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Marcos Nobre e a construção do pós-Bolsonaro

Por que a volta de Lula areja o ambiente e sacode o tabuleiro, mas não resolve o jogo. O possível segundo turno e o papel de Ciro Gomes. A chance desperdiçada em 2013. O golpe que a ultradireita, derrotada, tentará – e como enfrentá-lo

Por Marcos Nobre | Entrevista a Márcio Ferrari e Paulo Henrique Pompermaier

O número de mortos pelo novo coronavírus no país já passa de 300 mil, no momento mais crítico da pandemia até agora, agravado por uma crise econômica aguda e pelo aumento da pobreza. O presidente Jair Bolsonaro segue em sua estratégia de governar por vetos e para os cerca de 30% da população que o apoiam desde que tomou posse. Um núcleo menor dos apoiadores, mais fanático, forma com o Centrão e os militares um tripé de sustentação pouco homogêneo. “Bolsonaro assiste de camarote às forças se digladiarem”, afirma nesta entrevista o filósofo e cientista político Marcos Nobre. “Como é um presidente antissistema, pode delegar aos outros a função de gerir o Estado.”

Com o impeachment como possibilidade remota, Nobre vê formar-se um quadro eleitoral para 2022 que pode livrar o país de mais um mandato de Bolsonaro. O retorno do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao cenário político sinaliza, mas não garante, uma articulação das forças democráticas visando sobretudo ao segundo turno.

Mestre e doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP) e presidente do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), Nobre procura entender o cenário político por meio de uma análise dos movimentos dos personagens no tabuleiro institucional. Além disso, tem o trabalho desafiador de tentar compreender como pensam o presidente e o “núcleo duro” que lhe dá apoio incondicional. 

Em maio de 2020 saiu seu e-book Ponto- final: a guerra de Bolsonaro contra a democracia, sobre a situação política no primeiro momento da pandemia. O que mudou e o que não mudou desde então?

Existia uma expectativa, no primeiro semestre de 2020, de que seria possível isolar Jair Bolsonaro e caminhar para o impeachment. Abriu-se uma janela com a queda da taxa de aprovação e o aumento da rejeição ao presidente, além de um brutal sofrimento social, uma quantidade de mortes assustadora. Mas essa expectativa não se confirmou. E o próprio livro tinha uma resposta para isso: não se formou uma coalizão anti-Bolsonaro para fazer um impeachment regenerador, como aconteceu com Fernando Collor. No caso de Dilma Rousseff, não foi regenerador; apenas continuou uma história de destruição da convivência das forças políticas do país. Além disso, claro, há a pandemia que nos impede de ir para as ruas e atrapalha a mobilização de massa.

O que mantém Bolsonaro no poder?

A estratégia de Bolsonaro de focar em um terço de aprovação dos brasileiros continua se confirmando. Na pesquisa do Datafolha de 17 de março, a desaprovação aumentou, mas, se olharmos para a taxa de aprovação, continua no mesmo lugar. Temos que explicar esse fenômeno, e não apenas os fatores que provocam a rejeição. Bolsonaro nunca pretendeu governar para a maioria. Ele mira no apoio de cerca de um terço porque é uma espécie de seguro anti-impeachment e, ao mesmo tempo, o que o garante no segundo turno em 2022. E é uma estratégia bem-sucedida. Ele conseguiu convencer essa base de apoio de que sua narrativa da pandemia faz sentido e é razoável. Quando montou o governo de guerra em abril de 2020 e expulsou [o então ministro da Justiça] Sérgio Moro do governo, perdeu parte desse terço, que depois foi recuperada e até ampliada com a criação do auxílio emergencial. Isso vai definir a política até 2022. Bolsonaro tomou medidas para que a janela do impeachment não se reabrisse, ao fazer um acordo com o núcleo do Centrão formado por partidos herdeiros da ditadura militar. Ele se preparou para uma eventual grande coalizão anti-Bolsonaro.

É possível que a ideia de impeachment seja retomada pelo Congresso se a popularidade do presidente continuar caindo? As suspeitas de envolvimento criminal da família Bolsonaro podem acelerar o processo?

Sobre as suspeitas, Bolsonaro tomou medidas muito importantes de autoproteção. Indicou para o Supremo Tribunal Federal (STF) um juiz que está tendo papel central – é algo muito raro ver um novato como Kassio Nunes Marques com atuação tão importante no STF. Bolsonaro mudou a direção dos órgãos de controle e das polícias que estão a seu alcance e fez nomeações para o Judiciário. São movimentos muito importantes de blindagem jurídica. E de blindagem política, pois o acordo com uma parte do Centrão, aquele que [o presidente da Câmara dos Deputados] Arthur Lira chama de “Centrão raiz”, é também um pacto para que os pedidos de impeachment não sejam acatados. Entre o eleitorado, é preciso que a rejeição suba e se organize politicamente em torno da ideia de impeachment, e isso está longe de acontecer. Temos a impressão de que Bolsonaro está fraco, mas ele sempre sai das cordas e consegue manter sua parcela de apoio social. Ele mesmo afirma que governa apenas para os “bons brasileiros”. Se conseguir, em um segundo mandato, implantar de fato seu projeto autoritário, os “maus brasileiros” terão como destino possível a prisão, a tortura, a morte e o exílio. 

A parcela de apoio rígido ao presidente deseja um governo autoritário?

É muito importante entender como se compõem esses 30% de apoio, que representam um número enorme de eleitores. A pesquisa recente do Datafolha reafirma o tamanho do núcleo duro com o qual eu tenho trabalhado. É de 12% a 15% do eleitorado, que tudo indica ser um contingente autoritário mesmo. Isso significa várias coisas. Em primeiro lugar, que ditaduras demoram para morrer: não se passam 21 anos de ditadura [1964-1985] e, de repente, todo mundo é democrata. Pode até ser no discurso, mas não na cabeça e na prática. Esse eleitorado realmente autoritário andou disperso depois da redemocratização. Votava em candidaturas de protesto, de extrema direita, como é o caso de Enéas Carneiro, mas era um movimento tratado como folclórico, apesar de ser um erro grave tratar o autoritarismo como folclórico. Em 2018 a dispersão deu lugar à adesão a uma rede de informação e desinformação ligada a Bolsonaro e chegou ao poder de uma vez só. É muito difícil acreditar que conseguiremos fazer o apoio baixar a 15% ou menos. Os outros 15% a 18% da base de Bolsonaro são compostos de cerca de 9% de simpatizantes, e os outros 7% a 8% reagem a medidas como o auxílio emergencial. O que me impressiona, e me preocupa, é a base estável de apoio ao Bolsonaro, pois é isso que põe em risco a democracia. Se ele for reeleito, a democracia no Brasil acabará, e então teremos uma luta muito mais difícil e com menores chances de sucesso.

Antes disso, está mantida a ameaça de golpe?

Sim, está sempre presente. Digamos que Bolsonaro não seja reeleito – para mim é certo que ele vai tentar um golpe, e existem diversas razões para acreditar nisso. A questão é qual será a natureza do golpe: seguindo o modelo dos novos populismos autoritários, de minar a democracia por dentro, ou um golpe clássico, com o fechamento do regime de maneira abrupta. Não sabemos se será bem-sucedido, mas tal golpe terá sustentação nas forças de segurança. 

O governo está armando explicitamente as bases sociais que o apoiam, e em muitos lugares as polícias estaduais não respondem mais aos governadores. É um processo de convencimento, uma guerra cultural para aumentar a parcela de ação e de pensamento autoritários no Brasil. 

Mantém-se o tripé de sustentação de fanáticos, Centrão e militares? 

É o nódulo de funcionamento do Bolsonaro e não mudou. Tomemos como exemplo um presidente clássico, pode-se escolher Luiz Inácio Lula da Silva ou Fernando Henrique Cardoso ou qualquer outro. Em geral eles permitem certa diversidade na coalizão de governo e principalmente na equipe ministerial, pois dessa maneira conhecem visões diferentes, e muito informadas, do mesmo assunto. Já Bolsonaro não arbitra. Ele veta. Quando o assunto não implica a manutenção da fidelidade de base, deixa que os conflitos entre o núcleo duro, militares e Centrão ocorram de maneira solta e selvagem, e assiste de camarote às forças se digladiarem. Porque, como ele é um presidente antissistema, pode delegar aos outros a função de gerir o Estado. 

Há um conservadorismo inerente à política brasileira?

Não gosto de essencializar pessoas nem povos. Do ponto de vista da análise, fazer isso significa deixar de enxergar o que acontece. Como uma população vota à esquerda em uma década e à direita em outra? O que eu diria é que a democracia brasileira, em um momento crucial que eclodiu em junho de 2013, preferiu se blindar, deixando passar a insatisfação popular e tomando medidas cosméticas para resolver um problema estrutural. Naquele momento, era preciso ter repensado o funcionamento da democracia, que havia sido rompido pelos protestos. Abriu-se o caminho para todo tipo de consequência – por exemplo, a Lava Jato, que tomou a reforma para si, o que é uma ilusão, pois o Judiciário não faz reforma política, muito menos na primeira instância. O sentimento antissistema também transbordou para partidos e forças políticas organizadas com a eleição, por exemplo, de Marielle Franco. Mas essa renovação foi minoritária, pois a maioria dos partidos não se abriu para o novo influxo de demandas por participação e deliberação. 

E a extrema-direita se aproveitou do sentimento antissistema, identificando o sistema com a própria democracia. Quando a Lava Jato se fortaleceu, fez isso acuando o sistema político, que entrou em modo de autodefesa completa. Por isso 2013 é um marco do que poderíamos ter feito e não fizemos. 

Saiba mais em: https://outraspalavras.net/crise-brasileira/marcos-nobre-e-a-via-para-nos-livrar-de-bolsonaro/

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