Após invadir a Ucrânia, país vivencia seu maior êxodo desde a Revolução de 1917. Segundo Putin, são “traidores da pátria”. Para personalidades da cultura, essa “emigração moral” é também uma derrota pessoal.
Por: Anastassia Boutsko | Foto: Ander Shcherbak/dpa/TASS/Picture alliance
Na noite de 4 de março de 2022, o jornalista investigativo russo Andrei Loshak mal conseguia pregar o olho. Na verdade, ele vinha dormindo muito pouco desde 24 de fevereiro, o dia em que a Rússia invadiu a Ucrânia. Ao conferir alguns canais do serviço de mensagens instantâneas criptografadas Telegram, uma em particular fez gelar seu sangue: num futuro próximo poderia ser imposta lei marcial na Rússia, tornando impossível deixar o país.
Nas semanas seguintes, ficou pensando que caminho tomar e acabou dando-se conta de que teria de ir embora – já. No mesmo dia, ele estava num avião com destino a Tiblíssi, capital da Geórgia. Lá, imediatamente encontrou “muitos amigos e colegas de Moscou e outras cidades russas, que não via na Rússia há anos”.
Entre eles, também colegas das emissoras de notícias Ekho Moskvy (Eco de Moscou) e TV Rain, agora banidas da Rússia. Os últimos haviam até montado um escritório na Geórgia. “Você está entre colegas aqui, tem a impressão de que o meio inteiro emigrou”, comenta Loshak.
Não há cifras exatas sobre quantos cidadãos já deixaram a Rússia: fala-se que várias centenas de milhares, há quem calcule mais de 1 milhão. Porém uma coisa é certa: nas cinco semanas desde o início da guerra de agressão contra a Ucrânia, o país registrou seu maior êxodo desde a Revolução de Outubro de 1917.
O que torna uma computação ainda mais difícil é o fato de certos países não exigirem visto de ingresso para os russos. Entre eles, a Geórgia e a Armênia, que mesmo assim estimam que receberão mais de 100 mil refugiados, cada uma. Outras destinações incluem Azerbaijão, Emirados Árabes Unidos, Turquia, Grécia, Bulgária, Sérvia, Cazaquistão, Quirguistão, Usbequistão e mesmo Tadjiquistão, Mongólia e América Latina.
Muitos também escolhem países que já contam com grandes comunidades russas, como Montenegro ou Lituânia. Outros aproveitaram a possibilidade de emigrar para Israel ou para a Europa Ocidental, em especial a Alemanha. Quase ninguém anuncia sua partida: a maioria simplesmente faz as malas e se vai, sem ter ideia de se algum dia retornará.
“Emigração moral” de personalidades culturais
Apesar da falta de informação numérica, a razão para a partida é indiscutível: sobretudo acadêmicos, especialistas em TI, jornalistas e artistas estão voltando as costas para o país cujo líder, Vladimir Putin, o colocou contra o resto do mundo. “Estamos presenciando a maior evasão de cérebros na história recente”, assegura Loshak.
Entre os primeiros a escaparem estiveram cineastas, escritores, designers de moda, arquitetos e celebridades. A pop star Alla Pugacheva, por exemplo, está construindo uma nova vida em Israel com o marido, o comediante Maxim Galkin; da mesma forma que o apresentador de TV Ivan Urgant.
A roqueira Zemfira e sua parceira, a atriz Renata Litvinova, estão em Paris; onde também esteve o diretor de teatro e cinema Kirill Serebrennikov, antes de seguir para Berlim. A escritora Lyudmila Ulitskaya tem igualmente dado entrevistas em seu apartamento berlinense; seu colega Boris Akunin está em Londres. A primeira bailarina do Teatro Bolshoi Olga Smirnova tem um novo posto em Amsterdã; e o influente blogueiro e cineasta Yuri Dud trabalha a partir de Istambul.
Contudo não são apenas os ricos e célebres a deixar a pátria: a maioria dos emigrantes são profissionais criativos de classe média. Além de muitas incertezas sobre o futuro, eles tiveram que levar na bagagem algum dinheiro vivo, já que os cartões de crédito russos estão bloqueados em todo o mundo, e a transferência de somas maiores é proibida por lei.
“Nenhum de nós está procurando uma vida melhor no estrangeiro, neste momento”, afirma o jornalista Loshak. “Todos perdemos nosso meio de subsistência. Eu chamaria a atual onda de ‘emigração moral’: nossa consciência não nos permite estar na Rússia atual, com uma turba gritando ‘Zig Heil!’.”
A referência é a uma combinação da saudação nazista “Sieg Heil” com a letra “Z”, símbolo adotado pelos apoiadores da guerra de Putin. O jornalista cunhou uma denominação para os que estão se evadindo: “Eu nos chamaria de ‘europeus russos’.”
“Doença da Rússia é grave, porém curável”
Segundo o Levada Center, o único instituto independente de pesquisa de opinião da Rússia, pelo menos 20% da população russa é de pró-europeus que condenam a guerra na Ucrânia. Em termos puramente matemáticos, trata-se de cerca de 30 milhões de cidadãos. No entanto, muito poucos estão em condições de abandonar o país.
“Ir embora hoje não é nem um ato de coragem, nem o único modo eticamente aceitável de expressar descontentamento pessoal com os atuais eventos”, reconhece a celebrada crítica literária Galina Yuzefovich: “É inegavelmente um privilégio.”
A Rússia não está sendo abandonada pelos melhores, prossegue, “mas simplesmente por aqueles capazes de, algum modo, arcar com os custos”. Tendo emigrado para o sul da Turquia com a família, ela deposita simpatia especial nos que ficam e têm que sobreviver – em protesto declarado ou silencioso – entre outros concidadãos de mentalidade semelhante. Yuzefovich compara a situação à da Alemanha nazista.
“A cultura russa que conhecíamos até hoje deixou de existir em 24 de fevereiro”, pontifica com secura Anton Dolin, possivelmente o crítico de cinema mais conceituado e figura pública da Rússia. “Tanto a cultura oficial quanto a que funcionava em modo de oposição.”
Em 2015, Dolin depôs, como perito pela defesa, no julgamento em que o diretor ucraniano Oleg Sentsov acabou sendo condenado a 20 anos de prisão por “planejar atos de terrorismo”. “Minha posição básica sempre foi que eu nunca deixaria a Rússia”, porém uma semana após o começo da invasão da Ucrânia ele mudou de ideia.
O crítico fugiu com a família e reside na Lituânia: “Agora eu considero a minha partida uma forma de rendição pessoal. Tudo o que fiz durante três décadas, uma espécie de resistência cultural aos detentores do poder, perdeu agora todo o sentido. Minha missão na vida, posicionar a Rússia como parte da Europa, parece ter fracassado.”
Apesar de tudo, Dolin sustenta que “a grave doença que a Rússia está atravessando no momento é curável”: “Depois disto, vem a fase de arrependimento pelos crimes que estão sendo cometidos agora em nosso nome. O preço que teremos que pagar vai ser alto. Ainda assim, ficarei feliz de retornar ao meu país. Não tenho outro lar.”
Isso, contudo, não deverá ocorrer em breve: Vladimir Putin tachou aqueles que deixaram a Rússia de “traidores da pátria” e os declarou inimigos do Estado.
Veja em: https://www.dw.com/pt-br/intelectuais-e-artistas-abandonam-a-r%C3%BAssia-em-massa/a-61453199
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