o desprezo pela cultura. Alguns cineastas começam a se perguntar sobre a oportunidade de manter suas obras em um santuário tão fragilizado”.

Como centenas de outras vozes que vêm se manifestando sobre o trágico e intolerável episódio, Mendonça e Gervitz criticaram o fechamento da Cinemateca Brasileira, que detém mais de 90 mil títulos, é a maior da América Latina e uma das cinco mais importantes do mundo – ela foi criada tendo como modelo a célebre Cinemateca Francesa, de Paris – e a situação lamentável em que a instituição se encontrava provocada pela cafajestada premeditada do governo federal para humilhar os ”marxistas culturais” no seu entender sempre boçal.

Como que tripudiando sobre o desastre mais do que anunciado – e praticamente programado – a tal Secretaria Especial de Cultura, que hoje é parte do Ministério do Turismo (!) por decreto do atual administrador do Brasil, um dia após o incêndio publicou afinal o edital, engavetado há nove meses, para contratação de um entidade gestora da Cinemateca que se encontrava em um inacreditável deus-dará denunciado diversas vezes publicamente.

O edital: um aporte de dez milhões de reais anuais pelo período de cinco anos, valor 50% menor do que o previsto em estudo de publicização realizado pelo próprio Ministério do Turismo no ano passado!

Mas há respostas ao insulto e à chacota que representam essa queima – planejada? programada? anunciada, sem dúvida – de 60 anos de história da política pública para o cinema, entre outros ítens e documentos que ainda estão sendo contabilizados.

É uma resposta que está sendo dada, com um imenso esforço e em caráter de urgência, até que a situação da cultura brasileira volte a se normalizar, e siga sendo respeitada, consagrada, celebrada e reconhecida por todos nós através dos canais institucionais legítimos do país.

Cena de Xapiri, de Leandro Lima, Gisela Motta, Laymert Garcia dos Santos, Stella Senra e Bruce Albert (Reprodução)

Algumas das respostas da resistência à tentativa de asfixiar a cultura do país são estas, abaixo. Anotem.

Há bons filmes brasileiros em cartaz ou em vias de lançamento nas plataformas de streaming e estão programados festivais e mostras para segundo semestre. O filme de Ana Maria Magalhães, Mangueira em 2 Tempos, por exemplo. Foi o Melhor Documentário no INYFF, o International New York Film Festival, e mostra a influência sedimentada da cultura do samba na vida das periferias das grandes cidades.

Outros filmes brasileiros disponíveis: Ana.Sem título, de Lucia Murat, Noites de alface, de Zeca Ferreira, MinhaFortaleza,OsFilhosdeFulano, de Tatiana Lohmann. Até o fim do ano virão outros cartazes. E o vídeo Voluntário **** 1864, de Sandra Kogut, sobre ”os anônimos da vacina”, no Globoplay.
A Mostra de Cinema de Gostoso, no Rio Grande do Norte, na cidade de São Miguel do Gostoso, em novembro, é expressão importante desta temporada efervescente. Dura cinco dias e mobiliza os moradores da cidade e os muitos turistas. Eles assistem aos filmes instalados na platéia montada na areia da praia e participam ativamente do evento.

Saiba mais em: https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Cinema/Cinema-de-resistencia-/59/51229

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