José Luís Fiori, um dos pensadores brasileiros mais originais, fala de sua vida, ideias, pesquisas e influências. Ele vê na articulação entre riqueza e conquista, iniciada na Europa no século XII, chave para examinar sistema capitalista
Por José Luís Fiori/ Entrevista a Gilberto Bercovici e Luiz Felipe Osório
Ainda em meio à pandemia do coronavírus e à tragédia social desencadeada no Brasil, na frieza do distanciamento social e de respostas por escrito, José Luís Fiori concedeu à Margem Esquerda uma entrevista única. Para além de análises certeiras e debates teóricos, o intelectual que nunca se encaixou nas formas estanques das especializações científicas do pensamento social e político enfatiza, aqui, uma narrativa biográfica, na qual mescla eventos da sua vida com os acontecimentos da história política do Brasil e do mundo, simbiose a qual permitiu que experimentasse a estadia em vários países e a convivência com grandes cânones do nosso tempo.
Na apresentação de História, estratégia e desenvolvimento, o economista chileno, José Gabriel Palma, professor da Universidade de Cambridge, diz que Fiori é um pensador “herético” pela sua multidisciplinariedade e independência com relação a autores de referência e escolas de pensamento. De fato, Fiori se formou no Chile, quando as grandes questões em debate eram a revolução, o socialismo democrático e o desenvolvimento, e quando se formularam as principais teorias da dependência, e esses debates o marcaram definitivamente. Com o passar do tempo, formulou sua própria visão a respeito do funcionamento do sistema internacional e recolocou o debate do bloqueio do desenvolvimento latino-americano no contexto das lutas geopolíticas pelo poder global. Suas análises são marcadas pelo pessimismo da razão e pelo otimismo da vontade, na expressão clássica de Gramsci, e pela frieza com que disseca os fatos e as tendências no pleno calor dos acontecimentos. Sua produção teórica e suas análises da conjuntura nacional e internacional, sobretudo a partir da década de 1990, fazem dele um dos principais articulistas e pensadores brasileiros.
Neste denso documento, conduzido pelos professores Luiz Felipe Osório e Gilberto Bercovici nos primeiros dias de setembro de 2020, Fiori nos deixa pistas para conhecer melhor sua vida e obra em meio às transformações mundiais e aos seus impactos sobre o contexto político-econômico latino-americano e brasileiro. Desde os tempos do seu exílio no Chile, passando por vários países, e depois no Rio de Janeiro, ele discute sua história e suas conjunturas, entre livros e artigos que foram marcando sua vida e sua trajetória intelectual de lutas, derrotas e vitórias por igualdade, liberdade e o desenvolvimento soberano do Brasil.
Para iniciar esta conversa, seria interessante ouvir sobre sua trajetória. Desde o Rio Grande do Sul até o Rio de Janeiro foi uma longa caminhada que passou por várias cidades e destinos, incluindo momentos no exterior, e todo esse percurso estava imerso nos solavancos da história brasileira, mesclando momentos de euforia desenvolvimentista e repressão política.
Costumo pensar comigo mesmo que tive dois exílios ou duas grandes “imigrações” que marcaram minha vida intelectual, profissional e pessoal. O primeiro deles quando tinha dezenove anos e fui obrigado, pela ditadura militar, a me exilar no Chile. E o segundo, quase dez anos depois, quando fui obrigado a sair de lá por causa da ditadura militar do general Pinochet. Depois disso, em distintos momentos, vivi na Argentina, nos Estados Unidos, na Espanha, na Inglaterra, permaneci ou retornei muitas vezes à França, Itália, Alemanha, Europa Central e acabei visitando dezenas de países e centenas de cidades ao redor do mundo. Essas viagens ajudaram a forjar minha paixão pelo mundo e meu interesse pelo sistema mundial. Aprendi a importância decisiva das fronteiras e identidades nacionais, e ao mesmo tempo aprendi a não ser nacionalista, mas a ser internacionalista sem me transformar num cosmopolita ingênuo e liberal.
Não há dúvida de que meu primeiro exílio foi o que me deixou a marca mais profunda e definitiva, porque depois de sair do Brasil fui obrigado a viver toda minha juventude como “apátrida”, desde o momento em que os militares brasileiros tiraram minha identidade brasileira, obrigando-me a viver com um documento fornecido pelo governo chileno aos refugiados que se exilavam no seu território sem uma documentação nacional. Além disso, foi no Chile que fiz minha formação acadêmica, onde estudei sociologia, economia e filosofia. Por isso, aliás, meu sentimento tão forte de um segundo exílio quando saí de lá, porque já tinha minha vida praticamente formada no momento em que tive que fugir de novo. Hoje, eu não saberia avaliar se eu teria saído do Chile se não fosse pelo golpe de Pinochet. O que sei é que para mim foi muito triste deixar o país à época. Eu tinha acabado de completar 28 anos e, na verdade, ao sair de Santiago, deixei para trás minha juventude e minha segunda pátria.
Você sempre conta que tocou-lhe viver um período de grandes transformações no Chile, durante os governos de Eduardo Frei e Salvador Allende, e como foi um período de grande ebulição de ideias inovadoras até chegar o golpe militar. Qual o impacto que isso teve na sua formação intelectual?
Saí do Brasil em 1965, antes dos chamados “anos de chumbo” da ditadura militar brasileira, mas acompanhei de perto a experiência chilena dos governos de Eduardo Frei e Salvador Allende, e até assisti da minha casa o bombardeio final da residência do presidente chileno. Quando cheguei ao Chile, e, sobretudo, no ambiente universitário que frequentei, o grande debate dos anos 1960 e início dos 1970 era sobre reforma ou revolução, socialismo ou capitalismo de Estado, e sobre a possibilidade da “transição democrática” para o socialismo.
O debate sobre o desenvolvimento e o “desenvolvimentismo” não ocupava lugar central na agenda das nossas discussões. A atmosfera intelectual era de grande euforia utópica, e a Revolução Cubana exercia – obviamente – enorme fascínio sobre a juventude, como prova de que a revolução era possível e se podia construir um mundo novo na América Latina. Não consigo lembrar nessa época de nenhum jovem que tivesse como seu ideal apenas o “desenvolvimento”, ou como ideologia, o “desenvolvimentismo”. O escritório central da Cepal 1estava em Santiago, e suas pesquisas e formulações econômicas foram muito importantes, mas estiveram muito pouco presentes na minha formação acadêmica, pelo menos no meu tempo de graduação em sociologia na Universidade do Chile, embora as ideias e as propostas cepalinas tenham exercido forte influência sobre o “reformismo democrata cristão” do governo de Eduardo Frei, entre 1964 e 1970.
De qualquer forma, mais além da Cepal, a própria experiência reformista dos democratas-cristãos e, depois, a experiência frustrada do socialismo democrático de Salvador Allende atraíram para o Chile muitos intelectuais do mundo todo, e de todos os matizes teóricos e ideológicos, que vinham pesquisar, observar ou participar de congressos e seminários, transformando a cidade numa verdadeira universidade aberta e pública, um verdadeiro caldeirão de ideias, uma experiência intelectual única, que já tinha ocorrido em algumas cidades europeias nos séculos XIX e XX, mas que nunca tinha acontecido, e nunca mais ocorreu, na América Latina.
Lembro de uma vez, por exemplo, que vinha caminhando e vi uma aglomeração de pessoas na frente de um prédio. Parei, escutei, entrei e vi um senhor mais velho de gravata borboleta falando para um público muito atento. Então, perguntei quem era e me disseram que era Arnold Toynbee. Sentei e escutei uma brilhante conferência e depois segui meu caminho. Mas poderia ter sido Bobbio, Foucault, Braudel ou mesmo Willy Brandt, Enrico Berlinguer ou, mais tarde, o próprio Fidel Castro. Esse era o clima intelectual de Santiago do Chile naquela época.
Além disso, tive experiências profissionais interessantes. Primeiro, trabalhei numa pesquisa do professor Alain Touraine sobre a classe trabalhadora chilena. Depois, fiz concurso e trabalhei no Instituto de Sociologia da Universidade do Chile, e, em seguida, nos anos 1967-68, trabalhei com Paulo Freire no Icira 2, numa pesquisa sobre a “consciência camponesa” e o processo de reforma agrária. Foi no tempo em que o Paulo Freire estava escrevendo seu livro Pedagogia do oprimido, que eu acompanhei muito de perto; e finalmente trabalhei também no Cidu 3 , numa investigação sobre os “movimentos sociais urbanos”, e numa equipe de que participavam também os sociólogos espanhóis Manuel Castells e Jordi Borja.
Assim mesmo, de tudo isso o que mais me marcou intelectualmente nesses anos de trabalho em Santiago foi minha convivência com Paulo Freire, de quem me fiz grande amigo, apesar de nossa diferença de idade. Sempre digo que Paulo foi quem me ensinou a pensar com liberdade, sem medo das minhas próprias ideias. No final de 1968, ele foi trabalhar na Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, e em seguida foi para o Conselho Mundial das Igrejas, em Genebra, onde me convidou em 1971 para fazer algumas conferências. Guardo dele uma lembrança muito forte e, por isso, foi muito gratificante para mim, quando, muitos anos depois, em 1981, encontrei um vendedor de livros numa rua de Sevilha que expunha um pequeno livrinho que levava na capa o nome do Paulo, do meu pai [Ernani Maria Fiori, importante filósofo brasileiro] e o meu. Era uma pequena edição espanhola de três artigos nossos publicados sob o título La educación liberadora [A educação libertadora].
Saiba mais em: https://outraspalavras.net/geopoliticaeguerra/para-desvendar-as-logicas-do-capital-e-da-guerra/
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