Clipping

Teoria e prática da conspiração

Rumo a uma taxonomia de conspirações

Por Edward Snowden

I.

As maiores conspirações são abertas e notórias – não teorias, mas práticas expressas por meio de leis e políticas, tecnologia e finanças. Ao contrário de que se intui, essas conspirações, com frequência, são publicamente anunciadas e com uma pequena dose de orgulho. Elas são devidamente reportadas por nossos jornais; estão estampadas nas capas de nossas revistas; atualizações sobre seu progresso são exibidas em nossas telas – tudo com tal regularidade que nos torna incapazes de relacionar a banalidade de seus métodos à voracidade de suas ambições.

O partido no poder quer redesenhar as linhas distritais [para mudar o perfil do eleitorado]. A taxa básica de juros mudou. Um serviço gratuito foi criado para hospedar nossos arquivos pessoais. Essas conspirações ordenam, e desordenam, nossas vidas; e ainda assim elas não conseguem competir por atenção com pichações digitais sobre pedófilos satanistas no porão de uma pizzaria em Washington, DC.

Em suma, este é o nosso problema: as conspirações mais verdadeiras encontram a menor oposição.

Ou, dito de outra forma, as práticas de conspiração – os métodos pelos quais conspirações verdadeiras, como a estratégia de mudar os distritos eleitorais de modo a dar vantagens para determinado partido e candidatos [estratégia conhecida em inglês por gerrymandering], ou a indústria da dívida ou a vigilância em massa são realizadas – são quase sempre ofuscadas por teorias da conspiração: aquelas falsidades malévolas que em conjunto podem corroer a confiança cívica na existência de algo certo ou verificável.

Em minha vida, estou farto da prática e da teoria. Em meu trabalho para a Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos [NSA}, estive envolvido na implantação de um sistema ultrassecreto destinado a acessar e rastrear as comunicações de cada ser humano no planeta. E, no entanto, depois que fiquei ciente dos danos que esse sistema estava causando – e depois que ajudei a expor essa verdadeira conspiração para a imprensa – não pude deixar de notar que as conspirações que atraíram quase tanta atenção foram aquelas comprovadamente falsas: alegou-se que eu era um agente da CIA escolhido a dedo, enviado para me infiltrar e embaraçar a NSA, que minhas ações eram parte de uma intrincada disputa entre agências. Não, disseram outros: meus verdadeiros mestres foram os russos, os chineses ou pior – o Facebook.

Quando me vi vulnerável a todos os tipos de fantasia na Internet e interrogado por jornalistas sobre meu passado, sobre minha formação familiar e sobre uma série de outras questões inteiramente pessoais e irrelevantes para o assunto em questão, houve momentos em que eu queria gritar: o que está errado com vocês? Tudo o que vocês querem é intriga, mas um incontestável aparato de vigilância onipresente, em escala mundial, andando no seu bolso, não é suficiente? Vocês precisam melhorar?”

Levei anos – oito anos no exílio, e ainda estou nele – para perceber que estava perdendo o ponto principal: falamos sobre teorias da conspiração para evitar falar sobre práticas de conspiração, que muitas vezes são assustadoras demais, ameaçadoras demais, completas demais.

II.

É minha esperança nesta publicação, e nas que virão, chegar a um escopo mais amplo de pensamento conspiratório, pelo exame da relação entre conspirações verdadeiras e falsas e por colocar as perguntas difíceis sobre as relações entre verdade e falsidade em nossas vidas pública e privada.

Começarei oferecendo uma proposição fundamental: a saber, que acreditar em qualquer conspiração, seja verdadeira ou falsa, é acreditar em um sistema ou setor dirigido não por consentimento popular, mas por uma elite, agindo em seu próprio interesse. Pode-se chamar essa elite de Estado Profundo ou Pântano; de Illuminati, ou Opus Dei, ou de judeus, ou simplesmente chamá-lo de as principais instituições bancárias e o Federal Reserve – a questão é que uma conspiração é uma força inerentemente antidemocrática.

O reconhecimento de uma conspiração – novamente, seja verdadeira ou falsa – implica aceitar que não apenas as coisas são diferentes do que parecem, mas são sistematizadas, reguladas, intencionais e até lógicas. Somente ao tratarmos as conspirações não como “planos” ou “esquemas”, mas como mecanismos para ordenar os desordenados, é que podemos ter esperança de compreender como eles deslocaram tão radicalmente os conceitos de “direitos” e “liberdades” como significantes fundamentais da cidadania democrática .

Nas democracias de hoje, o que é importante para um número cada vez maior não é quais direitos e liberdades são reconhecidos, mas quais crenças são respeitadas: qual história ou estória embasa suas identidades como cidadãos e como membros de comunidades religiosas, raciais e étnicas. É essa função de substituição de falsas conspirações – a maneira como elas substituem histórias unificadas ou majoritárias por estórias paroquiais e partidárias – que prepara o palco para um levante político.

Especialmente pernicioso é o modo como as falsas conspirações eximem seus seguidores de se envolverem com a verdade. A cidadania em uma sociedade de conspiração não requer a avaliação de uma declaração de fato sugerido por seu valor de verdade e, em consequência, aceitá-lo ou rejeitá-lo. Mas sim requer a rejeição completa e total de todo valor de verdade que venha de uma fonte inimiga, e a substituição por um enredo alternativo, narrado desde outro lugar.

Saiba mais em: https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/Teoria-e-pratica-da-conspiracao/4/50956

Comente aqui