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Relembrando a Revolução Saur

Quarenta e três anos atrás, os comunistas conquistaram o Afeganistão na esperança de trazer modernidade e progresso ao país. Embora tenham implementado grandes reformas, cabe perguntar se eles estavam fadados ao fracasso.

Por Jonathan Neale / Tradução: Cauê Seignemartin Ameni

Quarenta e três anos atrás, em 28 de abril de 1978, os comunistas fizeram uma revolução no Afeganistão. Meu amigo Tahir Alemi foi um deles. Ele era um homem bom e gentil que queria mudar o mundo.

Tahir era professor de literatura pashto na Universidade de Cabul. Ele percorreu um longo caminho. Seu pai era um pequeno camponês em uma aldeia em Nangrahar, perto da fronteira com o Paquistão. A família trabalhava em sua própria terra e tinha um meeiro [agricultor que trabalha em terras de outra pessoa e reparte seus rendimentos com o dono dessas terras]. Até então estava se saindo melhor do que a maioria da população. Tahir chegou à universidade e conseguiu seu emprego por meio de sua enorme inteligência. Ele amava seu pai, seus irmãos e sua mãe. Mas ele teve que enfrentar os valores de seu pai.

O Afeganistão na década de 1970 era um país feudal. O poder não estava com os empresários urbanos, mas com grandes proprietários de terras que viviam no campo. Às vezes havia dois grandes senhores em uma aldeia, às vezes um, e em alguns lugares um homem dominava várias aldeias. Havia muitos camponeses intermediários, homens como o pai de Tahir, talvez com um peão e meeiro junto, mas ainda trabalhando em suas próprias terras.

Abaixo deles estavam os meeiros, talvez metade da população, que tinham permissão para ficar com um terço da safra que colhiam. Na aldeia de Tahir era um quinto, porque a terra era melhor. Em toda parte, meeiros, trabalhadores e pastores eram pagos apenas com o suficiente para comprar três pães naan para cada dois adultos e dois para cada duas crianças. Isso era 2.000 calorias por adulto e 1.300 por criança. Eles não podiam pagar qualquer outra comida.

Fui antropólogo no Afeganistão no início dos anos 1970. As pessoas com quem me envolvi eram nômades com ovelhas, mas passaram por tempos difíceis. Seu padrão de vida era bastante típico dos afegãos pobres. As mulheres tinham dois vestidos em suas vidas, um quando atingiam a puberdade e um segundo quando se casavam. Uma família comum tinha uma pequena xícara de chá. Eles comiam carne, com grande entusiasmo, uma vez por ano na Festa do Profeta. Para que o sabor acompanhasse o pão, eles preparavam uma sopa fervendo trevo e outras verduras que colhiam. Duas das três famílias mais ricas da pequena aldeia de 33 famílias competiram para mostrar hospitalidade a mim e minha esposa. Uma família fritou um ovo para mim em uma ocasião especial. O outro me deu ensopado com uma pequena batata. Ninguém mais tinha uma.

A exploração nessa escala – dois terços a quatro quintos da safra para o proprietário de terras – exigia crueldade e violência. A maior parte disso veio dos senhores locais e seus guarda-costas e bandidos, apoiados pelo governo. Mohammed Zahir Shah, o rei de Cabul, e sua família construíram seu poder favorecendo um senhor em cada distrito e governando por meio dele. “Às vezes temos tirania”, Tahir me disse uma vez. “Então eles vêm e matam você e toda a sua família. Agora temos democracia. Então pegam só você e só arrancam seus olhos. ” Foi uma piada. Nós rimos.

Fotografia de estúdio de Mohammad Zaher Khan em uniforme militar.
Haji Amin Qodrat, Cabul / Wikimedia

O Afeganistão era um país pobre, principalmente árido, deserto ou montanhoso. O governo não tinha poder para tributar os grandes senhores ou os pequenos camponeses. Em vez disso, confiaram em direitos alfandegários. Desde 1842, diferentes governos afegãos contavam com alguma forma de subsídio estrangeiro, geralmente dos britânicos. A partir da década de 1950, o Afeganistão começou a ter “desenvolvimento”. Como parte da Guerra Fria, a ajuda russa e norte-americana pagou cerca de 80% do orçamento civil e a maior parte do orçamento militar. Os russos pagavam cerca de dois terços e os norte-americanos cerca de um terço. Havia muito pouca indústria ou desenvolvimento econômico. O dinheiro da ajuda foi para o Exército, escolas e o serviço público. Agora havia alguns milhares de alunos na Universidade de Cabul e centenas de milhares nas escolas. A velha classe dominante de proprietários de terras era minúscula e não havia como eles fornecerem professores e funcionários públicos. Os recém-educados eram homens como Tahir, filhos de camponeses médios. Seus pais e avós odiavam, em silêncio, os grandes senhores e o governo, e os recém-educados também os odiavam.

Eles sonharam, esses jovens professores, com um Afeganistão desenvolvido e moderno. Certa vez, na província de Helmand, Tahir e eu estávamos no meio de uma multidão silenciosa de curiosos assistindo a uma manifestação de algumas dezenas de garotos do ensino médio. Os alunos se revezaram em pé na caixa para gritar seu slogan: “Morte aos Khans”. Khan era a palavra local para os grandes senhores. O slogan dos meninos não era abstrato. Seu programa político era matar aqueles homens em seu distrito.

“Você tem essas coisas na América?” Tahir me perguntou.

Eu disse a ele que sim, e eu lembrei de alguns casos. Ele me contou sobre o Terceiro de Akrab, em 1965, quando os estudantes em Cabul protestaram em frente ao parlamento recém-eleito e três manifestantes foram mortos a tiros. Ele esteve lá.

Os rapazes e as moças dessa nova classe urbana, a maioria deles professores como Tahir, estavam todos se envolvendo com os partidos islâmicos ou comunistas. A Irmandade era islâmica. Eles tinham formação universitária, da mesma classe de Tahir, e seus jovens militantes se tornariam os líderes da resistência aos russos. Os comunistas foram divididos em dois. Parcham (a Bandeira) era mais educado, urbano e moderado. Khalk (o Povo) era menos educado, de famílias rurais e mais frequentemente de pashtuns. Tahir se juntou a Parcham. Em 1973, os comunistas estavam crescendo mais rápido do que a Irmandade.

Certa vez caminhamos e viajamos de ônibus para as aldeias ao redor de Nangrahar. Tahir foi selecionado pela universidade para ser meu “guia” durante a parte inicial de meu trabalho de campo. Paguei a ele quatro vezes o seu salário mensal de 1.500, três vezes o que um trabalhador ganhava. Eu ainda estava aprendendo o idioma e ele traduzia tudo para mim. Ele também escreveu regularmente relatórios sobre mim para a polícia secreta. Nós dois sabíamos disso, mas não mencionávamos.

O casamento de Tahir foi arranjado. Sua esposa nunca tinha ido à escola. Havia muita coisa que ele não podia falar com ela. Mas ele se casou para agradar sua família. Eles haviam escolhido uma garota local para ele na esperança de que isso o mantivesse ligado à aldeia, e durante os primeiros anos do casamento ela morou com seus pais e ele a visitava quando podia. Ele tentou desenvolver um relacionamento real com ela. Outras meninas iam à escola nas cidades e nas aldeias. Tanto Parcham quanto Khalk estavam cheios de camaradas mulheres. A libertação das mulheres foi fundamental para seu sonho de um mundo melhor. Tahir esperava que um dia, em breve, pudesse fazer a mudança de sua esposa para morar com ele em Cabul. Quando isso acontecesse, ele prometeu, eu poderia conhecê-la, porque ele nunca obrigaria ela a ficar reclusa.

Em 1972 houve uma seca, um efeito precoce da mudança climática. A fome atingia partes do norte. A ajuda alimentar veio dos EUA. Nas cidades, os oficiais do governo empilharam os sacos de grãos nas praças. Os soldados guardavam os grãos e os oficiais os vendiam por até dez vezes o preço normal. Os pequenos camponeses venderam suas terras por quase nada aos clãs feudais e compraram os grãos. Os sem-terra sentaram e esperaram pela morte. Um jornalista francês perguntou-lhes por que não atacavam as pilhas de grãos. “O rei tem aviões”, disseram, “e eles nos bombardeariam”.

O rei e seu governo perderam quase todo o apoio da população. O primo do rei, Mohammed Daoud, foi um primeiro-ministro brutal até 1963. Ele se inclinou mais para os soviéticos e o rei mais para os norte-americanos. Agora os EUA estavam cortando a ajuda depois do Vietnã, e a maior parte do dinheiro vinha da Rússia. Daoud articulou um golpe militar, com apoio soviético. O golpe não encontrou oposição. Depois da fome, ninguém estava preparado para morrer pelo rei.

O trabalho real na articulação do golpe foi feito por oficiais militares comunistas, principalmente da ala Khalk. Como os professores, os oficiais eram de origem camponesa média, geralmente os primeiros de suas famílias a serem educados e, muitas vezes, treinados na União Soviética.

O golpe não mudou nada importante. O poder permaneceu com os grandes senhores, embora a retórica de Daoud fosse de esquerda. A universidade, escolas secundárias e escolas primárias tornaram-se locais intensamente políticos, especialmente nas cidades. Alguns professores faziam proselitismo pela Irmandade, outros por Khalk e Parcham. Os alunos debatiam sobre o que fazer. Parcham defendeu trabalhar com a ditadura de Daoud. Khalk queria uma revolução completa.

Saiba mais em: https://jacobin.com.br/2021/08/relembrando-a-revolucao-saur/

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