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Moïse: arqueologia de um linchamento

Há algo de banal no crime que completa um mês. Ele expressa, além da milícia, uma brutalidade típica do Brasil: a que descarregamos uns contra os outros, por incapazes de fazer, da nossa raiva, impulso para mudar uma sociedade hedionda

Por: Gustavo Assano

So quietly stole upon their prey
And dragged him out to death, so without flaw
Their black design, that they to whom the law
Gave him in keeping, in the broad bright day,
Were not aware when he was snatched away,
And when the people, with a shrinking awe,
The horror of that mangled body saw,
“By unknown hands!” was all that they could say.
Leslie Pinckney Hill (1921)

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E como culparam Jesus
E como xingaram Jesus
E como bateram em Jesus

Vila do Calvário, campo do Cruzeiro
Foi tanta gente lá matar Jesus.
Douglas Germano (2016)

Dada a inegável importância do acontecimento, o uso do termo “linchamento” para descrever o assassinato covarde de Moïse Kabagambe não pode ser empregado sem reflexão e clareza descritiva, pois corre-se o risco de reduzi-lo a mero jargão. Há uma especificidade particular desta modalidade de ato violento coletivo, uma singularidade brasileira em seu sentido de perpetuação e em sua forma de reprodução enquanto fenômeno social próprio da vida cultural do país – ou seja, que diz algo sobre o que somos enquanto sociedade, enquanto povo.

Traz muito o que pensar, por exemplo, levar em conta a profissão dos primeiros três detidos identificados pelas filmagens do ocorrido: Aleson Fonseca e Brendon da Silva eram garçons em quiosques vizinhos ao Tropicália na Avenida Lúcio Costa e Fábio da Silva era vendedor de caipirinhas na Barra da Tijuca, todos a trabalhar quando participaram do espancamento. Muitas reportagens e matérias televisivas enfatizam a ficha criminal dos envolvidos, como uma explicação de sociologia de botequim, sem apuração ou elaboração analítica sobre o que este passado revela sobre a ação mórbida cometida. O procedimento jornalístico apenas perpetua o velho punitivismo sensacionalista naturalizado na mídia brasileira, cioso por separar “bandidos” de “trabalhadores” para colocar os maus pobres no devido lugar e preservar uma moral dos bons – a mesma moral que acobertou o estrangulamento e golpes de taco de beisebol contra Moïse quando um dos espancadores explicou para uma testemunha que se tratava de uma sova contra um assaltante.

Alguns se esforçam por estabelecer elos entre os donos dos quiosques e o domínio territorial de milícias, mas nada conclusivo neste sentido se comprovou até o momento, apenas fortes suspeitas foram aventadas. Mas também a forma como esta associação é levantada traz o que se pensar, pois é motivada pela intenção de tomar o espancamento como atrocidade anômala, uma exceção que produz um contraste chocante. Segundo este raciocínio, tamanha fúria e despudor para a crueldade só podem estar associados à porteira aberta pelo bolsonarismo e forças correlatas. O fato é recente, novas investigações ainda podem revelar muita coisa, mas esta forma de pensar corre o risco de distorcer a moldura do quadro que tenta expor, pois a oposição entre “normal” e “chocante” acaba por dizer mais sobre aquele que observa do que sobre a dinâmica social em que o ato abominável está inscrito. Perde-se de vista a compreensão da possibilidade de o próprio “normal” ser chocante, o que torna o ato de chocar-se objeto de necessária reflexão sem que isto signifique desqualificar sua razão de ser.

A ninguém parece ter sido digno de ponderação detida o fato de que o espancamento não foi cometido por peritos da “arte” de infligir danos físicos, tal como soldados, policiais ou seguranças privados. A imobilização com golpe de jiu-jitsu, os socos e pontapés no tórax e cabeça de Moïse já indefeso e sem apresentar qualquer vestígio de ameaça, as pauladas com o taco de beisebol vertidas contra o pescoço do jovem desamparado, os membros atados e o abandono do espancado enquanto afogava-se no próprio sangue que invadiu os pulmões mutilados por repetidas vergastadas que duraram mais de 6 minutos ininterruptos, todos estes atos terrivelmente familiares da longa história do disciplinamento de corpos negros no Brasil foram cometidos por trabalhadores precarizados que viviam de diárias servindo o público consumidor, a massa que move parte substanciosa da economia do tão prezado turismo carioca. Cada um deles vivia da mesma labuta que levou Moïse a cobrar pelo suor vertido e não pago, luta diária por dignidade que selou seu destino violento.

Em suma, os assassinos e a vítima eram próximos de categoria, companheiros de classe, colegas de sobrevivência na viração. Mas esta condição não é forte o suficiente para obstaculizar a desumanização necessária para despender o esforço e energia impressionantes para destruir um corpo humano com as próprias mãos, sem o uso de armas de fogo. As perguntas não são retóricas: o que significa identificar esta atrocidade específica como linchamento e o que o uso do termo revela sobre o ato que descreve? O que se deseja mobilizar ao identificar o ato a uma tradição de violências coletivas no Brasil e no mundo? O que podemos aprender com o ocorrido atroz para além do que nele há de chocante?

Boa parte dos estudos acumulados no Brasil dedicados a compreender a lógica do linchamento como fenômeno social específico1 cedo ou tarde tecem considerações sobre a origem estadunidense do termo. Sendo este um ponto de consenso entre as diferentes formas de interpretar este ato coletivo de nuances que produzem tanto assombro como fascínio,2 faz sentido começar uma reflexão por esse lugar-comum etimológico.

1. A Lei de Lynch

Trata-se de um anglicismo derivado da palavra “lynch” e sua circulação é desencadeada entre falantes brasileiros durante a última quadra do século XIX, bem no momento de maior efervescência do debate abolicionista. É indispensável mencionar que a datação da origem de um termo não serve como certidão de nascimento da ação que descreve – pelo menos desde o século XVI há relatos sobre linchamentos em território colonial português no Novo Mundo. O historiador americano Michael J. Pfeiffer demarca sua posição sobre o debate situando o ato de linchar como um fenômeno de “cultura global”, disseminado por todos os continentes, emergido em períodos históricos diversos.3 No entanto, é muito reveladora a origem norte-americana do termo, pois algo do seu sentido originário sobreviveu à passagem dos séculos.

No condado de Bedford, Virginia, trabalhava o coronel Charles Lynch como juiz de tribunais clandestinos nos anos mais violentos da guerra pela Revolução Americana (1775-1783), operavam de maneira extraoficial, na mais aberrante ilegalidade. O militar reivindicava usar tal poder extralegal para punir crimes e conter atividades de sujeitos leais aos interesses britânicos. Execuções eram cometidas, mas a principal punição clandestina consistia em castigos corporais severos, cuja perícia na comunidade de proprietários possuía tradição muito bem consolidada com os já 150 anos de legalidade da escravidão, e que perduraria ainda por mais de 80 anos.

Lynch era tido como um cidadão exemplar de Bedford. Torna-se respeitado entre seus pares ao ponto de servir como membro da Câmara dos Delegados durante a guerra até 1778, quando foi nomeado coronel da milícia de Virginia. Era uma de suas principais atribuições reprimir insurreições entre forças apoiadoras do campo Tory. Segundo o historiador liberal Manfred Berg, em seu estudo Popular Justice: A History of Lynching in America (Chicago, Ivan R. Dee Publisher, 2011), era conhecido o rigor severo e violento com que os inimigos da milícia patriota eram tratados, lançando mão de enforcamentos exemplares, execuções sumárias e açoitamentos públicos.

Por volta de 1780, os edifícios que abrigavam instituições jurídicas e as forças de segurança do estado se desfizeram com o caos promovido pela guerra. Surge um clamor entre moradores do condado pela contenção de agitações políticas promovidas por loyalists e ações de criminosos comuns, como ladrões de cavalo e pequenos bandidos de toda sorte. Um discurso de segurança pública sob ameaça, cuja salvação era reivindicada por comunidades locais de comerciantes e proprietários diversos apavorados, se consolidou. Assim, Charles Lynch reúne seus vizinhos patriotas, todos determinados a caçar bandidos e traidores da causa nacionalista. Se não havia mais instituições para manter a força da lei, o uso da força pela comunidade asseguraria a salvaguarda da justiça e da segurança pública. Como a corte de Williamsburg, antiga capital da Colônia de Virgínia, não era mais funcional, a confraria de vizinhos formou seus próprios tribunais. Os prisioneiros considerados culpados, entre outras sentenças, eram punidos com 39 chibatadas desferidas no gramado da fachada da casa de Lynch e forçados a gritar “Liberty forever!” (“Liberdade para sempre!”). Caso se recusassem, eram torturados até que mudassem de ideia.

O governador Thomas Jefferson, um dos mitológicos Founding Fathers (“Pais Fundadores”) da nova nação emergida da guerra, felicitou os feitos de Lynch por suas “medidas vigorosas e decisivas”, grandiosas ações de patriotismo cometidas numa situação de grande perigo e urgência que atentavam contra a revolução. Com o fim da guerra e a transferência dos prisioneiros de tribunais clandestinos para o sistema legal recém-consolidado, muitas das vítimas de Lynch processaram o coronel, que por sua vez apelou à Corte Suprema. Ao invés de elogiar as ações de sua comitiva de punições clandestinas, os peritos legais viram-se obrigados a descrever as punições de Lynch como “não estritamente justificáveis pela lei, apesar de justificáveis dada a iminência de perigo”. Assim, a ambiguidade sobre a recepção da “Lei de Lynch”, como as práticas de justiça extralegal passaram a ser chamadas informalmente nos anos subsequentes, ganha contornos oficiais, condenada pela linguagem técnica do processualismo emergente, mas prezada pelo marco inaugural da situação de exceção criado pela guerra revolucionária.

Lynch ainda serviria como Senador pelo estado da Virginia entre 1784 e 1789, e morreria sete anos depois como cidadão respeitadíssimo. Assim, entre tensões de legitimidade jurídica e política, a violência extralegal é incorporada como parte fundamental do nascimento da democracia americana. Será então chamada de “Lynch’s Law” uma ideia de justiça revolucionária fora do período de revolução, e “lynching” passa a ser o termo utilizado para descrever a prática de cidadãos executando justiça com as próprias mãos onde o estado e as instituições fossem tidos como falhos, lógica esta que comporá o imaginário de exercício de poder comunitário entre comunidades locais estadunidenses até os dias atuais. Um historiador liberal como Berg, por exemplo, coloca a mimetização das estruturas jurídicas oficiais como fator diferenciador entre a “justiça popular” exercida por Lynch e a carnificina sangrenta e racista disseminada entre os estados do Sul ao longo do período pós-Guerra de Secessão até o fim do vigor das leis de Jim Crow, num esforço retórico de salvar os atos de Charles Lynch de serem entendidos como práticas bárbaras. Já para o historiador Philip Dray, em seu estudo monumental At the Hands of Persons Unknown: The Lynching of Black America (New York, Modern Library, 2003), o vínculo genealógico entre as duas formas de tradição punitivista não pode ser negado. A longa tradição de linchamentos nos EUA obriga Dray a não titubear para caracterizar o fenômeno social estudado: trata-se de um “holocausto”, uma mancha gigantesca incrustada em todos os momentos de formação da alma americana. Das folhas à raiz, como descreve os versos da canção de Abel Meeropol cantada por Billie Holliday, a árvore que dá estranhos frutos está encharcada de sangue.

Uma série de fatores condicionaram a perpetuação da Lei de Lynch em comunidades locais diversas ao longo do século XIX nos EUA, pois os principais elementos do processo de modernização da democracia americana representavam ameaças para a “cultura tradicional” de pequenas comunidades. O intenso processo de industrialização e o massivo ciclo migratório desencadeado, intensificado na década de 1830, as tensões sobre a manutenção da escravidão até a Guerra Civil e cada passo da ampliação da população votante colocava em polvorosa o nativismo e fermentava o discurso suprematista que se aprimoraria ao longo deste século tão decisivo para a sedimentação da singularidade do racismo estadunidense. Mas no período anterior à Guerra de Secessão, ainda segundo Berg e Dray, a cultura de linchamento deste país talvez não se faça tão decisiva como na dinâmica social estabelecida em espaços de fronteira na fase de expansão para o Oeste e a formação dos estados para além do Rio Mississippi. Despontava então o fenômeno da “Frontier Justice” (“Justiça de Fronteira”).

Principalmente em estados de expansão mineradora e de cultura de rancheiros, a prática de linchamentos cumpria função decisiva, contexto em que, de mês para outro, pequenos vilarejos eram erigidos e municipalidades clandestinas se formavam aos poucos, aglomerações urbanas em que tribunais, comarcas, representações burocráticas básicas da nação recém-formada ainda não haviam se estabelecido. Ali, a cultura de vigilantismo e de linchamento foram pilares fundacionais de segurança comunitária de “desbravadores” em estados como Colorado, Arizona e Califórnia. Do confronto sangrento de luta cruenta de todos contra todos em ajuntamentos de indígenas, trabalhadores em construções de ferrovias, mineiros, imigrantes chineses, criadores de gado, especuladores de terra e centenas de milhares de famílias fazendeiras, ali se forjaram os procedimentos penais que compensariam a ausência quase completa de instituições responsáveis por reforçar a lei.

Desejar a harmonia social, a paz entre vizinhos onde todos são assassinos em potencial precisava transformar o ato violento em performance do justo agindo contra o injusto. A ausência de lei, assim, forjava seu contrário pela fricção interna produzida pela desordem ética que moldava a consciência sobre como proceder numa ordem social sem coesão prefigurada. A lógica do linchamento passou a tornar-se crucial para a concepção do senso de comunidade destas cidadelas. Queimar vivo, espancar até a morte ou desmembrar o preto, o indígena, o chinês, o ladrão, o assassino, o pedófilo, o sodomita, que seja, o diferente impuro da vez, solidificava, mesmo na terra da perdição, na terra sem lei, a identidade dos homens bons. Assim firmava-se a autoimagem da massa que pune como detentora de virtude, certeza firmada ao seviciar o espancado monstruoso com um espancamento monstruoso, construindo o crime e o pecador no ato da punição expiatória, tudo baseado no vínculo de dependência entre pecado e virtude, e o bem atingido coletivamente como compensação da identidade autoadulatória da massa linchadora.

 

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