Por: Cláudio Katz | Créditos da foto: (Facebook/@alferdezok/Arquivo) | Traduzido por César Locatelli
Por fim, o governo assinou um acordo com o FMI que convalida a dívida fraudulenta assumida por Macri. Fernández adoçou o anúncio com a promessa de evitar ajustes e sugeriu que é a melhor opção possível. Porém, ele descartou as alternativas a essa rendição e esqueceu que o país nunca saiu airoso desses compromissos.
Legitimação de um golpe
O acordo legaliza as irregularidades de um crédito que violou todas as normas do FMI e financiou a fuga de capitais, sem contribuir com um único dólar para empreendimentos produtivos. Todas as denúncias oficiais desta fraude estão agora arquivadas e as denúncias contra os funcionários da Cambiemos [coligação de Macri] perdem o sentido. Não é verdade que “Fernández resolve o problema gerado por Macri”. O presidente ratifica as tropelias de seu antecessor e endossa o endividamento forçado das gerações futuras.
O presidente detalhou o que foi acordado para os próximos dois anos e meio, mas nada disse sobre o cenário posterior. A partir de 2025, toda a carga dos 45,5 bilhões de dólares devidos ao Fundo reaparecerá. Nesse momento, ressurgirá a impossibilidade de pagamento e a consequente obrigação de se firmar outro acordo mais oneroso.
Por esta razão, Guzmán evitou desta vez seu termo favorito “acordo sustentável”. Ele arranjou um alívio imediato que adia o problema, repetindo a dilatação de prazo já negociada com os detentores de títulos privados. Foi acertada uma trégua relativa para o próximo biênio, que mantém ativada a bomba do endividamento explosivo.
Se o adiamento funcionar, ao final do período de carência haverá que se enfrentar a mesma montanha de vencimentos impagáveis. Os 20 bilhões de dólares por ano exigidos pelo Fundo também não aparecerão no futuro. Nesse momento, o FMI voltará à carga com suas conhecidas exigências de reforma trabalhista e previdenciária. Guzmán se gaba de ter conseguido a eliminação desses atropelos no atual acordo, mas esconde que eles reaparecerão no próximo refinanciamento.
Algumas autoridades argumentam que o país poderá negociar de uma posição fortalecida dentro de dois anos. Mas não explicam como surgirá essa capacidade reforçada da Argentina para colocar-se ante o Fundo. Os fiscais daquele órgão já estarão confortavelmente instalados no Ministério da Economia e no Banco Central e a grande carta da ilegitimidade de passivos terá se perdido.
Nenhum servidor público poderá se opor no futuro à fraude que agora se convalida. Não poderão alegar a responsabilidade de Macri, Trump e Lagarde sobre um crédito ratificado por Fernández, Biden e Giorgieva.
Todas as denúncias de um passivo ilícito irão para a gaveta da memória. O mesmo acorrerá com os pedidos de intervenção da ONU e da Corte Internacional de Justiça, para que declarem a nulidade de uma operação financeira irregular.
Fernández repete a mesma aceitação da fraude que assumiram todos os governos nas últimas quatro décadas. Essa sucessão de ratificações transformou o endividamento em um aluvião incontrolável. Pela enésima vez, um governo progressista encobre os ultrajes de seu antecessor direitista, com a mesma repetição da divisão do trabalho. O escandaloso passivo assumido pelas equipes econômicas ortodoxas é abençoado por seus pares de heterodoxia.
À medida que o país assume a trapaça, os funcionários do FMI respiram aliviados. Eles transformaram a Argentina no principal devedor da organização e não terão que explicar por que razão nenhuma outra nação enfrenta uma situação semelhante. Os outros dois devedores pendentes (Egito e Iraque) devem valores incomparavelmente mais baixos.
A mesma ajuda oficial se estende aos grandes capitalistas locais, que desviaram o dinheiro concedido pelo FMI para suas próprias contas depositadas no exterior. A investigação já realizada pelo Banco Central identificou os beneficiários desta fuga, que naturalmente aprovam a validação de sua manobra. As principais entidades do establishment já antecipavam este apoio entusiástico ao acordo.
Guzmán tinha, em sua mesa, a lista completa dos que lucraram e congelou a investigação. Nem sequer permitiu que os dados fossem cruzados com os registros da AFIP [Administración Federal de Ingresos Públicos], para avaliar se os dólares dos expatriados foram declarados ao erário.
Os servidores apenas emitiram vagos pedidos de colaboração para que o FMI contribuísse para a recuperação dos dólares escondidos em paraísos fiscais. Obviamente, o principal cúmplice da fraude não agregou nenhuma informação e o retardamento da investigação antecipou o acordo promovido por Washington.
Um corte sem ajuste?
O governo substituirá o crédito assinado por Macri por outro que refinancie a inadimplência daquele empréstimo. O FMI garante a cobrança do que é devido com a prorrogação dos prazos e a vigilância sobre a política econômica. Essa auditoria ocorrerá por meio de dez revisões trimestrais, que garantem ao Fundo uma cogestão estratégica durante os próximos mandatos presidenciais.
Guzmán apresenta esta reintegração com o FMI como um evento “razoável” que contribuirá para reduzir as incertezas. Mas omite que essa ingerência reativará o desprezo que todos os emissários do Fundo exibiram pelo país, nos 22 acordos firmados nas últimas seis décadas. Enquanto Giorgieva compartilha mensagens indulgentes com o Papa Francisco, os verdadeiros diretores da organização (David Lipton, Ilan Goldfajn) são velhos cúmplices de Macri, que exigem uma grande cirurgia da Argentina.
Por essa razão, eles demoliram todos os pedidos de benevolência. Rejeitaram a possibilidade de perdão ou desconto no capital devido e, também, a conversão de passivos em obrigações climáticas ou a prorrogação de vencimentos para 20 anos. Eles até mantiveram a cobrança de uma sobretaxa incomum para o volume exorbitante de crédito que eles mesmos concederam. Vetaram, ademais, a possível concessão de recursos adicionais por parte de outros sócios da instituição.
Guzman disfarça esse rigor das cláusulas, elogiando os quatro compromissos acordados com o FMI pelos próximos dois anos e meio. Destaca, em primeiro lugar, a redução do déficit fiscal que o governo propôs colocar em 3,3% do PIB para o ano corrente e que finalmente foi ajustado para 2,5%. Em 2023 deve ser de 1,9% e em 2024 deve ser de 0,9%.
Esses declínios no déficit têm sido a grande bandeira da ortodoxia de direita, que estabelece a principal desgraça da economia argentina nos gastos públicos. Guzman sempre proclamou o contrário, mas agora ele descobre os méritos desses cortes. Ele afirma que essas reduções terão efeitos virtuosos, pois em vez de se assentarem nos gastos, sairão da maior receita obtida pelo tesouro com crescimento e tributação.
Mas na gestão dos últimos meses esse critério não prevaleceu e, por isso, o ressurgimento da pandemia foi privado do subsídio correspondente (IFE – Ingreso Familiar de Emergencia). Ademais, o pacto fiscal negociado com os governadores e o frustrado projeto orçamentário de 2022 foram desenhados com cortes, para estar em sintonia com o Memorando de Entendimento exigido pelo FMI.
Guzmán também apresenta o que aconteceu no último trimestre de 2021, como exemplo de redução dos gastos devido ao crescimento e à tributação. Nesse período, as receitas estaduais aumentaram significativamente, ao ritmo de recuperação da economia que compensou a queda anterior (10%).
O ministro projeta esses dados para o futuro e afirma que não haverá qualquer ajuste em itens relevantes (como obras públicas ou ciência e tecnologia). Mas não esclarece qual taxa de crescimento e qual arrecadação seria necessária para alcançar a redução drástica do déficit com a qual se comprometeu para o próximo biênio.
Os percentuais dessa redução foram acordados com o FMI, mas não os números que permitiriam a redução. Não foi estabelecido quanto os salários vão aumentar, que nível de recuperação as pensões terão ou quanto a pobreza diminuirá e o PIB aumentará. Embora esses números sejam de magnitudes a serem revisadas, o corte do déficit foi rigorosamente preestabelecido. Os auditores do Fundo estarão presentes para monitorar esse cumprimento.
O segundo compromisso oficial é a redução do financiamento fiscal com emissão monetária. Esse corte começou em 2020 (7,3%), foi reforçado no ano passado (3,7%) e se intensificará de forma repentina em 2022 (1,00%), 2023 (0,6%) e 2024 (0%). Com esse cronograma, o grande objetivo da ortodoxia, que é zero emissões, seria alcançado. Os monetaristas sempre sonharam em colocar a economia de volta nos trilhos, simplesmente sugando o dinheiro em circulação.
Agora Guzmán adota esse programa e promete reintroduzir taxas de juros reais positivas para pavimentar a disciplina monetária. Ele afirma que nesse caminho se consolidará um mercado de financiamento do gasto público em pesos, o que compensará a contínua exclusão da Argentina do mercado internacional de crédito.
Mas o ministro omite os conhecidos problemas das gigantescas emissões de títulos locais. Com estas colocações, os bancos são induzidos a especular com o crédito público, em detrimento do financiamento da indústria, agricultura ou serviços. Não se sabe até que ponto o crescimento elevado será sustentado com taxas de juros positivas que desencorajam o investimento produtivo.
Tarifas e dólares em letras pequenas
O terceiro compromisso acordado com o Fundo é a redução da inflação para facilitar o superávit fiscal e a aquisição oficial dos dólares destinados ao FMI. Guzmán enfatiza que a organização agora aceita o caráter multicausal e não apenas monetário do aumento de preços. Mas ele omite que essa concessão retórica não tem consequências práticas. Os fiscais de Washington só vão verificar se a inflação cai com cortes nas emissões monetárias e juros altos.
O ministro também afirma que vai combater a carestia com o instrumento heterodoxo de acordos de preços. Mas ele esquece que esses acordos fracassados persistiram em toda a variedade de ministros neoliberais (que, por exemplo, Macri tinha).
Com a auditoria do FMI, a erosão desses controles aumentará. O Fundo pretende arrecadar seus créditos com os dólares aportados pelas exportações e, para estimular essas vendas, promove a transferência dos preços internacionais dos alimentos para o mercado local. Como também promove um grande aumento nas tarifas, o acordo vai superaquecer a carestia que já tem um piso de 50% ao ano.
O reajuste tarifário aparece nas letras miúdas do acordo e incluirá um fracionamento de preços, para encarecer o serviço para os setores de alta e média renda. Os lucros das companhias de eletricidade, telefone ou gás continuarão sendo um mistério insondável para a maioria da população.
O quarto compromisso com o FMI é a recomposição da paridade cambial. O governo promete evitar uma mega desvalorização, mas concorda em acelerar a taxa de desvalorização do peso para intensificar o acúmulo de reservas, que o Fundo vê como garantia de pagamento. A meta de arrecadar 5 bilhões de dólares aos cofres do Banco Central em 2022 já foi definida. Mas ninguém explica como se atingirá esse objetivo.
No ano passado foi alcançado um superávit comercial de 14 bilhões de dólares e não há um único dólar nas reservas disponíveis do Banco Central de la República Argentina. Mesmo que os pagamentos sejam adiados por dois anos e meio, não há como aumentar a retenção de divisas se a fuga de capitais persistir.
O pico dessa evaporação ocorreu com Macri e persistiu no último biênio. O mecanismo financeiro dessa erosão foi substituído por modalidades equivalentes, na gestão do comércio exterior por um punhado de grandes empresas. Essa drenagem pode ser cortada por meio de regulamentações drásticas que o FMI vetará.
Os auditores do organismo só exigirão maiores exportações e a consequente primarização da economia. Essa direção inclui os empreendimentos destrutivos do meio ambiente, que o governo intensificou nos últimos meses (exploração de petróleo no mar, megamineração em Chubut).
Resumindo: ninguém sabe por enquanto qual será o ajuste necessário para cumprir os compromissos assumidos pelo governo nas esferas fiscal, monetária, inflacionária e cambial. Mas o cenário de maior vulnerabilidade e dependência gerado por essas obrigações já está à vista.
Saiba mais em: https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Pelo-Mundo/Argentina-o-nefasto-retorno-do-FMI/6/52616
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