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Indígenas: os Nawa dispostos a autodemarcar suas terras

Relato de encontro com povo que foi quase foi extinto e, há 22 anos, aguarda o reconhecimento de seu território. Sob a mira de projetos devastadores como o da rodovia Brasil-Peru, eles se organizam para defender a área que habitam

Por: Fabio Pontes e Alexandre Noronha

Mâncio Lima e Cruzeiro do Sul (AC) – A convite do cacique Railson Nawa e de outras lideranças indígenas, a reportagem da agência Amazônia Real navegou, em julho de 2021, pelo rio Moa e pelo igarapé Novo Recreio, além de percorrer mais de 20 quilômetros numa trilha de mata fechada, vivenciando aquilo que pode ser considerado a saga do povo Nawa pela autodemarcação.

É uma saga protagonizada por homens, mulheres e crianças conscientes das ameaças a que estão sujeitos. Eles não se recusam a embarcar em bajolas em dias inteiros dentro da água ou da mata, abrindo trilhas de uma margem de igarapé a outra para proteger a terra indígena. Sem recursos, constroem tapiris nos limites do território reivindicado para sinalizar que, daquele ponto em diante, a área é de domínio de um povo que quer o direito de posse das terras ocupadas por seus antepassados.

A reportagem especial produzida pelos jornalistas Fabio Pontes e Alexandre Noronha, relatada a seguir, conta a história de vida e resistência de um povo indígena e os desafios enfrentados para chegar aos limites de seu território, em uma região da Amazônia onde a floresta (ainda) se encontra intocável.

DIÁRIO DE BORDO
A jornada (Dia 1)

A Terra Indígena Nawa fica à margem direita do rio Moa, um dos mais importantes afluentes do rio Juruá. O território fica em frente a outra terra indígena, a dos Nukini. Ao contrário dos vizinhos, os Nukini já estão com os seus 27.263 hectares demarcados e homologados desde o início dos anos 1990. Para chegar a ambos os territórios é necessário um dia inteiro de viagem subindo os rios Japiim e Moa, indo em direção ao ponto norte do Parque Nacional (Parna) da Serra do Divisor.

A região é uma das mais cobiçadas pela classe política acreana para o avanço de projetos na área de infraestrutura e prospecção de petróleo e minérios. O Parna da Serra do Divisor pode ser rebaixado para a categoria de Área de Proteção Ambiental (APA) caso o projeto de lei 6024, de autoria da deputada federal Mara Rocha (PL-AC) e do senador Márcio Bittar (MDB-AC), seja aprovado pelo Congresso.

Caso isso aconteça, todas as atividades econômicas proibidas hoje estariam liberadas, entre elas a extração de madeira numa das regiões mais preservadas da Amazônia, com 837 mil hectares.  O principal objetivo com a eventual aprovação é a construção da rodovia entre a cidade acreana de Cruzeiro do Sul e a peruana Pucallpa, capital do departamento de Ucayali, cujo traçado passaria dentro do parque. Para os Nawa, a construção da rodovia seria o gatilho para a extração de petróleo e a mineração saírem do papel, colocando em risco – outra vez – a sua sobrevivência.

“Essa estrada pode ser acesso para uma mineração de ouro, ela pode acessar o petróleo também, que está aí nessa fronteira. Nós estamos aqui na boca dos igarapés. Então, caso isso venha a acontecer, acaba com as nossas vidas. Vamos morrer tudo intoxicado porque a água que bebemos é do rio e dos igarapés. Se explode um poço de petróleo aí, vamos todos morrer envenenados”, diz o cacique Railson Nawa, que desde 1999 lidera o povo Nawa pela demarcação do território.

Pouco depois das 7 horas do dia 2 de julho de 2021, embarcamos numa bajola (lancha de pequeno porte) ancorada no porto Japiim, na cidade de Mâncio Lima, localizada no ponto mais ocidental do Brasil. Além deste jornalista, embarcaram na bajola de alumínio o repórter-fotográfico Alexandre Noronha, a esposa do cacique Railson, Vera Lúcia Nawa, a filha do cacique e enteada de Vera Jarlene Nawa, e o seu filho Arthur, de dois anos. A embarcação tem como barqueiros Fabio Nawa e Alcimar Oliveira. Apesar de estes serem seus nomes de registro, ambos são chamados pelos parentes como Fabiano e Paulo.

Nas primeiras horas do dia, a movimentação pelo porto é intensa. Moradores das comunidades ribeirinhas voltam para casa após alguns dias na cidade para sacar os benefícios no banco, fazer as compras e visitar os familiares em Mâncio Lima. É ali também onde saem as embarcações com turistas de diferentes partes do mundo em direção às pousadas e cachoeiras da Serra  do Divisor.

No centro do noticiário no Brasil e do mundo por ser afetada pela construção de uma rodovia entre as cidades de Cruzeiro do Sul, a segunda maior do Acre, e Pucallpa, no Peru, a Serra do Divisor é uma das principais atrações turísticas do Acre. Atrai cientistas e pesquisadores por abrigar espécies animais e vegetais que só existem ali. O Vale do Juruá é considerado uma das regiões do planeta mais rica em biodiversidade. As belezas naturais da serra também a tornam uma atração.

Por conta disso, o movimento de embarcações subindo e descendo o rio Moa é intenso. Neste caminho estão as aldeias Nawa e Nukini, que, além das margens do rio principal, espalham-se pelos igarapés. A casa do cacique Railson Nawa é o ponto de chegada da reportagem após dez horas de viagem subindo os rios Japiim e Moa. A jornada é feita na bajola impulsionada por um motor rabeta de 13HP, chamado apenas de motor 13.

Quem vê a bajola deslizando e sacolejando pelo vaivém dos banzeiros pode até ficar assustado. A impressão é que, a qualquer momento, a embarcação afundará. A água até entra, mas é para isso que o baldinho fica aos pés do piloto para tirar o excesso.

A usada pela reportagem é a versão “luxo”, por ter uma cobertura que protege do sol e da chuva. Em julho, as chuvas são escassas nesta parte da Amazônia, o que permite um dia inteiro de navegação sem se molhar. A longa viagem é compensada pela belíssima paisagem de uma floresta intocada. As bajolas cobertas são comuns em Mâncio Lima, como forma de garantir mais conforto aos turistas rumo à serra.

A vegetação densa às margens do Moa formada por majestosas árvores – com destaque para a sumaúma – só é interrompida pelas casas solitárias dos ribeirinhos. Com o rio seco, se formam praias de uma areia branca. São nelas que, ao fim da tarde, crianças e adultos mergulham no rio para o banho do dia. Em tábuas improvisadas ou dentro de canoas, as donas de casa lavam a louça e a roupa aos olhos de quem navega pelo Moa.

No começo de 2021, o cenário ali era bem diferente. Se naquele começo  de “verão amazônico” as praias predominavam, entre janeiro e março tudo estava tomado pelas águas. As casas nas partes mais baixas ficaram quase encobertas pela cheia do Moa, provocada por um período de chuva que transbordou mananciais, deixando milhares de desabrigados no Acre.

“A água chegou até aqui”, mostra o cacique Railson Nawa ao levar a reportagem até a entrada da escola da aldeia Novo Recreio, localizada  a 300 metros de distância da margem do Moa. A casa de Railson, de frente para o rio, ficou com água quase no teto. A aprazível varanda onde a reportagem armou as redes para passar a primeira noite na Terra Indígena Nawa não estaria à vista no começo do ano.

Não fosse o frio intenso da noite, o sono teria sido perfeito. Naqueles dias, uma massa de ar polar tinha atingido o Acre, chegando com força até o Vale do Juruá. Em região de mata, a sensação de frio é ainda maior. Não há agasalhos, cobertores e luvas que protejam. A madrugada gelada é compensada por um belo acordar, tendo como paisagem o Moa e um paredão de floresta virgem na outra margem. Ar puro, o cheiro da floresta.

Não há muito tempo para apreciar o visual da varanda do cacique. É só o tempo de fazer a higiene na água gelada do Moa, tomar café com bolacha, desarmar as redes e colocar tudo nas mochilas e nas bajolas – de novo. Os txai – que quer dizer amigo no tronco linguístico pano e é usado entre os indígenas acreanos em suas saudações – já haviam colocado toda a bagagem nas embarcações. O dia seria longo e era preciso aproveitar cada minuto com a luz do sol. O igarapé Novo Recreio nos esperava.

Cuidado que tem poraquê aqui – (Dia 2) 

Antes das 7h30, a bajola com a equipe da Amazônia Real desancorou da praia em frente à casa do cacique Railson Nawa, rumo ao ponto limite da Terra Indígena Nawa com o Parna da Serra do Divisor. O local é conhecido como Pão de Açúcar, nome de uma das colocações que formavam o antigo seringal Novo Recreio.

Ocorreram mudanças na embarcação: a cobertura foi retirada e o motor rabeta de 13hp foi substituído por um de 6hp. “É melhor para navegar por lá. O igarapé está muito seco”, explicou Paulo, um dos condutores da bajola. Outras cinco embarcações se juntaram para a jornada da autodemarcação até o Pão de Açúcar. Mulheres e crianças embarcaram ao longo da navegação pelas águas do Novo Recreio.

Os Nawa têm um modo diferenciado de ocupar a terra. Apesar das áreas serem identificadas como aldeias, eles não vivem em aldeamentos, reunidos num mesmo ponto. As casas estão localizadas ao longo do Novo Recreio, distantes umas das outras. Quando há um número maior de casas, são pessoas da mesma família: o filho ou filha que se casou e construiu um imóvel no mesmo terreiro, por exemplo.

As casas dos Nawa são construídas às margens dos barrancos. No silêncio da floresta, o ronco da rabeta se ouve desde muito longe. Nas janelas das casas ou sentados em bancos às margens do igarapé, os parentes veem a “flotilha” da autodemarcação subir o Novo Recreio.

Até o encontro com o igarapé Tapada, a navegação flui bem. Apesar do baixo volume de água, é possível navegar sem riscos de “topar” com um banco de areia ou um tronco de árvore submerso. As cabeceiras do igarapé Tapada, dizem os Nawa, são passagens dos “parentes brabos” – como se referem aos índios isolados.

Ali, no encontro do Tapada com o Novo Recreio, ocorreu a primeira parada para reabastecer o motor 6 e fazer a merenda – como se referem às refeições, independente do horário. Naquele ponto, a água do igarapé não fica acima dos joelhos, mostrando que, dali por diante, a navegação seria muito mais desafiadora.

Ao pegar o remo e sentar na primeira banqueta da bajola, Paulo deixou ainda mais evidente que o caminho até o destino seria difícil. Na proa da bajola, Alexandre Noronha, que filmava e fotografava a viagem, precisou ceder lugar para Paulo se transformar no capitão da canoa.

Com o remo, ele ajudou a bajola a desencalhar dos bancos de areia, a desviar deles, tirar o barco de cima de troncos de árvores e sinalizar para Fabiano o melhor caminho para direcionar a rabeta. Em muitos pontos, o nível da água varia; na grande maioria do trajeto, todavia, a lâmina d’água não passa de um palmo.  De dentro da bajola a mão alcança o fundo do igarapé. Se passasse algum peixe, daria para pegá-lo com as mãos.

Fosse apenas o nível muito baixo do igarapé, a viagem poderia fluir sem tantos percalços, pois bastava toda a “tripulação” desembarcar da bajola e empurrá-la. O problema está em “quase” uma Floresta Amazônica inteira caída de uma margem à outra do estreito Novo Recreio. Toras gigantescas cruzam o igarapé. Quando não são os troncos, são as copas de sumaúmas, apuís, gameleiras, entre outras. Quando galhos e troncos se amontoam nos rios e igarapés, formam-se os balseiros.

E, até chegar ao destino, há dezenas, centenas deles. Ao contrário da viagem pelo Moa, onde foi possível descansar as costas deitando nos estrados da embarcação, no Novo Recreio isso não acontece. Ficar deitado só é permitido para passar por debaixo de algum tronco ou entre as copas caídas. O movimento de sair da posição de sentado e ficar ao chão da bajola é contínuo; não há como tirar um cochilo – o risco de ser atingido por um galho, de “levar uma paulada” é constante.

Quando não é possível o barco passar por cima dos troncos ou entre o balseiro, a única solução é todo mundo cair na água para reduzir o peso. Na viagem, enquanto Fabiano forçava a toda potência o gasguito motor seis, Paulo puxava a bajola pela parte da frente. Quando nem assim o barco desencalhava, todo mundo empurrava no braço. Nesta jornada, toda ajuda faz a diferença. Dez metros à frente, outra vez encalhamos num balseiro ou banco de areia, hora de mais um empurrãozinho. E assim por diante.

Com a bajola encalhada em cima de um tronco, o repórter-fotográfico Alexandre Noronha se preparava para sair quando foi avisado: “Cuidado que tem poraquê aqui”. Voltou rapidinho. Ninguém quer tomar um choque dentro d’água do peixe elétrico. Quando a árvore cai numa posição em que não é possível seguir destino, só há um jeito: cortá-la com a motosserra. A reportagem conseguiu contar as 15 vezes em que o ronco das rabetas foi substituído pelo da motosserra.

À medida que o dia avançava, o calor se intensificava e a fadiga chegava, a contagem foi perdida. Ficou incontável a necessidade de cortar uma tora no meio do caminho. Perto das 11 horas, mais uma parada para outra merenda – agora é o almoço.

Numa prainha de areia molhada e gelada, o povo se reuniu para comer a farofa de calabresa com arroz e peito de frango frito. Logo de cara foi possível ver o rastro da onça que passara ali no dia anterior. O tamanho das patas do felino impressionam. A mão fechada de um adulto se encaixa perfeitamente no rastro. Ainda bem que aportamos ali bem depois da hora da onça beber água.  Em outras praias há rastro da anta, o animal que na tradição oral dos Nawa explica a origem do povo.

Na etimologia dos povos indígenas da Amazônia, suas origens estão relacionadas com os diferentes seres vivos da floresta. O awa (anta na língua pano) está na tradição dos Nawa como o animal de onde foram concebidas as duas mulheres que deram origem ao povo. O nome Nawa refere-se ao outro, à gente, povo. Nawa passou a ser forma genérica como os brancos se referiam aos povos indígenas do Juruá, após o encontro do explorador inglês William Chandless com os Noke Ko’i (Katukina), numa expedição liderada por ele no fim do século 19.

Ao se depararem com os forasteiros, os índios os chamavam de Nawa. De fácil assimilação, a palavra, então, foi incorporada ao vocabulário dos brancos para fazer referência aos povos nativos. Não por acaso, a região que forma o Vale do Juruá é conhecida como a terra dos Nawa, ganhando diferentes grafias: naua, nahua, náuas. Após o contato com os invasores, os indígenas passaram a sofrer perseguições e eram mortos ao desenvolverem doenças às quais seus corpos não tinham defesa.

Os que hoje fazem a autodemarcação do território afirmam ser descendentes da última índia Nawa. Ela escapou de ataque às malocas na região conhecida como estirão dos Nawa,  localizada no encontro do rio Moa com o Juruá. Com seus filhos e o marido seringueiro, a ancestral entrou pela mata e subiu o Moa até chegar à região hoje habitada por seus descendentes. O cacique Railson, por exemplo, é bisneto da “última Nawa”, cujo nome indígena é Mary Kuni (pronuncia-se Mariruni). Depois aportuguesado para Mariana.

“O motivo de fazer esta autodemarcação, junto com o povo, é por conta de muitas invasões dentro de nossa terra. Eu, conversando com o povo, falei que estamos com 22 anos de luta. E esperar mais 22 anos, quando não tiver mais nada dentro das terras, aí não tem mais importância. Então vamos cuidar enquanto é tempo”, diz o cacique.

A primeira ação de autodemarcação aconteceu no dia 22 de maio, quando eles abriram as trilhas que separam a terra indígena do Parna da Serra do Divisor.

Refeição feita, era preciso seguir viagem. O caminho ainda seria muito longo. Havia muitos bancos de areias, balseiros e troncos para enfrentar. A coluna já estava acostumada ao movimento contínuo de deitar e levantar para não levar uma paulada na cabeça. “Olha o pau”, nos avisava, constantemente, o capitão Paulo, sentado na proa da bajola com o remo nas mãos.

As horas avançavam, a luz do sol começava a enfraquecer e o destino parecia não chegar. “Quando o igarapé não está assim, seco, a gente faz essa viagem rapidinho. Saímos de manhã cedo e meio-dia já estamos lá”, contou Paulo. Ele não aparentava o menor cansaço após o dia inteiro puxando o barco. Meio dia de viagem é “o rapidinho” para uma população acostumada a navegar e andar grandes distâncias mata adentro, falando que vai “bem ali’ – coloque milhas e mais milhas neste bem ali.

Às 17h30, chegamos ao Pão de Açúcar. É uma área pequena, recém-aberta pelos Nawa, durante a primeira viagem da autodemarcação. As casas de madeira e de telhas brasilit são substituídas por tapiris cobertos com lonas. Atenciosos com os visitantes, construíram até um piso de madeira no tapiri da reportagem.

A primeira providência foi amarrar de novo as redes antes de escurecer. O outro luxo era um gerador de energia que acendia as lâmpadas e carregava as baterias das câmeras de Noronha – o sonho de todo fotógrafo numa cobertura no meio da selva.

O nosso tapiri ficava numa posição privilegiada: ao lado da cozinha. A cozinha são as raízes de uma apuí recentemente derrubada onde fica o “fogão a lenha”. Ele estava protegido de uma eventual chuva que não caiu durante os dois dias inteiros ali na área-limite entre a Terra Indígena Nawa e o Parna da Serra do Divisor.

 

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