Clipping

O novo mapa da desigualdade global

Equipe liderada por Piketty lança relatório-2022. Os 10% mais ricos capturam 78% da riqueza. Restam, a metade da população, 2%. Distorções devastam sociedades e planeta. Há alternativas: impostos redistributivos e políticas sociais potentes

Por: Rôney Rodrigues

Dados confiáveis de desigualdade como bens públicos globais

Vivemos em um mundo com muitos dados e, no entanto, carecemos de informações básicas sobre a desigualdade. Os números do crescimento econômico são publicados todos os anos por governos em todo o mundo, mas não nos dizem muito sobre como esse crescimento é distribuído entre a população: sobre quem ganha e quem perde com as políticas econômicas. O acesso a esses dados é fundamental para a democracia. Além da renda e da riqueza, também é fundamental melhorar nossa capacidade coletiva de medir e monitorar outras dimensões das disparidades socioeconômicas, incluindo as desigualdades de gênero e as ambientais. Informação sobre desigualdade com acesso livre, transparente e confiável é um bem público global.

Este relatório apresenta nossa síntese mais atualizada dos esforços de pesquisa internacional para rastrear as desigualdades globais. Os dados e análises aqui apresentados baseiam-se no trabalho de mais de 100 pesquisadores localizados em todos os continentes, ao longo de quatro anos, contribuindo para o World Inequality Database (WID.world), mantido pelo World Inequality Lab. Esta vasta rede colabora com instituições estatísticas, autoridades fiscais, universidades e organizações internacionais para compilar, analisar e divulgar dados comparáveis de desigualdade internacional.

As desigualdades contemporâneas de renda e riqueza são muito grandes

Um adulto médio ganha, em PPC (Paridade do Poder de Compra), US$ 23.380 por ano em 2021, e esse mesmo adulto médio ganha US$ 102.600. Essas médias mascaram grandes disparidades entre os países e mesmo dentro deles. Os 10% mais ricos da população global atualmente respondem por 52% da renda global, enquanto a metade mais pobre da população ganha 8% dela. Em média, um indivíduo entre os 10% mais ricos da distribuição de renda global ganha US$ 122.100 por ano, enquanto um indivíduo da metade mais pobre da distribuição de renda global ganha US$ 3.920 por ano (Figura 1).

As desigualdades de riqueza global são ainda mais pronunciadas do que as desigualdades de renda. A metade mais pobre da população global mal possui alguma riqueza, tem apenas 2% do total dela. Em contraste, os 10% mais ricos da população global possuem 76% de toda a riqueza do planeta. Em média, a metade mais pobre da população possui PPC US$ 4.100 por adulto e os 10% mais ricos possuem US$ 771.300 em média (Figura 4).

FIGURA 1 – Renda global e desigualdade de riqueza

Interpretação: Os 50% mais pobres possuem 8% da renda total medida pela Paridade do Poder de Compra (PPC). Os 10% mais ricos possuem 76% do total da riqueza doméstica e capturam 52% da renda total em 2021. Observe que os maiores detentores de riqueza não são necessariamente os maiores detentores de renda. Os rendimentos são medidos após a operação dos sistemas de pensões e de desemprego e antes dos impostos e transferências. Fonte: wir2022.wid.wolrd/methodology

O Oriente Médio e o norte da África são as regiões mais desiguais do mundo, enquanto a Europa tem os níveis de desigualdade mais baixos

A Figura 2 mostra os níveis de desigualdade de renda entre as regiões. A desigualdade varia significativamente entre a região mais igualitária (Europa) e a mais desigual (Oriente Médio e Norte da África, na sigla MENA). Na Europa, a riqueza dos 10% mais ricos é de cerca de 36% do total, enquanto no Oriente Médio e no norte da África esse valor chega a 58%. Entre esses dois níveis, vemos uma diversidade de padrões. No Leste Asiático, os 10% mais ricos possuem 43% da riqueza total e na América Latina, 55%.

FIGURA 2 – A metade mais pobre fica para trás: 50% inferior, 40% intermediário e 10% superior em todo o mundo em 2021

Interpretação: Na América Latina, os 10% mais ricos possuem 55% da renda nacional, em comparação com 36% na Europa. O rendimento é medido após as contribuições para pensões e seguro-desemprego, além de benefícios pagos e recebidos pelo indivíduo, mas antes do imposto de renda e outras transferências. Fonte: wir2022.wid.wolrd/methodology

A renda média nacional nos diz pouco sobre a desigualdade

O mapa mundial da desigualdade (Figura 3) revela que os níveis de renda média nacional são indicadores ruins para a desigualdade: entre os países de alta renda, alguns são muito desiguais (como os EUA) enquanto outros são relativamente igualitários (por exemplo, Suécia). O mesmo vale para países de renda baixa e média, com alguns exibindo desigualdade extrema (por exemplo, Brasil e Índia), níveis um tanto elevados (China) e níveis moderados a relativamente baixos (por exemplo, Malásia e Uruguai).

FIGURA 3 – Dos 10% mais ricos aos 50% mais pobres: gargalos de renda no mundo, 2021

Interpretação: No Brasil, os 50% mais pobres ganham 29 vezes menos do que os 10% mais ricos. Este valor é 7 vezes menor na França. O rendimento é medido após as contribuições para pensões e seguro-desemprego e benefícios pagos e recebidos pelo indivíduo, mas antes do imposto de renda e outras transferências. Fonte: wir2022.wid.wolrd/methodology

FIGURA 4 –A concentração extrema de capital: Desigualdade de riqueza no mundo, 2021.

Interpretação: Os 10% mais ricos na América Latina ficam com 77% da riqueza total, contra 22% para os 40% intermediários e 1% para os 50% mais pobres. Na Europa, os 10% mais ricos possuem 58% da riqueza total, contra 38% dos 40% intermediários e 4% dos 50% mais pobres. Fonte: wir2022.wid.wolrd/methodology

A desigualdade é uma escolha política, não uma inevitabilidade

As desigualdades de renda e de riqueza aumentaram em quase todo o mundo desde a década de 1980, após uma série de programas de desregulamentação e liberalização que assumiram diferentes formas em diferentes países. O aumento não foi uniforme: alguns países experimentaram aumentos espetaculares na desigualdade (incluindo os EUA, Rússia e Índia), enquanto outros (países europeus e China) experimentaram aumentos relativamente menores. Essas diferenças, que discutimos longamente na edição anterior do Relatório Mundial sobre as Desigualdades, confirmam que a desigualdade não é inevitável. É uma escolha política.

As desigualdades globais contemporâneas estão próximas dos níveis do início do século XX, no auge do imperialismo ocidental

Embora a desigualdade tenha aumentado na maioria dos países, nas últimas duas décadas, as desigualdades globais entre os países diminuíram. A diferença entre a renda média dos 10% mais ricos e a renda média dos 50% mais pobres caiu de cerca de 50 x para um pouco menos de 40x (Figura 5). Ao mesmo tempo, as desigualdades aumentaram significativamente dentro desses países. A diferença entre as rendas médias dos 10% mais ricos e dos 50% mais pobres dos indivíduos dentro dos países quase dobrou, de 8,5x para 15x. Esse aumento acentuado nas desigualdades dentro dos países significou que, apesar da recuperação econômica e do forte crescimento nos países emergentes, o mundo continua particularmente desigual hoje em dia. Isso também significa que as desigualdades dentro dos países são agora ainda maiores do que as desigualdades significativas observadas entre países (Figura 6).

FIGURA 5 – Desigualdade de renda global

Interpretação: A desigualdade global, medida pelo cálculo T10/B50 entre o rendimento médio dos 10% mais ricos e o rendimento médio dos 50% mais pobres, mais do que duplicou entre 1820 e 1910, de menos de 20x para cerca de 40x, e se estabilizou em torno de 40x entre 1910 e 2020. É muito cedo para dizer se o declínio na desigualdade global observado desde 2008 vai continuar. O rendimento é medido após as contribuições para pensões e seguro-desemprego e benefícios pagos e recebidos pelo indivíduo, mas antes do imposto sobre o rendimento e outras transferências. Fonte: wir2022.wid.wolrd/methodology

FIGURA 6 – Desigualdade de renda global: desigualdade entre versus dentro do país (índice de Theil) 1820-2020

Interpretação: A importância da desigualdade entre os países, medida pelo índice de Theil, aumentou entre 1820 e 1980 e diminuiu fortemente desde então. Em 2020, a desigualdade entre os países representava cerca de um terço da desigualdade global entre os indivíduos. O resto se deve à desigualdade dentro dos países. O rendimento é medido per capita após as transferências de pensões e seguro-desemprego e antes dos impostos sobre o rendimento e o patrimônio. Fonte: wir2022.wid.wolrd/methodology e Chancel e Piketty (2021)

As desigualdades globais parecem ser tão grandes hoje quanto no auge do imperialismo ocidental no início do século XX. Na verdade, a parcela da renda atualmente auferida pela metade mais pobre da população mundial é cerca de metade do que era em 1820, antes da grande ruptura entre os países ocidentais e suas colônias (Figura 7). Em outras palavras, ainda há um longo caminho a percorrer para desfazer as desigualdades econômicas globais herdadas da organização muito desigual da produção mundial entre meados do século XIX e meados do século XX.

FIGURA 7 – Desigualdade de renda global, 1820-2020

Interpretação: A parcela da renda global que vai para os 10% mais rico em nível mundial flutuou em torno de 50-60% entre 1820 e 2020 (50% em 1820, 60% em 1910, 56% em 1980, 61% em 2000, 55% em 2020), enquanto a parcela que vai para os 50% mais pobre geralmente tem sido em torno ou abaixo de 10% (14% em 1920, 7% em 1910, 5% em 1980, 6% em 2000, 7% em 2020). A desigualdade global sempre foi muito grande. Ele cresceu entre 1820 e 1910 e mostra pouca tendência de redução a longo prazo entre 1910 e 2020. Fonte: wir2022.wid.wolrd/methodology e Chancel e Piketty (2021)
A Figura 15 mostra que essas desigualdades não são apenas uma questão de país rico versus país pobre. Existem grandes emissores em países de baixa e média renda e baixos emissores em países ricos. Na Europa, os 50% mais pobres da população emitem cerca de cinco toneladas por ano por pessoa; os 50% mais pobres no Leste Asiático emitem cerca de três toneladas e os 50% mais pobres na América do Norte, cerca de 10 toneladas. Isso contrasta fortemente com as emissões dos 10% mais ricos nessas regiões (29 toneladas na Europa, 39 no Leste Asiático e 73 na América do Norte).

FIGURA 15 – Emissões per capita em todo o mundo, 2019

Interpretação: As pegadas de carbono pessoais incluem emissões de consumo doméstico, investimentos públicos e privados, bem como importações e exportações de carbono incorporado em bens e serviços comercializados com o resto do mundo. Estimativas modeladas com base na combinação sistemática de dados fiscais, pesquisas domiciliares e tabelas de insumo-produto. As emissões são divididas igualmente dentro das famílias. Fonte: wir2022.wid.wolrd/methodology e Chancel (2021)

Este relatório também revela que a metade mais pobre da população dos países ricos já está dentro (ou perto) das metas climáticas para 2030 estabelecidas pelos países ricos, quando essas metas são expressas em uma base per capita. Este não é o caso da metade mais rica da população. Grandes desigualdades nas emissões sugerem que as políticas climáticas devem visar mais os poluidores ricos. Até agora, as políticas climáticas, como os impostos sobre o carbono, têm frequentemente impactado, de forma desproporcional, os grupos de baixa e média renda, ao mesmo tempo em que não alteram os hábitos de consumo dos grupos mais ricos.

Saiba mais em: https://outraspalavras.net/desigualdades-mundo/novo-mapa-da-desigualdade-global/

Comente aqui