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Biscoito da Sorte da China é triturado

Por Michael Hudson, Ross Ashcroft | Créditos da foto: (Central European University) |Traduzido por: Carlos Alberto Pavam

Com a China se tornando cada vez mais rica, investidores ocidentais querem um bom pedaço. Um desses investidores é um cavalheiro otimista chamado George Soros. Entretanto, os chineses estão conscientes de que com os investimentos ocidentais vem a desigualdade. Assim, com a China pensando em como promover um crescimento econômico adequado, perguntamos: a China vai aprender com os erros ocidentais?

(Esta é a tradução da transcrição da entrevista do economista estadunidense Michael Hudson ao apresentador do programa semanal Renegade Inc, Ross Ashcroft, em Londres)

Ross Ashcroft Michael Hudson, é sempre um prazer tê-lo no Renegade Inc.

Michael Hudson É bom estar de volta. Obrigado por me receber

Ross Michael, estamos com você no momento em que muitas pessoas pensavam que o mundo unipolar poderia ter mantido sua supremacia. No fim, não manteve. O mundo multipolar chegou para ficar. Ultimamente você tem sido mais crítico a George Soros, não menos. O senhor Soros tem lançado insultos sobre várias coisas, mas uma delas é sobre a economia chinesa e porque a BlackRock, entre outros, não deveria ter permissão para investir lá, porque no fim das contas seria prejudicial aos interesses estadunidenses. Você poderia traduzir isso para nós, porque parece muito complicado?

Michael Hudson Bem, o sonho de George Soros é que a China faça o que Yeltsin fez na Rússia – que privatize a economia, realmente a partilhe e deixe investidores estadunidenses assumirem o pedaço mais lucrativo. Desta forma, os investidores estrangeiros seriam capazes de abocanhar lucros da indústria chinesa, do trabalho chinês e a China se tornaria a bolsa de valores queridinha do mundo, assim como a bolsa de valores da Rússia foi a líder na subida das bolsas em 1994-96. A China seria administrada para beneficiar os investimentos dos banqueiros dos EUA. Soros está furioso porque a China não está seguindo a política neoliberal seguida pelos Estados Unidos. Ela segue uma política socialista, querendo manter seu superávit econômico em casa para beneficiar seus próprios cidadãos, não os investidores estadunidenses. Para Soros, isso é um choque de civilizações. A estratégia que ele propõe é sufocar a economia chinesa aplicando sanções contra ela, parar de investir nela a fim de forçá-la a fazer o que o Yeltsin fez para a Rússia.

Ross Vamos ouvir as palavras dele próprio. Ele disse: “A iniciativa da BlackRock põe em risco os interesses de segurança nacional dos EUA e de outras democracias porque o dinheiro investido na China irá fortalecer o regime do presidente Xi, que é repressivo internamente e agressivo no exterior. O Congresso deveria aprovar uma resolução dando poderes à Comissão de Valores Mobiliários para limitar o fluxo de fundos para a China. O esforço tem de ter apoio bipartidário”. Ele não está medindo as palavras, né?

Michael Hudson Ele pensa que a China precisa dos dólares americanos para construir suas fábricas e investir. Ele pensa que de alguma forma a balança de pagamentos da China vai desmoronar sem o mercado dos EUA, sem os investidores dos EUA dizendo ao presidente Xi o que fazer. O governo chinês não teria ideia de onde investir e de como fazer funcionar o ‘livre mercado’, quer dizer George Soros e BlackRock e outras companhias. Ou seja, ele vive no mundo dos sonhos onde outros povos precisam de nós. É como o cara que não percebe que sua namorada não precisa mais dele.

Ross Me parece que existe uma distinção aqui da qual os chineses estão bem conscientes, e ela é entre os economistas clássicos e os economistas neoclássicos. Os economistas clássicos entenderam a ideia de riqueza não obtida pelo trabalho, renda de capital. Os economistas neoclássicos buscam ativamente a renda de capital porque isso é central na cartilha deles. Você poderia estender esses conceitos? E se é o caso, é por isso que você fala em choque de civilizações?

Michael Hudson Bem, você foi no ponto certo, Ross. As pessoas pensam que a vantagem da China é sua abundante, barata mão de obra, ou o governo construindo infraestrutura. Mas o que guia isso é o entendimento do tipo de economia que vem até antes de Marx, do Adam Smith e John Stuart Mill e outros economistas clássicos. Eles perceberam que existe uma diferença entre rendimentos do trabalho e criação de riqueza empregando trabalho para produzir bens, para vender com lucro e então reinvestir esse lucro e formar mais capital, em contraste com simplesmente comprar uma propriedade que renda aluguel, comprar terra e deixar o preço subir sem que o proprietário faça nada, comprar um monopólio e apenas deixar o preço subir – cobrando preço monopolístico como fazem as companhias farmacêuticas nos EUA. A China entende a diferença entre renda de trabalho e renda de capital, entre investimento produtivo e investimento improdutivo.

Nos Estados Unidos, se percebessem a diferença, eles veriam que por meio da renda de capital você pode produzir riqueza como um parasita muito mais rapidamente do que criando verdadeira riqueza. É mais barato ser parasita do que hospedeiro. Assim a maior parte da estratégia financeira de Wall Street envolve como conseguir algo por nada. Como conseguir um almoço de graça? Bem, para fazer isso como uma grande política, você deve começar dizendo às pessoas o que disse Milton Friedman: Não existe almoço gratuito. Mas toda a Wall Street está atrás de um almoço gratuito. Eles querem conseguir barato bens chineses, como Soros fez com bens pós-soviéticos. Eles buscam de novo direitos monopolísticos. Eles querem comprar ativos chineses por preço baixo e deixar a China fazer o serviço, pagar juros para os estadunidenses que providenciaram o dinheiro que o Banco Central dos EUA cria em seus computadores, ou que George Soros já ganhou em grande parte conseguindo o almoço grátis com o Banco da Inglaterra, em que apostou contra ele, provocando a desvalorização a libra esterlina.

Ross Algumas pessoas chamam isso de mundo livre. Outros chamam de democracia. Outros, para os EUA, chamam de oligarquia moderna. Você acha que os chineses olharam para os EUA e para o Ocidente no geral, entenderam que privatizar tudo que produz renda tem levado no fim ao declínio da sociedade?

Michael Hudson Eles começam a pensar dessa forma. A maioria dos marxistas chineses focava no Volume 1 de O Capital, que trata sobre patrões contratando empregados e colocando-os para trabalhar e lucrando com a margem de lucro. Apenas nos últimos anos os Volumes 2 e 3 de O Capital vieram para o centro das discussões na China. E são os Volumes 2 e 3 que falam sobre a renda econômica. E assim a China começou a perceber que os Estados Unidos não são uma economia industrial. Não vamos entender o que está acontecendo nos Estados Unidos, Inglaterra ou Europa lendo apenas o que Marx escreveu no Volume 1 de O Capital, porque eles não estão mais ganhando dinheiro industrialmente. Eles fazem dinheiro sendo uma economia rentista, por senhorio, por monopólios e por crédito bancário, que Marx discutiu nos Volumes 2 e 3.

Agora eles estão ampliando a discussão. Pela primeira vez, você tem, especialmente no último mês, a China questionando, ‘Queremos deixar que os investidores chineses ganhem dinheiro, financeiramente, comprando casas, tornando-se senhorios ausentes e esperando que haja uma inflação no preço dos imóveis com aconteceu nos Estados Unidos? Ou queremos manter o preço das casas baixo e não inflacionado pela especulação, pela criação de crédito e pelas finanças?’ Eles agora perceberam que para manter baixo o custo de vida na China, você tem de manter o preço da moradia baixo. Isso significa que você não quer que imóveis se tornem uma commodity, um investimento para proprietários ausentes e senhorios ganharem dinheiro. Você quer que o imóvel seja para o povo chinês morar. Isso significa moradia a preço baixo, não habitação com preço alavancado por dívidas como vemos nos EUA.

Ross Conheço alguém que trabalha num barco resgate no rio Tâmisa e toda noite tem uma vista que ninguém mais tem. E ele sobe e desce o Tâmisa e vê todos aqueles arranha-céus, com excesso de propriedade, de bens imóveis. E nenhum tem qualquer luz acessa. A razão é que investidores estrangeiros, predominantemente chineses, vieram e compraram, isolaram todo o lugar, fecharam a porta e voltaram para a China – sentam e esperam, basicamente aguardam que o valor do imóvel suba para embolsar o lucro 10 anos depois. Você pode ver o que isso traz para a comunidade local, escolas, lojas, serviços de infraestrutura e tudo o mais – isso é absenteísmo. Você acha que esses investidores estrangeiros, a liderança em Pequim, viram esse modelo em todo o mundo e pensaram, ‘tudo bem, podemos fazer isso lá, mas precisamos repatriar algum dinheiro por causa de questões da liquidez que conseguimos lá. Mas não temos isso como modelo central de negócios ou modelo econômico para nossa economia’. Você acha que acendeu essa luz?

Michael Hudson Bem, eles vêm discutindo isso em relação a Hong Kong pelos últimos 10 anos. Hong Kong é o exemplo típico de multibilionários no mercado imobiliário. Eles pensam que uma economia socialista não é aquela que fica rica criando senhorios ausentes. Tem havido um grande fluxo de investimento chinês para o Ocidente. Ele está presente em Nova York, no West Side, todos apartamentos no escuro, sem luzes à noite, porque se trata de proprietários ausentes. Thorstein Veblen, em 1923, escreveu um livro, Absentee Ownership, dizendo que o imóvel deveria ser realmente para moradia, não um meio de especulação. Mas nos EUA, o setor imobiliário tem tudo a ver com desenvolvimento cívico. Tem a ver com como aumentar o preço dos imóveis e criar bolhas para especuladores então jogarem a propriedade no colo de alguém. Não tenho certeza se isso vai acontecer por muito mais tempo, e em Londres agora que ocorreu o Brexit. Mas acho que o que a China tenta fazer é perguntar como criar uma economia doméstica onde o povo chinês ganhe dinheiro produtivamente. Onde eles possam não apenas arcar com uma casa para eles, mas, se investirem, possam fazê-lo de modo a tornar a China mais rica, não comprando bens nos EUA, Inglaterra e Europa que geram juros e renda não produtivos.

Ross O que você acha do quadro que vimos recentemente nas mídias sociais de imensos blocos de torres não finalizados, residenciais, que não foram concluídos em oito anos e que agora eles apenas puseram dinamite embaixo e derrubaram tudo? Explodindo tudo aquilo significa que você se livra de todo aquele excesso de oferta, significa que aquele estoque de apartamentos não está no mercado e não é para se especular com ele?

Michael Hudson Eram prédios que eles planejaram previamente para o que pensavam seria um êxodo rural, mas o êxodo rural não aconteceu naquelas cidades. Neste momento, a China se concentra, penso que pela primeira vez em muitos anos, bem mais no desenvolvimento rural. A China ainda é primariamente uma economia rural, economia de vila. A maioria das pessoas não percebe isso. Quando você pensa na China, você pensa em Xangai e Shenzhen e Pequim, mesmo em Wuhan. Mas a verdade é que muito da China é rural e não há, verdadeiramente, a possibilidade de acontecer um êxodo rural para as cidades porque você tem um tipo de programa de passaporte na China. Você tem de ter uma permissão para viver em Pequim, assim a cidade não vai ficar mais superpovoada do que é agora. Eles estão tendo de reorientar o desenvolvimento muito mais para as áreas rurais que não acompanharam o ritmo das áreas de fábricas fortemente industriais. Assim, eles queriam muita construção, não apenas para gerar emprego e construir, mas para pensar no caso de eles precisarem dessas habitações para o êxodo rural, eles precisavam delas prontas. Agora eles perceberam, ‘tudo bem, não estamos seguindo essa ideia em particular do planejamento central’. O planejamento central é muito difícil. É muito difícil construir previamente pequenas cidades inteiras sem ninguém lá. É muito mais fácil esperar até que existam verdadeiras forças econômicas te orientando para desenvolver. Então, nesse sentido, a China está tendo mais orientação de mercado. Mas ao mesmo tempo, ela molda o mercado, cada vez mais, para criar prosperidade doméstica e oportunidades de ganhos, não oportunidades improdutivas extratoras de renda, mas oportunidades produtivas. Trata-se de um processo em curso de reavaliação, reestruturação, reparação e melhoria da economia.

Ross Michael, falamos no começo deste programa que existe, digamos, uma queda de braço entre o unipolar e o multipolar. A China olhou para o Ocidente e deve ter concluído agora, os russos também, que o modelo econômico ocidental é fatalmente errado. De várias formas, o que você conseguiu nos EUA foi uma oligarquia moderna. Na Europa, você tem um sistema bancário zumbi. E basicamente pelos últimos 30, 40 anos tem extraído tanta renda quanto possível e tem apresentado isso como um milagre econômico. Para evitar tudo isso, essa bifurcação na estrada se cristalizou. Qual será, na sua opinião, a decisão de Pequim, quando eles olham para a economia de uma forma mais holística e percebem que querem melhorar a parte do cidadão médio chinês?

Michael Hudson Bem, como destaquei, o conceito de economia deles entende a distinção entre renda do trabalho e renda do capital, entre lucro pela produção e renda por monopólios e propriedades. Eles querem lucros pela criação de valor, não renda improdutiva. E eles também veem que os Estados Unidos estão tentando evitar que eles sigam o caminho socialista, e esta é a verdadeira nova Guerra Fria. Você mencionou o unipolar versus o multipolar. Na verdade não é que a China, Rússia e a Organização para Cooperação de Xangai, junto com Casaquistão e Irã e agora outros grupos, estão se afastando. São os Estados Unidos que tentam forçá-los a seguir o modelo neoliberal dos EUA, impondo sanções e penalidades especiais e ameaças militares, para não falar do terrorismo do ISIS. Os Estados Unidos estão, independentemente deles mesmos, levando a Europa, Ásia e agora a África para uma unidade consolidada. Isso é algo muito autodestrutivo. Os EUA pensam como George Soros, que se pararmos de investir na Ásia e em outros países, isso irá forçá-los a se renderem. Mas o que estão fazendo é levá-los em bloco para o Cinturão Econômico da Rota da Seda.

O que a China está fazendo é criar pré-condições para uma lucrativa economia industrial sobre uma grande área para se beneficiar dela. Seus participantes vão precisar de transporte. Você vai precisar de portos. Você vai precisar de estradas. Você vai precisar de oleodutos e tem de focar nas interconexões, na infraestrutura.

Os EUA não constroem infraestrutura nos dias de hoje a menos que ela seja monopolizada. Esta é a luta política agora em curso nos Estados Unidos. O presidente Biden tem um plano de infraestrutura que foi reduzido de seis trilhões de dólares para três trilhões e meio. E o núcleo dos Partidos Democrata e Republicano diz que se não pudermos privatizar a infraestrutura e torná-la um monopólio extrator de renda, não vamos fazê-lo, e vamos impedir o governo de fazê-lo. Então nos Estados Unidos, vamos ter infraestrutura com alto preço e educação com alto preço, enquanto a China vai ter transporte a baixo preço, infraestrutura a baixo preço, educação gratuita, saúde pública. E você vai ter um Estados Unidos de alto custo incapaz de competir com o resto do mundo. Sobrou para ele apenas fazer ameaças militares e financeiras. Se ele tentar impor sanções como fez contra a Rússia, China e outros países, elas vão servir como tarifas protecionistas para esses países estrangeiros.

Quando o presidente Trump impôs sanções sobre exportação agrícola para a Rússia, isto foi uma bênção para a Rússia. Eles desenvolveram uma agricultura própria e a Rússia é hoje o maior exportador de grãos para o mundo. O senador McCain classificou a Rússia de um posto de combustível de bombas atômicas, mas é um posto de combustível com o maior setor agrícola do mundo, e está desenvolvendo uma integração industrial com a China e o resto da Ásia. É a ilha mundial Eurasiana como chamou Mackinder há um século, e está se tornando o foco econômico do mundo, deixando os Estados Unidos como a economia de alto custo sem meios efetivos de apoio, porque não estamos mais fazendo nossa indústria. Não estamos competindo com a China. Estamos deixando a China fazer toda a indústria, e de repente estamos dependentes dela. Isso não é um bom presságio para a prosperidade dos Estados Unidos ou da Europa e de outras áreas que são satélites da economia dos EUA.

Saiba mais em: https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Poder-e-ContraPoder/Biscoito-da-Sorte-da-China-e-triturado/55/51769

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