Nas eleições de ontem, Gustavo Petro foi o mais votado, mas a ultradireita surpreende com Hernández. 2º turno pode ser acirrado. Abstenção é alta – e esquerda apostará em horizonte de direitos e indignação popular para mobilizar ruas
Por: Olga L. Gonzalez | Tradução: Lucas Scatolini
A pergunta que os colombianos estão se fazendo é se Gustavo Petro, ex-guerrilheiro do M19, conseguirá se tornar presidente de um país que nunca foi governado pela esquerda no século 20, em nível nacional, e se esta eleição pode ser o começo de uma mudança histórica. Mas, quem é Gustavo Petro, o candidato que ficou ontem em primeiro lugar no primeiro turno das eleições presidenciais com 40% dos votos? Que desafios o aguardam para o segundo turno em 19 de junho?
A formação inicial de Gustavo Petro, que marca toda a sua concepção política, é a de guerrilheiro do Movimento 19 de Abril (M19). Essa guerrilha, criada no início dos anos 1970 na Colômbia, era formada por ex-membros das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC) que buscavam uma base mais urbana, bem como por jovens militantes decepcionados com os dois partidos entrincheirados no poder (a Frente Nacional da época impôs uma alternância obrigatória, proibiu terceiros e não hesitou em recorrer à fraude). Inspirado pelo Movimento de Libertação Nacional-Tupamaros do Uruguai — e inclinado a realizar operações espetaculares como o roubo da espada de Bolívar, o assalto à embaixada da República Dominicana em Bogotá, em 1980, com cerca de quarenta reféns, sendo quatorze embaixadores, incluindo a dos Estados Unidos e do núncio apostólico, ou o assalto ao Palácio da Justiça na Colômbia (em 1985) para julgar o presidente Belisario Betancur pelo fracasso das negociações de paz com o M19, cujo resultado sangrento está gravado na memória coletiva — este grupo guerrilheiro sofreu com a repressão do exército (em seu livro de memórias, Petro diz que foi torturado) e gozava de considerável popularidade entre grande parte dos colombianos.
Petro voltou à vida civil após o processo de paz com os guerrilheiros. Em 1991, o partido que surgiu desse grupo armado representava uma grande esperança na Colômbia: foi um dos mais votados para a Assembleia Constituinte, que em 1991 promulgou uma nova Carta Magna. Petro não era constituinte, mas tornou-se deputado conhecido no final dos anos 1990 e início dos anos 2000, resultado de debates em que denunciou as ligações de parlamentares e políticos com grupos paramilitares. Foram os anos em que as negociações com as FARC fracassaram e a extrema direita (grandes latifundiários, Forças Armadas, paramilitares, máfias do tráfico) controlava vários níveis de poder. Foram anos de grande violência em nome da “luta anti-subversiva” (massacres, deslocamento de populações) e execuções de “falsos positivos” pelo exército. E isso continuaria – e até se aprofundaria – sob os dois governos de Álvaro Uribe (2002-2010), que rejeitou qualquer tentativa de diálogo com as FARC, instalou no ambiente um anticomunismo e tratou todas as formas de protesto social como inimigos internos.
Durante os anos 2000, vários grupos políticos minoritários de esquerda (o Partido Comunista, o Movimento dos Trabalhadores Independentes e Revolucionários Maoístas – MOIR – e outros) concordaram em se unir no Polo Democrático para causar impacto na vida política. Petro foi um dos líderes desse partido, e sob essa formação concorreu pela primeira vez como candidato presidencial, em 2010. Posteriormente eleito prefeito de Bogotá (2012-2015) – de onde foi afastado em uma decisão polêmica –, concorreu pela segunda vez à presidência (em 2018), mas foi derrotado no segundo turno pelo candidato apoiado por Uribe, Iván Duque, homem praticamente desconhecido na época, mas que conseguiu se beneficiar do apoio de seu mentor. Petro obteve 42% dos votos no segundo turno.
Como candidato presidencial pela terceira vez, o contexto em 2022 é, no entanto, muito diferente de quatro anos atrás. Em primeiro lugar, Uribe está agora muito desacreditado: nas cidades, os muros são vistos com a pergunta “Quem deu a ordem ?”, em alusão direta ao seu papel no triste episódio dos homens oriundo de estratos mais baixos da sociedade que foram executados, para fazê-los passar como guerrilheiros. Ao mesmo tempo, a justiça investiga as ligações de Uribe com os paramilitares e as pressões que exerceu para comprometer testemunhas. Hoje, nenhum candidato quer reivindicá-la abertamente (o único que a defendeu, Óscar Iván Zuluaga, nunca decolou e teve que retirar sua candidatura).
Em segundo lugar, a questão que dominou as eleições na Colômbia nos últimos trinta anos, ou seja, a posição em relação à guerra interna e as negociações com as FARC (na maioria das vezes, competir duramente contra as FARC era uma boa propaganda de campanha), não funciona mais. As FARC assinaram o acordo de paz em 2016 e seu partido, o Comunes, não preocupa ninguém (obteve menos de 1% dos votos nas últimas eleições legislativas).
Terceiro, os colombianos reacenderam nas ruas os protestos e as mobilizações sociais: estes vêm crescendo desde o fim dos mandatos repressivos de Uribe. Já sob a presidência de Juan Manuel Santos, em 2013, uma grande “greve agrária” (greves e manifestações de camponeses) paralisou o país. Em 2020, e novamente em 2021, a Colômbia experimentou uma onda de protestos sem precedentes, com grande participação juvenil, que o governo Duque não hesitou em reprimir ferozmente.
Por fim, há a pandemia, e a terrível devastação social que ela causou, que se soma à história de vários anos de gestão econômica neoliberal, com altos níveis de exclusão. A maioria dos colombianos (52%) vive com menos de três euros por dia; a informalidade do trabalho é a norma. O desemprego aumenta. E a inflação está atualmente em torno de 10%, o que reduz o poder de compra.
Além disso, a tudo isso devemos acrescentar a violência em todas as suas formas (políticas e não políticas), que continua extremamente alta na Colômbia. A taxa de homicídios é de cerca de 27 pessoas por 100 mil habitantes (ou seja, 14 mil pessoas por ano), em comparação com cerca de 6 por 100 mil nos Estados Unidos, ou 1,3 por 100 mil na França. A Colômbia continua sendo um dos países com maior número de deslocados internos e é o segundo país onde mais líderes sociais são assassinados.
Todas essas circunstâncias contribuíram para o discurso de mudança personificado em Petro e para a rejeição de Duque (sem possibilidade constitucional de reeleição). Petro, muito popular, tem uma força que nenhum outro candidato tem: sabe apelar à mobilização social, algo que aterroriza a oligarquia política do país. Nenhum outro candidato sabe falar na rua como ele.
Gustavo Petro vem mobilizando seus seguidores há quatro anos através das redes sociais (pode-se considerar que ele faz campanha extraoficialmente há quatro anos). Seja para se opor a Uribe, o atual prefeito de Bogotá e ao governo, para convocar as pessoas às ruas durante as mobilizações sociais, para denunciar a “fraude eleitoral” e, mais recentemente, para apresentar suas propostas, o Twitter é seu verdadeiro palanque de mobilização. De fato, o investimento nessa rede social reflete o estilo Petro: pouco amigo das estruturas democráticas formais dos partidos, prefere manter uma relação permanente e direta com o povo. No passado, a mobilização de seus apoiadores nas ruas o ajudou a manter seu mandato como prefeito, quando foi destituído do cargo. Em termos mais gerais, ele se inspira em um dos colombianos mais influentes do século XX: Jorge E. Gaitán , o “caudilho do povo” que, em meados do século XX, denunciou a “oligarquia dominante” e incorporou a multidão como ator político.
Petro conhece muito bem a Colômbia, sua geografia e problemas, as causas profundas dos protestos e também sua adesão a homens providenciais. Ele sabe ler as expectativas do setor mais dinâmico da população, atualmente a juventude, principal protagonista da grande mobilização de 2021. Apesar da relutância inicial, nomeou Francia Márquez como vice-presidente, uma jovem mulher negra de origem popular e, sobretudo, ativista local de movimentos sociais, que se tornou um novo ícone da juventude.
Petro também é a favor dos direitos LGBT e da defesa dos animais (proibiu as touradas e a tração animal nas cidades). Em outros aspectos, como o direito ao aborto, permanece mais cauteloso: recentemente, o Tribunal Constitucional colombiano descriminalizou a interrupção voluntária da gravidez . Ao mesmo tempo em que alega apoiar a decisão do tribunal, propõe a fórmula do “aborto zero”, contestada pelas feministas como inviável.
O programa do Petro não é muito detalhado e, sobretudo, não explica os meios para atingir seus fins. Para entender melhor seus objetivos, é preciso ouvir suas intervenções (foram muitos debates, durante a campanha presidencial, em que Petro deu números e ampliou pontos). Os princípios norteadores são os seguintes: na economia, propõe uma reforma tributária progressiva, recuperando o sistema previdenciário do Estado e fortalecendo o sistema público de saúde, além da proteção da indústria nacional e da aquisição e distribuição de terras improdutivas do Estado.
Também quer desenvolver um programa de transição ecológica. Ele fala em parar a prospecção de petróleo, desenvolver energias alternativas, parar a construção de uma grande hidrelétrica que é objeto de litígio, promover outras fontes de riqueza, especialmente apoiando a economia agrária e a produção industrial. Ele quer desenvolver o turismo em território colombiano (isso forneceria metade da receita da exportação de hidrocarbonetos). Ele fala sobre a construção de uma “economia do conhecimento”. Ideias não faltam, embora às vezes não faltem contradições (por exemplo, Petro se pronunciou a favor da mineração de criptomoedas, embora sejam questionadas por seu custo ecológico e opacidade financeira, como ele mesmo reconheceu na ocasião). Mas a ambição dos programas e a natureza modesta de sua execução foram uma das características de sua carreira como prefeito de Bogotá.
Esta última campanha eleitoral foi diferente da anterior, também pela multiplicação de alianças duvidosas. Este ano, o Petro contou com partidos com denúncias de corrupção e setores políticos tradicionais, em busca de estruturas (não isentas de clientelismo). Ele buscou o apoio do ex-presidente liberal César Gaviria (que acabou decidindo apoiar seu oponente Federico ‘Fico’Gutiérrez) e políticos locais conservadores. A visita do irmão de Gustavo Petro ao ex-senador condenado Iván Moreno, detido no presídio de La Picota, causou rebuliço em sua campanha. Petro teria oferecido a eles um “perdão social” (uma espécie de pacto de impunidade), embora tenha retraído essa oferta depois de receber muitas críticas e negado que “perdão social” se referisse à impunidade.
Petro também buscou alianças com setores evangélicos, novamente com o objetivo de ampliar sua base eleitoral. Sua lista de candidatos ao Congresso era composta por muitos líderes políticos tradicionais, como Armando Benedetti, que passou toda a sua carreira política com Uribe e que agora está sendo investigado por enriquecimento ilícito. “Temos que engolir esses sapos”, dizem seus apoiadores. “Este é o preço que temos que pagar para chegar ao poder e derrubar a máfia que nos governa”, comentam.
Ele será eleito? E se o fizer, será capaz de levar a cabo uma política moderadamente esquerdista, dadas as inúmeras alianças que fez? O segundo turno será realizado no dia 19 de junho. Lá, ele terá que enfrentar um rival que, se não tiver peso (Rodolfo Hernández é um homem que ignora muitos problemas dos colombianos, e que nem conhece sua geografia), se beneficia do momento conjuntural. Hernández terá o apoio de partidos de direita e de extrema-direita e conquista um voto de protesto anticorrupção. Com base nos resultados surpreendentes do primeiro turno e no excelente resultado de Hernández (28%), Petro não tem nada garantido.
De qualquer forma, o avanço eleitoral do Pacto Histórico, nome de sua coligação de partidos e movimentos, causou pânico em alguns setores. Antes do primeiro turno, grandes proprietários e empresários publicaram anúncios pagos na imprensa denunciando o terrível perigo que a Colômbia enfrentava, ou ameaçando diretamente de demissão seus funcionários caso votassem no candidato de esquerda. Políticos de extrema direita incitaram o espantalho anticomunista, a “ameaça de expropriações”, o “castrochavismo”, “a velha guerrilha”, etc. O clima da campanha foi muito tenso. Petro denunciou ameaças de ataque em uma cidade do centro do país (e isso deve ser levado a sério: muitos políticos de esquerda foram assassinados no país, centenas de líderes sociais foram assassinados desde 2018, assim como 300 ex- combatentes das FARC).
Mas nada está decidido. A campanha para o segundo turno será decisiva. Petro deve tentar mobilizar os abstencionistas, que são muito numerosos (houve 45% de abstenção no primeiro turno). Ele deve incutir confiança em seu eleitorado e entender o sinal que o voto envia a Hernández: a rejeição a políticos envolvidos com o governo. No final, se for eleito, Petro enfrentará uma série de dificuldades políticas: a primeira é a desconfiança que desperta nas forças armadas colombianas, que têm pouca afinidade com ideias progressistas em sua história (ao contrário de vários países latino-americanos), e treinada por décadas na doutrina do “inimigo interno”. O candidato e o atual chefe do Exército já tiveram trocas acaloradas no Twitter.
A segunda é a falta de maioria parlamentar. Essas eleições presidenciais são realizadas dois meses após as legislativas (13 de março), nas quais nenhum partido político obteve maioria absoluta (o sistema de distribuição de assentos é proporcional). No parlamento eleito, os partidos de direita e de extrema-direita estão amplamente representados.
As reformas desejadas são ambiciosas, mas como ele pode realizá-las sem maioria no Congresso? Petro falou em declarar estado de emergência para governar por decreto, o que levanta questões sobre o futuro funcionamento do sistema institucional. Além disso, a oposição daqueles que têm grandes fortunas pode complicar seu eventual governo (como já aconteceu em outros países da região, via fuga de capitais).
Outros grandes problemas estruturais dificultarão suas reformas, como o controle de máfias e grupos ilegais em grandes áreas do território. Isso foi visto em maio de 2022, quando o poderoso Clã del Golfo organizou um “ataque armado” (fechamento forçado de atividades econômicas) na costa caribenha após a extradição de seu líder para os Estados Unidos. Em fevereiro do mesmo ano, os guerrilheiros do Exército de Libertação Nacional (ELN) organizaram outro “ataque armado” no sul do país, novamente semeando o terror na população civil.
A verdade é que Petro, único candidato de esquerda nestas eleições, está despertando as esperanças de amplos setores da população, principalmente setores urbanos, jovens e politizados. Até agora, o candidato do Pacto Histórico soube interpretar a mobilização nas ruas e o sentimento de indignação produzido pela gestão do governo Duque – somado ao desgaste do Uribismo. De qualquer forma, o resultado deste 29 de maio é histórico para a esquerda colombiana. Vamos ver se é suficiente para chegar ao governo.
Veja em: https://outraspalavras.net/estadoemdisputa/colombia-rechaco-as-oligarquias-e-esperanca-com-petro/
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