Clipping

As histórias dos despejados na pandemia

O drama das 300 famílias de uma ocupação de Curitiba. Vivem de doações e trabalham duro para erguer casas. Expulsa de casa, Michelle não dorme com medo das ameaças de reintegração. Outra, ex-artista de circo, rala para filhas e netos

Por Felippe Aníbal

Nem bem se deitou na cama, às 23 horas da última sexta-feira (29), Taelton Alison Amaral, de 27 anos, pegou num sono pesado. Entregador de um aplicativo de delivery, ele calculava ter pedalado mais de 100 km ao longo do dia, sob uma chuva fina. A mulher dele, Michelle Cristina dos Santos, de 30 anos, no entanto, não conseguia dormir. A ocupação em que o casal mora com os dois filhos – o Jardim Veneza, no bairro Tatuquara, extremo Sul de Curitiba – está com os dias contados: a Justiça determinou a reintegração de posse do local. A comunidade se formou em dezembro de 2020, no auge da pandemia, composta por trezentas famílias em extrema vulnerabilidade social, que estavam desempregadas e/ou não conseguiam pagar o aluguel, graças ao descontrole da inflação. Seis dos lotes do Jardim Veneza são ocupados por parentes de Michelle – irmãs, tia, primas… Uma família inteira prestes a perder o teto.

“Ou a gente come ou a gente paga aluguel. Não tem como se manter, ainda mais agora, que subiu tudo. É impossível”, disse Michelle. “A gente precisa comprar fralda, leite… O gás foi minha sogra quem deu, mas está no fim. Quando acabar, sabe Deus como vamos cozinhar. A gente está à beira de ir morar na rua, com duas crianças pequenas. Isso tem tirado o sono de todo mundo”, lamentou.

Antes de integrar a ocupação, Amaral e Michelle moravam em uma casa alugada, mas o aumento contínuo da inflação e os gastos que surgiram com a gestação fizeram com que a família fosse despejada, depois de cinco meses sem pagar o aluguel. No Jardim Veneza, por nove meses, eles moraram em um barraco de uma “peça” (cômodo), até conseguirem a doação da madeira com a qual construíram a casinha atual. Caprichoso, o casal mantém uma horta e cultiva girassóis ao redor da residência, enquanto sonha em poder construir um banheiro – a exemplo da maioria dos moradores da ocupação, a família toma banho “de canequinha”, esquentando a água com um “rabo-quente” (uma resistência conectada a fios, ligados à tomada). Não há saneamento básico e as ligações de água e luz são clandestinas e precárias.

A situação financeira da família piorou em janeiro deste ano, quando venceu o período de licença-maternidade de Michelle. Pouco depois de se reapresentar ao trabalho – em uma lanchonete drive in – ela foi demitida. Como ninguém é beneficiário de programas sociais, a família passou a viver dos cerca de 800 reais mensais que Amaral consegue fazer entregando lanches e refeições por aplicativo. A comunidade fica a 30 km da região central, o que faz com que ele pedale à exaustão, trabalhando das 8 às 22 horas, em média. Na semana retrasada, uma peça da bicicleta dele quebrou, e o entregador só não parou de trabalhar porque conseguiu pegar emprestada a bicicleta de um tio. “Não é só a gente. Essa é a condição de todos aqui [na ocupação]. É a condição de outros da família”, resumiu Michelle.

O Jardim Veneza surgiu na madrugada de 12 de dezembro de 2020, quando dezenas de famílias que se organizavam a partir de grupos de WhatsApp chegaram ao local, dividiram parte do terreno em lotes e começaram a armar barracas em uma área de 3 alqueires, o equivalente a dez campos de futebol. A área faz parte de um imóvel maior, de 23 alqueires, que pertence à incorporadora Tatuquara Administradora de Bens S/A. Os coordenadores da ocupação, no entanto, dizem que o terreno estava abandonado havia quarenta anos. Eles também alegam que o imóvel está matriculado em nome da Britanite, uma fabricante de explosivos que hoje pertence a um grupo chileno que já esteve sediado no local, antes de se transferir à região metropolitana de Curitiba.

Logo nas primeiras semanas de existência, o Jardim Veneza começou a ganhar cara de comunidade. As barracas temporárias deram lugar a barracos e casebres de madeira, além de algumas poucas casas de alvenaria, em dezesseis ruas abertas pelos moradores e identificadas por nomes. Também já se instalaram alguns pontos de comércio, como uma mercearia e uma padaria. Em 3 de outubro, o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) abriu à entrada da ocupação uma “cozinha solidária”, que prepara e distribui gratuitamente 120 refeições por dia, de terça a domingo, além de coordenar a entrega de doações de cestas básicas às famílias. É o que tem afastado a fome de boa parte das casinhas da comunidade.

A Fundação de Ação Social (FAS), da prefeitura de Curitiba, visitou a ocupação em 24 de fevereiro e cadastrou 142 famílias que estavam em casa no momento da abordagem. Incluído no processo de pedido de reintegração de posse que tramita na Justiça, o levantamento dá uma ideia da dimensão da vulnerabilidade social em que as pessoas se encontram: 84% das famílias vivem com até dois salários mínimos. Entre essas, 17% não têm renda e 24% se mantêm com menos de um salário mínimo.

“Os moradores são pessoas trabalhadoras, mas que foram afetadas pela pandemia: perderam seus empregos e não tinham como pagar o aluguel. Tem muitas famílias inteiras, com crianças, com idosos… E tudo isso piorou com a inflação e com a falta de políticas públicas. É gente que está quase passando fome”, disse Fernanda Cordeiro, coordenadora da cozinha solidária. Ela mora em um dos lotes do Jardim Veneza, com o marido desempregado, com o irmão que tem deficiência mental e com o filho de 18 anos.

Fernanda Cordeiro (à direita) coordena a cozinha solidária do MTST – Foto: Felippe Aníbal

Logo após a área ter sido ocupada, a Tatuquara Administradora de Bens S/A ajuizou um pedido de reintegração de posse. Depois de uma série de recursos, em 21 de setembro, o desembargador Fernando Paulino da Silva Wolff Filho determinou que a reintegração de posse fosse cumprida em um prazo de 45 dias e determinou que o município, a FAS e a Companhia de Habitação Popular de Curitiba (Cohab) estabelecessem um plano de remoção das famílias. Um mês adiante, no entanto, o desembargador suspendeu o cumprimento da reintegração, com base na recém-sancionada Lei 14.216/21, que estabelece que despejos coletivos não sejam cumpridos até 31 de dezembro, em razão da pandemia do novo coronavírus.

 

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