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“O mercado é como um ringue e ninguém quer dar de cara com Muhammad Ali”

Nesta primeira parte da entrevista à Jacobin, o renomado economista Anwar Shaikh aborda algumas teses do seu livro “Capitalismo: Competição, Conflito e Crise”, as falhas das escolas dominantes no campo da economia, a conjuntura internacional e os limites enfrentados por qualquer projeto de desenvolvimento no âmbito do capitalismo mundial.

UMA ENTREVISTA COM
ANWAR SHAIKH

Tradução Valentín Huarte e Everton Lourenço

Há décadas, Anwar Shaikh se consolidou como um dos mais influentes pesquisadores da economia política do capitalismo, realizando contribuições em vários campos, incluindo a teoria do valor-trabalho, a função de produção, o comércio internacional, o crescimento e os ciclos e crises econômicas. Seu último livro, lançado em 2016 e intitulado “Capitalismo: Competição, Conflito e Crise” (Capitalism, competition, conflict and crisis – Oxford University Press, 2016), oferece uma excelente síntese de sua carreira e de sua obra.

Nesta primeira parte de uma entrevista exclusiva aos nossos irmãos da Jacobin América Latina, o professor Shaikh conversou com Pablo Pryluka sobre algumas das principais teses de seu último livro, as falhas das escolas dominantes no campo da economia, a conjuntura internacional e os limites enfrentados por qualquer projeto de desenvolvimento no âmbito do capitalismo mundial.


PP

Seu livro Capitalismo: Competição, Conflito e Crise representa uma grande síntese de décadas de pesquisas, tanto empíricas quanto teóricas, dedicadas à análise do sistema capitalista. Para começar, você pode comentar um pouco sobre a inspiração por trás da obra?

AS

Este livro foi uma tentativa de gerar um quadro teórico consistente e coerente de análise econômica, que consiga apresentar uma alternativa tanto à economia neoclássica, que defende o livre mercado, quanto à economia pós-keynesiana, que se baseia na ideia de que os mercados não são perfeitos, que existem monopólios, etc.

Minha tese é que a imperfeição é apenas o duplo da perfeição. Quando se afirma que o mercado é imperfeito, assume-se no mesmo movimento que existe algo que é perfeito, mas as coisas não se dão necessariamente assim. No meu caso, proponho partir do real: concorrência real, desenvolvimento real, etc. Em outras palavras, acho que devemos evitar cair na armadilha de pensar que o mundo é imperfeito porque não se ajusta a um modelo que lhe é completamente estranho.

A analogia que uso para pensar sobre isso foi tirada da Bíblia. Lá se afirma que houve um tempo de perfeição, que é o Jardim do Éden – que, aliás, é muito semelhante à ideia de concorrência perfeita – e que foi arruinado pela imperfeição, simbolizada pela serpente. A serpente aparece e com ela chega a imperfeição ao jardim do Éden. As pessoas são então expulsas e todo o mundo real aparece como uma imperfeição, como uma série de imperfeições que se repetem continuamente. Ora, esse é um paralelo exato à ideia da economia neoclássica que parte de um capitalismo perfeito para terminar definindo o mundo real como uma série de imperfeições.

O que tento mostrar no meu livro, que tem mil páginas – e esta é uma das razões por que é tão longo – é que é preciso confrontar esse quadro com as evidências empíricas. Isso é o mais importante. Como diz Marx, o objeto de investigação é o real, e não o que outras pessoas escreveram sobre esse objeto. Portanto, embora eu ofereça algumas críticas a outras escolas econômicas, elas estão sempre ancoradas no fato de que é necessário explicar de forma natural e sistemática o que pode ser observado. Não quero dizer com isso que expliquei absolutamente tudo. Em vez disso, trata-se de uma base teórica que deve ser desenvolvida e elaborada.

Porém, ao longo dessas mil páginas procuro mostrar que é possível explicar com esse referencial muitas das coisas que outras escolas econômicas também tentam explicar. Por exemplo, o crescimento, os efeitos da demanda, as taxas de câmbio, o comércio internacional, a macroeconomia, o desenvolvimento econômico, etc. Os mesmos princípios básicos podem ser aplicados em termos concretos para explicar todos esses fenômenos. Isso é o que tento ilustrar de várias maneiras.

E a chave é que não se trata do poder do trabalho versus capital ou do poder dos países avançados versus países em desenvolvimento, que são certamente problemas reais, e sim que se trata, em última análise, do poder do mercado e do poder dos lucros, o poder que estes possuem sobre aqueles que trabalham e sobre os capitalistas.

Nesse sentido, me oponho à ideia de que os capitalistas seriam dotados de uma espécie de superpoder que lhes permite controlar o mundo. A verdade é que eles não o tem. Suas próprias ações produzem resultados que acabam por controlar a eles mesmos. Portanto, as crises não são complôs planejados: são o resultado devastador do poder do mercado.

PP

Isso é muito interessante porque, em certo sentido, o que sua abordagem sugere é que devemos nos voltar ao estrutural, aos poderes da estrutura – o mercado – e deixar de lado a perspectiva centrada nos agentes, sejam eles capitalistas, imperialistas, etc.

AS

A questão aqui é que a agência realmente existe, mas ela é estruturalmente limitada. E, ao mesmo tempo, os atos dos agentes têm consequências que são dadas pelas circunstâncias. Estamos diante da famosa frase de Marx, que diz que as pessoas fazem sua própria história, mas não escolhem as condições nas quais a fazem. Esse é um ponto muito importante.

O objetivo não é negar a agência, e sim colocá-la no seu devido lugar. E obviamente a agência de um camponês em uma sociedade feudal, ou mesmo a de um senhor, é diferente da agência de um trabalhador ou de um capitalista em uma sociedade capitalista. É muito fácil perceber isso. Portanto, é preciso colocar no seu lugar a agência e saber falar sobre a estrutura. Esta é minha principal preocupação. Claro, também falo da agência, embora não seja o assunto que mais me preocupa.

Saiba mais em: https://jacobin.com.br/2020/12/o-mercado-e-como-um-ringue-e-ninguem-quer-dar-de-cara-com-muhammad-ali/

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