Clipping

O movimento climático precisa se radicalizar mais

Na COP 1, a primeira conferência sobre mudanças climáticas da ONU em 1995, poucos teriam pensado que, décadas depois, as economias do mundo descarregariam quase um gigaton de carbono por mês. O movimento climático precisa usar táticas de ação direta para forçar os Estados a tomarem mais medidas significativas.

Por Andreas Malm / Crédito Foto: Ende Gelände/ Tradução: Coletivo Leia Marxistas

Todos os três ciclos de protestos climáticos no século XXI surgiram de uma entendimento cada vez mais amplamente difundida: as classes dominantes realmente não entrarão em ação. Elas não são passíveis de persuasão; quanto mais alto o som das sirenes, mais elas alimentam o fogo e, portanto, uma mudança de direção terá de lhes ser imposta. O movimento deve aprender a interromper o ritmo habitual dos negócios.

Para tanto, o movimento desenvolveu um repertório impressionante: bloqueios, ocupações, protestos passivos, desinvestimentos, greves escolares, fechamento de centros urbanos, a tática de sinalização do acampamento climático. Os ciclos posteriores foram desenvolvidos a partir disso e aprenderam com os anteriores. No final do segundo, muito inspirado pelas lutas norte-americanas contra os oleodutos, o movimento alemão reinventou a fórmula do acampamento climático e a levou a um nível mais alto de desafio em massa: Ende Gelände, que significa algo como “aqui e não mais”, nasceu.

Curva ascendente

No Ende Gelände, os ativistas armam suas tendas em torno de uma área central onde tem outras tendas, cozinhas e etc. Eles passam por treinamento em grupos de afinidade, vestem um macacão branco e fino e partem para uma mina de carvão. Aproximando-se do alvo por várias direções, em colunas semelhantes a brigadas, eles se destacam por romperem cordões policiais com a massa de seus corpos, passando por guardas despistados, abrindo caminho através de canhões de água até chegarem aos poços abertos.

Lá, eles escorregam para dentro das crateras empoeiradas e escalam as escavadeiras – os escavadores gigantescos, como enormes navios e enferrujados devorando lentamente seu caminho através da terra – ou deitam nos trilhos dos trens que transportam carvão para as fornalhas. A produção pode ser interrompida por dias. Nenhum combustível pode ser retirado e queimado enquanto os ativistas ocupam as instalações.

Constituindo, provavelmente, o estágio mais avançado da luta climática na Europa, o Ende Gelände atravessou os ciclos e cresceu ano após ano; no verão de 2019, seis mil pessoas fecharam a maior fonte de emissões na Alemanha, apoiadas por vários milhares no acampamento e cerca de quarenta mil em um protesto do “Sextas-feiras pelo Futuro” [Fridays for Future]. Naquela época, o Ende Gelände havia empurrado a questão do carvão para o topo da pauta e levou uma comissão nacional a definir uma data para eliminá-lo gradualmente – a data finalmente anunciada como 2038.

São mais duas décadas de produção de carvão. Consequentemente, o Ende Gelände prometeu marchar e crescer ainda mais e gerar mais manifestações desse tipo por toda a Europa; em 2019, dezenas de acampamentos climáticos foram organizados da Polônia a Portugal. A curva de aprendizado foi continuamente ascendente.

Assim, os ciclos não voltaram à estaca zero, mas formaram um processo cumulativo e um ciclo ascendente, como a própria crise climática. As seções americana e europeia aprenderam uma com a outra e os quadros acumularam uma rica experiência. Isso inclui “pequenas vitórias” – um gasoduto cancelado aqui, uma usina a carvão sucateada ali – bem como algumas grandes perdas, que, no entanto, parecem garantir ao movimento seu crescimento, já que o isso leva mais pessoas a mergulharem no ativismo.

Pacifismo estratégico

Mas, até agora, o movimento apenas chegou perto de um modo de ação: força física ofensiva (ou, nesse caso, defensiva). Tudo o que pode ser classificado como violência foi evitado meticulosa e escrupulosamente. Na verdade, o compromisso com a não-violência absoluta parece ter se enrijecido ao longo dos ciclos, a internalização de seu ethos é universal, a disciplina é notável.

Um exemplo: no final de agosto de 2018, cerca de setecentos ativistas se reuniram em frente a um complexo de sete cisternas de gás [gray gas] na província holandesa de Groningen. Lar do maior campo terrestre de gás fóssil da Europa, a área há muito tem sido devastada por terremotos em série, já que a extração tornou a terra subitamente compacta e diminuída, danificando casas e prédios e perturbando profundamente a população local. Erguemos um acampamento improvisado em frente ao complexo, bloqueando o transporte. A polícia fez fila em uma linha de trem entre os portões e nós. Um lastro de britas sustentava os trilhos.

Ao anoitecer, cerca de trezentos fazendeiros marcharam contra a Shell e a Exxon e acabaram no acampamento, fazendo com que a multidão se espalhasse pela ferrovia, momento no qual a polícia começou a atacar com cassetetes e atirar spray de pimenta, enquanto as pessoas desmaiavam e eram carregadas para longe. Nem uma única pedra foi levantada e atirada. O suprimento era abundante – estávamos no topo de milhares de pedras; poderíamos ter atirado neles – e depois de tal ataque, outros tipos de multidões teriam respondido da mesma maneira. O movimento climático, não.

As restrições à violência estendem-se à destruição de propriedade. Em Groningen, o “consenso de ação” que cada participante tinha de cumprir prometia solenemente que “não danificaremos máquinas ou infraestrutura”. Um ano depois, a primeira imitação sueca de Ende Gelände ocorreu em Gotemburgo contra a construção de um terminal de gás, parte de uma nova infraestrutura para combustão de combustível fóssil implantada em todo o continente. Uma empresa chamada Swedegas projetou o terminal e planejava mais oito na costa sueca. O gás liquefeito seria importado de todo o mundo e bombeado para o país por meio de uma rede de dutos, em benefício de um consórcio global de investidores.

E assim lá fomos nós com nossos macacões brancos, para o porto de Gotemburgo com quinhentas pessoas – a maior ação de desobediência civil na história moderna desta nação sonolenta – e bloqueamos todos os caminhões que transportavam óleo e gás por um dia. O consenso da ação afirmava que “nos comportaremos com calma e cuidado”; além disso, “não é nosso objetivo destruir ou danificar qualquer infraestrutura”. Passamos o dia sentados no asfalto. Até agora, o movimento para evitar uma catástrofe climática galopante não foi apenas civil: foi gentil e brando ao extremo.

Dois cenários

Não há dúvida de que essa postura foi útil. Ela confere ao movimento um conjunto de vantagens táticas bem conhecidas. Se tivesse implantado táticas do tipo black bloc desde o início – vestir máscaras sinistras, quebrar janelas, queimar barricadas, lutar com os policiais – nunca teria atraído esse número de pessoas. O nível de exigência para o ingresso em uma interrupção do ritmo habitual dos negócios é reduzido por certificados de paz. O fato de termos sido espancados nos trilhos da ferrovia em Groningen nos fez ganhar a simpatia da imprensa holandesa; ninguém poderia nos acusar de terroristas ou algo parecido.

Se alguns de nós em Gotemburgo tivessem começado a cortar as cercas ou usado estilingues contra os caminhões, a cena teria se transformado em caos. Teríamos sido encurralados e levados para a prisão; Eu não poderia ter trazido meus dois filhos para o local e brincado com eles por horas.

Autodisciplina coletiva – submetida às diretrizes da liderança operacional; conduzindo uma ação de acordo com os planos – é uma virtude. Não se pode questionar a determinação do movimento em ampliar seu desafio ao ritmo habitual dos negócios por meio de ações de massa cada vez maiores e mais ousadas, precisamente deste tipo: este é o principal caminho a seguir. Deixe uma centena de acampamentos do Ende Gelände florescer e o capital fóssil poderá se ver sob pressão real.

O que pode ser questionado, entretanto, é outra coisa. Será a não-violência absoluta o único caminho, para sempre a única tática admissível na luta para abolir os combustíveis fósseis? Podemos ter certeza de que será suficiente contra esse inimigo? Devemos nos amarrar ao seu mastro para chegar a um lugar mais seguro?

A questão pode ser formulada de uma maneira diferente. Imagine que as mobilizações em massa do terceiro ciclo se tornem impossíveis de ignorar. As classes dominantes se sentem sob tal pressão – talvez seus corações até derretam um pouco ao ver todas essas crianças com cartazes escritos à mão – que sua obstinação diminui.

Novos políticos são eleitos para cargos, principalmente dos partidos Verde na Europa, os quais cumprem suas promessas eleitorais. A pressão é mantida de baixo para cima. Moratórias para novas infraestruturas de combustível fóssil são instituídas. Legislação e planejamento são implementados para reduzir as emissões em pelo menos 10% ao ano; a energia renovável e o transporte público são ampliados, as dietas à base de plantas são promovidas e a proibição total dos combustíveis fósseis é preparada. O movimento deve ter a chance de ver esse cenário.

Mas imagine um cenário diferente: alguns anos depois, as crianças da geração Thunberg e o resto de nós acordamos uma manhã e percebemos que o ritmo habitual dos negócios ainda está em andamento, apesar de todas as greves, da ciência, dos apelos, dos milhões com roupas coloridas e faixas – nada além do reino do imaginável. Imagine os mecanismos bem lubrificados girando mais rápido do que nunca. O que fazemos então?

Aumentando a lacuna

Enquanto isso, na economia mundial capitalista realmente existente, desdobrando-se em paralelo ao movimento climático crescente, o dinheiro está fluindo para a construção de novas chamas. Em maio de 2019, poucas semanas após a “revolta de primavera” do XR em Londres, a Agência Internacional de Energia (IEA) divulgou seu relatório anual sobre as tendências de investimento no mundo da energia. Os capitalistas sabiam em que fontes apostar.

Dois terços do capital colocado em projetos de geração de energia no ano de 2018 foram para petróleo, gás e carvão – ou seja, para instalações adicionais de extração e queima de tais combustíveis, além de todas que já se estendiam pelo globo – contra menos de um terço do capital indo para eólica e solar.

Saiba mais em: https://jacobin.com.br/2021/11/o-movimento-climatico-precisa-se-radicalizar-mais/

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