Dois projetos de lei buscam ampliar a dispensa de vistorias e premiar com títulos os invasores de terras públicas. Hoje, 30% das áreas ocupadas na Amazônia estão cadastradas ilegalmente. Mudança beneficiaria quem delas se apropriou .
Thais Bannwart, em entrevista a João Vitor Santos
Houve um tempo em que o Brasil era destaque internacional pela vanguarda de políticas de proteção ambiental, sendo visto sob os louros de prestígio de um líder ambiental. “A exemplo dessa liderança, vale mencionar o próprio Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal e o Fundo Amazônia, a Política Nacional de Meio Ambiente, o Sistema Nacional de Unidades de Conservação, o Código Florestal e o Cadastro Ambiental Rural, entre outros”, recorda Thais Bannwart, gestora ambiental e integrante do Greenpeace. Mas, atualmente, a realidade é outra. “O desmonte produzido em dois anos e meio por este governo na gestão ambiental não tem precedentes históricos e coloca em risco 30 anos de construção de políticas públicas socioambientais no país”, lamenta, na entrevista concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
E um dos exemplos mais recentes desse desmonte é o avanço sobre terras que há muito estão na mira dos grileiros na região amazônica. Agora, o assunto volta à pauta com a possibilidade da votação de um PL, apelidado de PL da Grilagem, em regime de urgência. “Tanto o PL 2633/2020, que tramita na Câmara dos Deputados, quanto o PL 510/2021, que tramita no Senado, servem aos mesmos objetivos de legalização da grilagem de terras e são absolutamente desnecessários para promover a justiça social no campo”, analisa Thais, recordando que a pauta chega a tramitar em duplicidade no Congresso brasileiro.
Falar que o governo de Jair Bolsonaro pauta sua gestão ambiental na abertura de porteiras para a “boiada passar” não é novidade. Mas, como bem pontua a ambientalista, é preciso também ter a clareza de que muitas das ‘aberturas de porteiras’ encontram guarida no parlamento. “O desmonte ambiental promovido e liderado pelo governo Bolsonaro encontra em 2021 no Congresso Nacional espaço perfeito para avançar na desregulamentação e fragilização da legislação ambiental”, reitera Thais. Aliás, muito dessa desregulamentação tem origem entre os próprios parlamentares. “Após dois anos focados em mudanças infralegais e redução da capacidade operacional e técnicas dos órgãos ambientais, com as novas presidências das Casas Legislativas e com as restrições de debate e obstruções causadas pelo funcionamento remoto no Congresso, o governo e a bancada ruralista têm as condições ideais para colocar em votação projetos que vão contra o interesse da sociedade e têm baixa aderência popular”, completa.
Para Thais, “sem a reversão completa da política deste governo não há como esperar outros resultados que não sejam o aumento do desmatamento, das queimadas, da perda da biodiversidade e da violência e vulnerabilidade de povos indígenas e comunidades tradicionais”. Embora acredite que “o país tem condições de retomar essa trajetória bem-sucedida”, vê apenas um caminho: “superar esta agenda que está colocada, para uma outra agenda que seja baseada numa nova visão de um modelo socioeconômico sustentável e inclusivo para a Amazônia e para o Brasil, baseada em valores de solidariedade, justiça, esperança, confiança e verdade”.
Thais Bannwart é gestora ambiental e mestra em Desenvolvimento Econômico e Meio Ambiente pelo Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. Trabalhou por quatro anos na Amazônia, com agricultura de base familiar, nos estados de Mato Grosso e Amazonas. Atualmente trabalha como analista de políticas públicas federais no Greenpeace e reside em Piracicaba, São Paulo.
Confira a entrevista
A Câmara dos Deputados está se preparando para votar, em regime de urgência, o Projeto de Lei (PL) 2633/2020, apelidado pela oposição e por organizações civis de “PL da Grilagem”. Em que consiste esse projeto?
A Câmara dos Deputados está se preparando, na verdade, para votar o requerimento de urgência do PL 2633/2020. Isso quer dizer que, se esse requerimento for aprovado, o PL 2633/2020 poderá ser discutido e ter seu texto aprovado diretamente em plenário, não sendo necessário passar pelas comissões técnicas da casa que, teoricamente, seriam espaços mais adequados para a discussão do teor dos projetos de lei.
O PL 2633/2020 teve apensado o PL 1730/2021, de autoria do deputado Lucio Mosquini (MDB-RO), que tem teor muito semelhante ao PL 510/2021, de autoria de Irajá de Abreu (PSD-TO), o PL da Grilagem que tramita no Senado Federal e considerado pior que o PL 2633/2020, por ter critérios mais permissivos para a regularização da grilagem. Cabe mencionar que o deputado Lucio Mosquini, vice-líder do governo e representante da Frente Parlamentar de Agropecuária – FPA, teve seu patrimônio composto por terras multiplicado durante mandato e foi beneficiado pelo orçamento paralelo de Bolsonaro, segundo artigo do De Olho nos Ruralistas.
Tanto o PL 2633/2020, que tramita na Câmara dos Deputados, quanto o PL 510/2021, que tramita no Senado, servem aos mesmos objetivos de legalização da grilagem de terras e são absolutamente desnecessários para promover a justiça social no campo. Os principais problemas dos projetos de lei da grilagem são:
1. Amplia para médias e grandes propriedades a dispensa de vistoria prévia à titulação, aumentando o risco de legalizar áreas em conflito;
2. Busca anistiar o crime de invasão de terra pública, ampliando o marco temporal da Lei 11.952/2009;
3. Permite titular áreas desmatadas ilegalmente, e não exige a assinatura de termos de compromisso de regularização do passivo ambiental em casos em que não houve autuação ambiental antes da titulação;
4. Incentiva reincidência de invasão de terra pública ao mudar novamente o prazo para a regularização, indicando que o mesmo pode acontecer novamente no futuro;
5. Não inova no combate à grilagem e não traz elementos que aumentem a transparência da regularização fundiária, apenas reafirmando dispositivos já existentes nas leis vigentes;
6. Amplia os benefícios atualmente já concedidos para pequenos, médios e grandes imóveis, pois reduz valores cobrados na titulação de quem já tem outro imóvel; dispensa custas e taxas no cartório e no Incra; e amplia prazo de renegociação de crédito rural até o final de 2021;
7. Abre brecha para que florestas públicas se tornem aptas à privatização, caso Funai, SFB e ICMBio não manifestem interesse pela área, dispositivo este que conflita com a Lei de Gestão de Floresta Pública.
Que terras são essas em que a bancada ruralista tanto insiste numa “regularização”? Como foram feitas essas ocupações por parte do “agronegócio”?
Grilagem é toda ação que visa a posse e ou propriedade da terra de forma ilegal, por exemplo, desmatando áreas que ainda não foram destinadas pelo Estado brasileiro para outros usos prioritários. A ocupação de áreas já destinadas para conservação de territórios indígenas, por exemplo, consiste em invasão e em muitos casos na tentativa de grilar aquelas áreas na esperança que a condição de área protegida seja revista.
O grileiro investe na ocupação ilegal de terra e lucra de três formas: com a ocupação sem ônus, com a venda ilegal de madeira e com a produção agropecuária de fachada ou com a venda daquela terra para terceiro. Um estudo realizado na região Amazônica demonstrou através de um Índice de Valorização da Terra que a perda de cobertura florestal na Amazônia não é influenciada apenas por demandas da produção agropecuária, mas envolve também as dinâmicas e disputas do mercado fundiário (Macul, M. S., 2019).
Saiba mais em: https://outraspalavras.net/outrasmidias/pl-da-grilagem-prepara-novo-ciclo-de-devastacao/
Comente aqui