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Capitalismo carcerário

 

Chega ao Brasil o livro da pesquisadora abolicionista Jacki Wang que atualiza as contribuições do marxismo negro produzidas pelo Partido dos Pantera Negras – revelando como, após a crise de 2008, a policia ficou imune aos planos de austeridade e o sistema carcerário assumiu um papel central na geração de receita para os Estados.

Por: Bruno Xavier Martins / Crédito Fotos: Wong Maye-E / AP

A publicação do livro Capitalismo Carcerário – que chega ao Brasil através do selo editorial Igrá Kniga -, traz para o português os primeiros textos da autora estadunidense Jackie Wang, que é abolicionista penal, poeta, artista e pesquisadora do Departamento de Estudos Africanos e Afro-americanos na Universidade de Harvard, onde se especializou na investigação sobre raça e a economia política da polícia e das prisões nos EUA.

O livro Capitalismo Carcerário, que se encontra agora em pré-venda numa campanha de financiamento colaborativo, faz a atualização das dimensões raciais, econômicas, políticas, jurídicas e tecnológicas do problema do encarceramento em massa nos EUA. Ele é composto por sete ensaios que analisam, entre outras coisas, as transformações no controle biopolítico de jovens infratores a partir da década de 1990, com a consequente adoção da prisão perpétua para menores de idade; a formação de um mercado racializado de dívidas subprime que promoveu a despossessão da população negra nos EUA; a formatação de um esquema oficial da polícia e da justiça criminal que prende e arrecada dinheiro da população pobre, com o intuito de resolver o déficit fiscal dos municípios após a crise de 2008; o desenvolvimento e aplicação de tecnologias preditivas e algorítmicas no policiamento, que afetam mais diretamente a população negra; e um debate poético sobre as possibilidades imaginativas do abolicionismo penal.

O livro de Jackie Wang dá início à coleção “Raça e Capitalismo”, uma série de traduções que relaciona as transformações do capitalismo ao continuum carcerário racializado na história dos EUA. O segundo livro da coleção (que já está em processo de tradução e virá ao público no final de 2022, também pela Igrá Kniga) é o clássico Golden Gulag, da geógrafa e abolicionista Ruth Wilson Gilmore.

O objetivo do texto abaixo é apresentar ao leitor interessado na temática do livro Capitalismo Carcerário uma espécie de “índice comentado”. Separado pelos capítulos que compõem a obra, o texto mistura algumas citações da autora com comentários feitos pelo tradutor, de modo a apresentar, de passagem, o conteúdo de cada ensaio.


Aintrodução de Capitalismo Carcerário tem dois principais objetivos. Primeiro, criar um fio condutor entre os sete ensaios do livro, de forma a avançar numa discussão mais geral e, ao mesmo tempo, permitir que cada texto mantenha a potência que originalmente lhe trouxe vida. Segundo, expor o cruzamento que existe entre a história de vida da autora e a conformação da atual estrutura de encarceramento em massa nos EUA. O fato autobiográfico que está por trás de todo o projeto do livro é a pena de prisão perpétua de um de seus irmãos, quando ainda era menor de idade. É a partir dessa premissa pessoal, e da observação dos efeitos que a crise de 2008 geraram sobre a carceralidade nos EUA, que Jackie Wang se posiciona criticamente no debate atual.

Ao apresentar os diversos debates teóricos – resgatando inclusive as “contribuições do marxismo negro produzidas pelo Partido dos Pantera Negras” -, ela busca atualizar a análise do capitalismo racial para o contexto contemporâneo. De um lado, autores como Michael C. Dawson focam na questão da exploração do trabalho e na expropriação sobre a população negra para definir as clivagens sociais postas pelo racismo. De outro, intelectuais que usam uma lente afropessimista, como Frank Wilderson e Saidiya Hartman, acreditam que a análise do capitalismo racial deve passar pela consideração da “violência gratuita” como uma característica definidora do racismo antinegro. Ela, entretanto, se coloca entre essas duas correntes, mobilizando teoricamente o eixo principal de cada uma delas. Assim explica Wang:

“Neste livro, sustento que a racialização do negro se dá, ao mesmo tempo, por meio da lógica da descartabilidade da exploração. Enquanto analiso como o governo e as instituições financeiras se utilizam de mecanismos de extorsão, desenhados para pilhar os estadunidenses negros, também estou ciente de que esse caminho de pensamento pode levar ao entendimento de que o racismo é racional, já que, dessa maneira, ele pode ser reduzido a um conjunto de determinantes econômicas ou à motivação pelo lucro. Uma análise pelo determinismo econômico apenas faria encobrir e suavizar a brutalidade crua do racismo estadunidense.

Para os afropessimistas, não é a esfera econômica que forma a “base” da qual emerge a “superestrutura” da sociedade civil, da política e da cultura, mas a violência antinegro é que possibilita e se torna uma necessidade para o capitalismo global, a liberdade, a sociedade civil e a vida comunitária de sujeitos brancos (e não negros). Em suma, a violência antinegro não é um desvio dos supostos valores liberais estadunidenses de igualdade, multiculturalismo e liberdade – ela é a fundação sobre a qual os Estados Unidos foram erguidos.

[…] Em vez de focar no âmbito da produção, analisando como o racismo opera por meio da diferenciação salarial, este trabalho tenta identificar e analisar o que eu considero as duas principais modalidades do capitalismo racial contemporâneo: o empréstimo predatório e a governança parasitária. Essas formas de governança e as práticas econômicas racializadas estão conectadas na medida em que ambas surgem para protelar, temporariamente, as crises geradas pelo capital financeiro. Assim, o título deste livro, Capitalismo Carcerário, não é uma tentativa de postular a carceralidade como um efeito do capitalismo, mas de pensar sobre o continuum carcerário que existe ao lado e coincidente à dinâmica do capitalismo tardio.”

Acumulação racializada por despossessão na era do capital financeiro

No ensaio que abre o livro, Jackie Wang parte das discussões sobre acumulação primitiva presentes em Karl Marx, e desdobradas posteriormente em Rosa Luxemburgo e David Harvey, para elaborar a concepção de um continuum histórico dos processos de despossessão da população negra dos EUA. Em oposição à ideia de uma violência que teria acontecido “antes” do capitalismo, submetendo todos à condição de trabalhadores assalariados, Wang diz que a racialização do negro nos EUA serve como um processo perene de diferenciação, uma fronteira de expansão interna constantemente posta a serviço da reprodução do capital:

“A racialização do negro, portanto, é a característica que torna os sujeitos ajustados à hiperexploração e expropriação, de um lado, e à aniquilação, de outro. Antes da era neoliberal, a ordem racial foi sustentada pelo Estado e as distinções raciais eram aplicadas por meio de códigos de lei, da segregação do Jim Crow e de outros arranjos formais. No contexto contemporâneo, embora o regime jurídico subjacente à ordem racial tenha sido desmantelado, a raça manteve seu caráter duplo, que consiste não “apenas em uma atribuição probabilística de valor econômico relativo, mas também num indicador de vulnerabilidade diferencial à violência estatal”. Em outras palavras, vulnerabilidade à hiperexploração e à expropriação no campo econômico, e à morte prematura nos campos político e social.”

Entre as décadas de 1930 e 1970, quando há a suburbanização da população branca nos EUA, os negros são barrados das linhas de crédito que permitiam a forma mais comum do acúmulo de riqueza: a casa própria. Estigmatizados em bairros classificados pelas agências de empréstimos como “zonas de risco”, os negros terminam o século passado excluídos dos mecanismos de acesso a crédito e, portanto, da propriedade. Foi somente a partir do inchaço da bolha imobiliária, que culminaria na crise de 2008, e da transformação dos chamados “mutuários de risco” em ativos atrativos para o mercado financeiro, que a população negra ganha acesso aos empréstimos. Isso, porém, não acontece sem contradições:

“Nos anos que antecederam a quebra do mercado imobiliário de 2008, os mutuários negros e latinos que intencionavam comprar casas, tornaram-se alvos de empréstimos hipotecários subprime por parte das instituições de crédito – movimento esse que delimita uma mudança da exclusão financeira para a expropriação via inclusão financeira. Essa transição foi facilitada pelo apoio de soluções “de mercado” para os problemas estruturais: em particular, a crença na ideia de que a distância racial da riqueza poderia ser extinta através da expansão do acesso ao crédito. No entanto, esses empréstimos não foram projetados para que os mutuários pretos e pardos se tornassem proprietários; eles serviram como uma forma de converter o risco em fonte de receita, a partir de uma arquitetura financeira na qual os mutuários acabassem despossuídos de suas casas.”

Na origem da crise de 2008, portanto, está a associação entre negritude e risco e sua consequente transformação em ativo financeiro com taxas de juros flutuantes e lucrativas aos bancos, que levariam seus mutuários, necessariamente, à inadimplência. Assim, para Wang, a crise não está meramente no estouro da bolha de 2008, mas já se vê refletida nos mecanismos financeiros racistas anteriores a ele, que tiveram na falsificação de contas, sobretaxas fraudulentas e taxas de juros abusivas por parte dos bancos a sua principal fonte de receita.

Não bastasse o assédio das instituições financeiras sobre a população negra e pobre dos EUA – que lhe gerou um processo histórico de despossessão -, a polícia, a partir de 2008, passa a cumprir um papel que visa resolver os problemas gerados pela quebra da bolsa. Devido ao colapso do setor imobiliário, as fontes de arrecadação dos estados e municípios despencam e estes entes federativos começam a depender de uma geração de receita vinda dos mecanismos de repressão da polícia e do sistema jurídico para cobrir os rombos nos orçamentos. Não à toa, “no Texas, o espantoso número de 650.000 pessoas está preso por não pagar multas.” Assim, a relação entre a crise orçamentária dos estados e municípios e o aprofundamento da repressão policial se aprofunda.

Policiamento como pilhagem

“Em setembro de 2015, o juiz Marvin Wiggins, do condado de Perry, estado do Alabama, discursou em um tribunal abarrotado de pessoas que deviam taxas ou multas: ‘Bom dia, senhoras e senhores,’ ele começou. ‘Para vossa consideração, há um posto de coleta de sangue lá fora. Se você não tem dinheiro, vá lá, doe seu sangue e traga de volta o comprovante da doação.’ […] O juiz deu continuidade e observou que ‘o xerife [tinha] algemas suficientes’ para aqueles que não quisessem doar sangue e não pudessem pagar as taxas e multas pelas quais estavam sendo cobrados. […] Em troca da doação, eles ‘receberiam um crédito de US$ 100 para descontar de suas multas’.”

Em outra ocasião, ao falar de Barrett, um homem que cumpria a liberdade condicional e tinha que pagar pelos serviços privados ligados a ela, como o aluguel da tornozeleira eletrônica, por exemplo, Wang afirma que a venda do plasma sanguíneo era sua única fonte de renda. Barrett, entretanto, observa:

“‘Você pode doar plasma duas vezes por semana, desde que esteja fisicamente saudável… Eu doei todo o plasma que pude, peguei esse dinheiro e joguei na tornozeleira’. Barrett, que passou a deixar de comer para pagar suas dívidas, acabou se tornando inapto à doação do plasma, pois seus níveis de proteína estavam muito baixos. Depois que sua dívida com a Sentinel extrapolou os US$ 1.000, a empresa obteve um mandado e Barrett foi enviado à prisão por não pagá-la.”

Essa relação vampiresca do sistema judiciário com a população, que literalmente extrai seu sangue em troca do pagamento de taxas e multas judiciais, é a caricatura de um problema social mais amplo que vem atingindo os EUA nos últimos anos. Quando o mercado imobiliário entrou em colapso em 2008, os governos locais perderam uma parcela substancial de um de seus principais fluxos de receita: o imposto sobre a propriedade. Algumas das cidades viram suas arrecadações caírem em mais de 40%. Até a publicação do livro, em 2018, a soma dos títulos das dívidas municipais nos EUA já ultrapassava os U$S 3,7 trilhões. Wang, assim, resume o processo: “o colapso do mercado imobiliário gerou uma crise econômica global que levou à perda de receita dos municípios, catalisando a criação de esquemas fiscais municipais que passaram a se utilizar da polícia para pilhar os moradores.”

Ao contrário de outros serviços públicos (como educação, saúde, moradia), que se viram obrigados a entrar num regime ainda mais austero frente ao rombo orçamentário deixado pela crise de 2008, a polícia, nesse “novo regime fiscal”, vem assumindo o papel de geradora de receita direta, o que garante que seus departamentos não sofram demissões quando há déficit na receita fiscal. Em outras palavras, o equilíbrio do orçamento público vem dependendo da capacidade de usar o poder de polícia e o sistema judiciário para saquear os moradores através da cobrança de taxas e multas, principalmente daqueles que vivem em bairros pobres e negros.

No município de Ferguson, palco das revoltas antirracistas de 2014 após a Justiça resolver não indiciar o policial Darren Wilson pelo assassinato do jovem negro Michael Brown, uma investigação feita no Departamento de Polícia da cidade revelou que as missões, locais e horários de patrulhamento estavam sendo ajustados em função da capacidade de aplicação de multas no maior número possível de pessoas. Após a investigação, também foi observado que as avaliações e promoções dos agentes estavam diretamente condicionadas a sua capacidade de geração de receita a partir dessas práticas predatórias da polícia. Mais de 20% de todo orçamento de Ferguson já havia se rendido a esse esquema oficial de pilhagem.

Wang mostra como esse vem sendo o modelo adotado por diversos municípios dos EUA. Ela recorre ao exemplo histórico da falência da cidade de Nova York na década de 1970 e traz para o debate Marx, Harvey, Kirkpatrick e outros teóricos que discutem o capital portador de juros e o papel do Estado nos orçamentos públicos para entender a quebra de Detroit e Ferguson nos dias atuais. Com a financeirização das práticas contábeis nos orçamentos públicos, que buscam alcançar um maior rendimento através de taxas de juros mais altas em ativos de risco, os mecanismos especulativos da economia de cassino foram injetados nos corredores governamentais. Assim, sempre que uma crise fiscal é declarada, impõe-se sobre a governança um estado de exceção político e financeiro, com a perda da autoridade nas decisões por parte dos funcionários eleitos e sua transferência para os chamados Emergency Managers, que visam garantir a remuneração dos ativos através de práticas austeras do governo, de um lado, e da geração de receita a partir da polícia e do sistema criminal sobre os moradores, de outro. Tamanha é a simbiose entre as necessidades do mercado e o funcionamento da polícia, que após as investigações sobre o Departamento de Polícia de Ferguson revelarem esses mecanismos predatórios da polícia, os títulos públicos da cidade foram rebaixados pela agência Moody’s para a categoria “lixo”, com a declarada justificativa de que isso havia ocorrido devido à “diminuição das principais fontes de receita geradas a partir de taxas e multas”. Na esteira da crise de 2008, é importante analisar a esfera financeira não apenas como um setor “improdutivo”, fora da economia “real”, mas como um campo sobre o qual se dá a “acumulação por despossessão” sobre as comunidades negras a mando do Estado.

Sobre os moradores negros de Ferguson opera uma outra simbiose, resultado direto da que foi descrita acima entre o mercado e a polícia. O cárcere e a vida cotidiana se misturam de tal maneira que a cobrança municipal de multas – criadora de uma atmosfera de medo, perturbação, miséria financeira e imobilidade – se revela muito mais preocupante do que um “mero” método de aumento de receita. Ela personifica o transbordamento da lógica prisional para as ruas e transforma o espaço em que os moradores vivem num espaço carcerário. Um residente de um bairro negro de Ferguson certa vez disse a um jornalista:

“Temos pessoas que têm mandados policiais por causa de multas de trânsito e estão efetivamente presas em suas casas… Elas não podem sair porque seriam presas. Em alguns casos, as pessoas até tinham empregos, mas decidiram que o risco de serem presas não compensava a tentativa de sair de casa para o trabalho.”

“Eles carregam armas em vez de lancheiras”

Em 1994, sob a gestão de Bill Clinton, foi para o Congresso um projeto de lei chamado Crime Bill, que acirraria ainda mais o regime de punição para os estadunidenses. Aprovada também no Senado, a partir da redação do então Senador Joe Biden, o texto ganhou força de lei e incorporou à estrutura nacional 100.000 novos agentes ligados à segurança, acrescentou US$ 9,7 bilhões em financiamento para o sistema prisional e US$ 6,1 bilhões para programas de prevenção, além de ampliar a pena morte e criminalizar pequenas infrações. Já é consenso dizer que essa lei foi uma das grandes responsáveis pelo crescimento exponencial da população carcerária nos EUA testemunhado na década de 1990.

Em 1996, num evento que visava angariar apoio político ao projeto de lei acima mencionado, a então primeira dama Hillary Clinton fez uso do termo “superpredador” para chamar a atenção para uma suposta ameaça. Segundo ela, as gangues estavam repletas de jovens violentos, que não tinham consciência nem empatia e que eram aliciados pelos grandes cartéis de drogas para agir sem clemência nas ruas das cidades. Dando fundamento a esse argumento, estatísticos e criminologistas também anunciaram o problema. Dentre eles, o mais proeminente pesquisador de Princeton sobre assunto na década de 1990, John DiIulio, que afirmou o seguinte em seu artigo A Chegada dos Superpredadores: “Todas as pesquisas indicam que os americanos estão sentados sobre uma bomba relógio inflada pelo aumento de criminosos. E todos aqueles que estão mais próximos do problema ouvem o tique-taque dessa bomba.”

O clima de pânico não se baseava em um problema real, mas na promessa futura de um problema. Como o próprio DiIulio disse certa vez, “o problema do crime negro”. Segundo ele, o crescimento populacional geraria, automaticamente, uma quantidade maior de jovens e, consequentemente, mais jovens delinquentes: estupradores, assassinos e assaltantes. A menção à raça, de acordo com outro artigo seu chamado “Let ‘Em Rot” [Deixe-os Apodrecer], não trazia nenhum componente preconceituoso, senão a mera projeção e análise empírica dos fatos. Aos demais, àqueles que criticavam sua posição, recebia dele a alcunha de “elite anti-encarceramento”. A crescente desse pânico político e social se encontrou com a expansão do sistema industrial-prisional ocorrida na década de 1990 e promoveu o avanço da punitividade sobre o território etário dos menores de idade. O terceiro ensaio deste livro, portanto, é uma investigação sobre a racialização do mito do “superpredador juvenil”, as transformações nas formas de controle biopolítico e o decorrente acirramento das penas para os menores de idade a partir da implementação da cruel juvenile life without parole (JLWOP) sentence [prisão perpétua juvenil sem liberdade condicional].

Saiba mais em: https://jacobin.com.br/2021/12/capitalismo-carcerario/

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