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O complexo industrial para uma economia da Saúde

Estudo da Fiocruz propõe articular fortalecimento da saúde coletiva e retomada da indústria brasileira – com o SUS na linha de frente. País pode livrar-se da dependência em fármacos e equipamentos médicos. Só falta a vontade política

Por Carlos Gadelha, em entrevista a Andréa Vilhena, no Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz

Em meio aos enormes desafios para a saúde e para a economia, evidenciados pela pandemia, um grupo de 35 pesquisadores de dez instituições, coordenado pela Fiocruz, lançou em março os primeiros resultados da pesquisa Desenvolvimento, Saúde e Mudança Estrutural: o Complexo Econômico-Industrial da Saúde 4.0 no contexto da Covid-19, que tem como objetivo pensar políticas para o setor.

Por meio de uma parceria firmada com o Centro Internacional Celso Furtado, que dedicou ao tema uma edição inteira da revista Cadernos do Desenvolvimento, a rede de pesquisadores traz a público uma visão da economia do desenvolvimento atualizada com o pensamento sanitarista, que coloca a economia a serviço da saúde e não o inverso. 

Em entrevista ao blog do CEE-Fiocruz, o coordenador de Ações de Prospecção da Fiocruz e líder do grupo de pesquisa Desenvolvimento e Saúde da Fiocruz, Carlos Grabois Gadelha, aponta que “a pesquisa rompe com a oposição entre economia e a saúde, mostrando que a economia deve ser subordinada ao direito à vida” e que “o bem estar, o SUS e a sustentabilidade ambiental são a nova frente do desenvolvimento para o século XXI, de um desenvolvimento para melhorar a qualidade de vida das pessoas e a sustentabilidade do planeta”.

A última edição da revista ‘Cadernos do Desenvolvimento’ foi dedicada ao projeto de pesquisa lançado na Fiocruz, em março deste ano, ’Desenvolvimento, Saúde e Mudança estrutural: Complexo Econômico Industrial 4.0 no contexto da Covid’. No que consiste o projeto?

Estamos discutindo o Complexo Econômico Industrial da Saúde, não apenas uma discussão técnica sobre setores produtivos; no fundo, discutimos a relação do desenvolvimento e saúde e mudança estrutural, por isso, escolhemos o Centro Celso Furtado para a publicação dos resultados. Celso Furtado é o pai do estruturalismo no Brasil. É preciso haver uma mudança estrutural. Não podemos continuar sendo um país que produz soja, extrai minério e derruba árvore e achar que isso gera saúde e desenvolvimento sustentável se houver política compensatória. Por meio da articulação de uma rede de 35 pesquisadores, o projeto busca chamar a atenção para a necessidade de mudança estrutural na relação entre desenvolvimento e saúde. Os artigos da publicação, referentes a 12 estudos, não foram feitos de modo isolado, mas de acordo com uma grande visão de um projeto que é coordenado pela Fiocruz.

Essa rede se insere em um projeto mãe, concebido há dois anos, que trata dos desafios do SUS relacionados às grandes transformações econômicas, tecnológicas e sociais do mundo no século XXI.Tal projeto, lançado no início de 2019, nasceu já com uma visão prospectiva, coordenado pela Coordenação de Prospecção da Fiocruz. Desde então, sublinhávamos que o SUS teria os pés de barro e não teria sustentabilidade se não lidasse com o contexto nacional e global de transformações científicas e tecnológicas. Estamos na eradas novas tecnologias de informação, da inteligência artificial, do bigdata, da conectividade sistêmica, que envolve a comunicação e a informação. O subsistema de comunicação e conectividade é a argamassa de todo o Complexo Econômico Industrial da Saúde, ele está por trás das vacinas e dos medicamentos, dos equipamentos e da atenção básica. Não se faz mais atenção básica sem vigilância genômica e vigilância assentada em inteligência artificial e grandes bases de dados. A vigilância preditiva do futuro requer inteligência artificial, dados e, ao mesmo tempo, requer direcionamento para atender às necessidades humanas.

Nessa publicação, propomos inclusive uma ampliação da ideia original do complexo econômico industrial que envolvia três subsistemas: o subsistema de base química e biológica, onde está a indústria farmacêutica; o subsistema de base mecânica e eletrônica, onde estão os equipamentos e os materiais médicos;e o subsistema de serviços, onde estão a atenção básica até a atenção de alta complexidade. Agora falamos que existe, ainda, um quarto subsistema de informação e conectividade que invade todos os demais e revoluciona a produção e a inovação em saúde. Se o Brasil não lidar com isso, nós vamos ter um SUS vulnerável e dependente.

Ao mesmo tempo, estamos estudando a transformação econômica, a transformação ambiental e a transformação social. Nós integramostodas elas numa macrovisão do desenvolvimento. A pandemia mostrou que, se o Brasil e o mundo não articulam ciência e tecnologia e inovação com os direitos sociais e os direitos ambientais, não vai haver nem direito social nem sustentabilidade ambiental. Sempre cito uma frase da grande Cecília Minayo: “A ciência, a tecnologia e a inovação para o SUS não são a cereja do bolo, são o bolo”. É preciso capacidade de conhecimento, tecnologia e inovação inclusive para baratear as ações de saúde, para introduzir inovações e conhecimentos que sejam mais acessíveis e muitas vezes até mais simples. Não se faz mais atenção básica apenas com soro caseiro. A utilização de big date e de inteligência artificial podem possibilitar, por exemplo, que a ação pública do SUS chegue antes de uma pandemia. Nós não estamos separando esses mundos.

Na revista, colocamos o tema do desenvolvimento, da saúde e da mudança estrutural, pensando o Complexo da Saúde 4.0 no contexto da Covid. Sublinhamos que se não houver uma ação forte para ciência, tecnologia e inovação no âmbito do Complexo da Saúde 4.0, ficaremos inexoravelmente afastados da possibilidade de garantir o acesso universal à saúde para a nossa população e para garantir a sustentabilidade ambiental.

Estamos dizendo algo muito preciso: para termos SUS, sistema universal, bem estar social e sustentabilidade ambiental, precisamos de uma base de conhecimento, de uma base tecnológica e de uma base econômica que coloque o mundo material e o mundo da economia a serviço da vida e do meio ambiente.

Qual o significado da parceria da Fiocruz com o Centro Celso Furtado?

Trata-se do primeiro estudo para pensar o desenvolvimento que uma instituição da área de saúde pública coordena. E o encontro da Fiocruz com o Centro Celso Furtado tem um simbolismo imenso. Lembramos dos primórdios do pensamento sanitarista desenvolvimentista, dos primórdios da saúde pública brasileira e de grandes pensadores como Mário Magalhães, que procurou aproximar a agenda sanitária da agenda do desenvolvimento econômico. Só que isso arrefeceu ao longo do tempo. Esse encontro da Fiocruz com o Centro Celso Furtado é de certa forma disruptivo, porque marca 120 da Fiocruz, ou seja, 120 anos de compromisso com a saúde pública e 100 anos de Celso Furtado, que é o maior pensador brasileiro sobre o desenvolvimento.

Promovemos uma dupla ousadia nesse trabalho.Trouxemos o pensamento do desenvolvimento econômico para dentro da saúde coletiva e o pensamento da saúde coletiva e do sistema de saúde para dentro da visão da economia. A gente inverte os termos do debate, mostrando que saúde e economia são dois lados da mesma moeda, ou seja, um projeto nacional de desenvolvimento tem que estar ligado e subordinado à vida, à qualidade de vida e ao acesso universal.

Embora o tema da pesquisa esteja inserido no contexto da pandemia, o conceito de Complexo Econômico Industrial da Saúde não é novidade na Fiocruz. Há quanto tempo existe na instituição uma linha de pesquisa dedicada a esse tema?

A raiz desse projeto é a própria história da Fiocruz, desde Oswaldo Cruz, sendo retomada por Sergio Arouca em 1986 durante a 8ª Conferência Nacional de Saúde.  Arouca propunha um diálogo com a área de ciência, tecnologia e inovação, buscando articular o mundo biomédico, as ciências sociais e a saúde coletiva. Ele criou dentro da presidência e dentro da área de planejamento um núcleo de estudos dedicado ao campo da ciência, tecnologia e inovação. Sérgio Arouca foi precursor, sem ele mesmo se dar conta de como estava sendo inovador, em contribuir para derrubar essa barreira entre o mundo da saúde pública e o mundo das ciências biomédicas e da política tecnológica e de inovação.

Em seguida, a formulação do conceito do Complexo Econômico Industrial da Saúde foi desenvolvida no âmbito de uma linha de pesquisa que coordenei, especialmente dedicada ao tema na Fiocruz. O primeiro resultado produzido foi um relatório de pesquisa de 2002, por isso essa linha de pesquisa está fazendo vinte anos. Eu e o ex-ministro José Gomes Temporão criamos, também, uma disciplina em 2002, na Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz, a respeito do tema. Essa interação de um economista político com um sanitarista esteve na raiz do nascimento dessa visão.

O que fizemos desde o ano passado e que deu origem ao atual projeto foi atualizar a agenda histórica da Fiocruz para o contexto das transformações do século XXI, sociais, econômicas e tecnológicas, a denominada quarta revolução tecnológica.  Essa agenda está sendo atualizada com um projeto que articula uma rede de pensadores da economia política do desenvolvimento. É uma articulação inédita na Fiocruz e a revista reflete isso. A apresentação é feita pela presidente da Fiocruz, Nísia Trindade, e por mim, coordenador do projeto. O texto de abertura é do Luiz Gongaza Beluzzo, que é o grande economista para pensar o desenvolvimento do Brasil e a mudança estrutural. O artigo dele aborda de modo muito claro os desafios trazidos pela quarta revolução tecnológica que pode excluir a sociedade dos direitos sociais, do direito ao ambiente e do direito à vida, ou dependendo das políticas nacionais e de sua articulação global pode representar uma chance para que tenhamos um mundo mais sustentável e com melhor qualidade de vida.

Essa rede de 35 pesquisadores se propõe a repensar um novo projeto nacional de desenvolvimento que garanta qualidade de vida, bem estar, sustentabilidade ambiental e dinamismo econômico. Refutamos a ideia de que o direito social e a proteção ao meio ambiente são incompatíveis com o dinamismo econômico e o com o crescimento. Ao contrário, consideramos que a nova frente de desenvolvimento e de crescimento é o bem estar e o meio ambiente.O encontro da Fiocruz com essa rede depensadores do desenvolvimento, muitos dos quais não são economistas, marca essa disruptura cognitiva, que rompe a oposição entre economia e vida e sublinha a visão de que a economia deve estar subordinada ao direito à vida.Um dos grandes pilares dessa visão é [John] Keynes, que já em 1930 sublinhava a necessidade de a economia estar a serviço da sociedade. Ele tem uma frase em um artigo que escreveu para os netos (As possibilidades econômicas para nossos netos), que ilustra bem esse pensamento: “A economia tem que estar no banco de trás e ser útil às pessoas como são os dentistas para as pessoas”.  Essa é a visão de um economista do desenvolvimento, que defendia o papel de coordenador do Estado e, desde o início do século passado, colocava a economia a serviço da vida e não o inverso.

Vamos adiante em nosso projeto, juntando a visão desenvolvida na Fiocruz de que não apenas a economia tem que estar a serviço da vida, mas que a vida, o bem estar e o ambiente gera o desenvolvimento econômico. Queremos ressaltar que, moralmente, a economia deve estar a serviço da vida, do bem estar e do SUS. E, também, que o bem estar, o SUS e a sustentabilidade ambiental são a nova frente do desenvolvimento para o século XXI, de um desenvolvimento que seja digno do nome, um desenvolvimento para melhorar a qualidade de vida das pessoas e a sustentabilidade do planeta. Esse pensamento representa uma ruptura com a visão tão triste e tão atrasada que opõe a economia, à vida e à saúde.

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