Clipping

Rio: abrindo a torneira da água-mercadoria

Enquanto cidades como Paris e Buenos Aires anulam contratos de privatização ineficientes, Grande Rio entrega sua água a fundos de especulação. Em metrópole já empobrecida, lógica do lucro máximo pode eternizar o apartheid do saneamento

Por: Camille Lichotti | Ao fundo, o Museu do Amanhã

A aposentada Maria Francisca Coelho, de 83 anos, acorda pontualmente às cinco da manhã e a primeira coisa que faz todos os dias é rezar o terço. Depois, assiste à missa na tevê. Só então começa a preparar o café. “Eu sempre olho a leiteira para ver se a água que deixei lá na noite anterior está boa. Se o barro desce e ela está clarinha, eu passo o café. Se ainda estiver suja, eu não passo”, conta.

A água de sua casa vem de uma tubulação improvisada no subterrâneo da rua que abastece parte da população do bairro onde ela mora, Campos Elíseos, situado em Duque de Caxias, município da Baixada Fluminense. Com cerca de 20 mil habitantes, o bairro nunca teve acesso regular à água encanada, um serviço que até o fim do ano passado era responsabilidade da Companhia Estadual de Águas e Esgotos (Cedae), do Rio de Janeiro.

Em 1971, quando Coelho se mudou para Campos Elíseos, os vizinhos usavam um poço comunitário. “Era dia e noite carregando água nas costas”, lembra. “Até que uns vinte anos atrás um morador decidiu recorrer à água que vinha de um tubo da Petrobras. Deu certo, e todo mundo passou a fazer isso também.” No bairro está instalada a Refinaria Duque de Caxias (Reduc) – uma das maiores do país –, da Petrobras, numa região que foi aterrada no fim dos anos 1950 para receber indústrias de diversos tipos, a maioria ligada ao petróleo e derivados. Desde então, o polo industrial tornou-se uma espécie de cidade dentro da cidade de Duque de Caxias.

A água bruta que abastece o polo de modo contínuo e sem falhas vem do Rio Guandu, a principal fonte de abastecimento da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, e atravessa o bairro de Campos Elíseos por adutoras enterradas a cerca de 4 metros do chão. A água é destinada a processos industriais da refinaria de petróleo e não recebe tratamento para consumo humano. Ainda assim, é usada por quase metade dos moradores de Campos Elíseos, segundo a pesquisadora Suyá Quintslr, professora do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que estudou as condições de acesso à água no bairro. “Todo mundo precisa de água. Se a Cedae não fornece adequadamente, as famílias incorporam outras estratégias, seja usando a água industrial ou fazendo poços rasos”, diz Quintslr.

As tubulações rudimentares construídas pelos moradores não são adequadamente vedadas, e a canalização atravessa rios poluídos da região. Na rua de Maria Francisca Coelho, uma das principais de Campos Elíseos, a água que escapa dessa tubulação improvisada infiltra o asfalto precário, transborda e fica borbulhando acima da superfície.

Os poços artesianos aos quais a população recorre são outro perigo. Na maior parte das vezes, explica Quintslr, a água subterrânea pode estar contaminada pela atividade do complexo industrial. A saída das pessoas é contratar caminhões-pipa ou comprar galões de água mineral, o que é oneroso para a população de baixa renda, mas lucrativo para criminosos. Quintslr conta que, durante sua pesquisa, moradores mencionaram a atividade de “máfias da água”, grupos milicianos que atuam na região vendendo galões. Além disso, são frequentes em crianças do bairro os casos de diarreia e disenteria – doenças relacionadas à falta de saneamento básico. Para atender a escolas e postos de saúde da região, a prefeitura costuma contratar caminhões-pipa.

A Estação de Tratamento de Água (ETA) em Campos Elíseos só foi inaugurada em abril do ano passado, depois de as obras ficarem paradas por catorze anos. “A Cedae priorizou projetos de expansão do serviço em regiões mais rentáveis economicamente, como a Barra da Tijuca e o Recreio dos Bandeirantes”, diz Quintslr. A ETA, porém, não mudou a situação de Maria Francisca Coelho e seus vizinhos, pois a água tratada pela estatal chega à torneira apenas nas quintas-feiras. “Quem tem caixa d’água já coloca para encher. Mas eu não tenho. Então encho todas as minhas vasilhas de manhã porque à noite já acaba. E preciso economizar, porque só chega de novo uma semana depois”, afirma Coelho.

Para ela, essa atividade já se tornou um hábito. Num estreito corredor no quintal, próximo à lavanderia da casa, fica a bica por onde chega a água. A aposentada senta-se em uma cadeira de plástico branca e enche garrafões de 5 litros para estocar durante a semana. “Deus tem que ajudar muito os pobres. Até botarem água direito aqui acho que vai demorar, ou talvez nem aconteça”, lamenta.

A poucos metros dali, perto do Centro de Campos Elíseos, passa um valão fétido. Não muito longe do bairro também correm os rios Sarapuí e Iguaçu, de sinistra coloração marrom, carregando esgoto não tratado, lixo e toda sorte de objetos descartáveis. Os dois seguem até um cartão-postal da cidade do Rio de Janeiro, a Baía de Guanabara, onde desaguam mais de quarenta rios. A baía, especialmente nas proximidades de áreas urbanas, tornou-se um caldeirão poluído e malcheiroso, com esgoto não tratado, altas concentrações de metais pesados (como chumbo e zinco), micropoluentes orgânicos, óleos e graxas. Não à toa, recebeu a alcunha, dada pelo biólogo Mario Moscatelli, de “Latrina da Guanabara”.

A inauguração da ETA em Campos Elíseos ocorreu no mesmo mês de abril em que grande parte dos serviços da Cedae foi leiloada à iniciativa privada, no dia 30. No Ministério da Economia, o setor de saneamento é tratado como pauta prioritária na agenda de concessões, e o leilão serviu de primeiro grande teste para a série de desestatizações que se pretende fazer de outras companhias estaduais de saneamento.

A desestatização é um processo diferente da privatização, que é a venda de uma estatal em caráter definitivo. A companhia fluminense foi transferida à iniciativa privada por um prazo definido, de 35 anos, e com regras contratuais para a exploração do serviço.

A Cedae era cobiçada pelo mercado porque opera uma gigantesca estação de tratamento de água – em 2007, foi reconhecida como a maior do mundo em produção contínua pelo Guinness, o Livro dos Recordes. Além de servir cerca de 10 milhões de moradores do estado do Rio de Janeiro, a estatal se mostrou uma empresa rentável nos últimos anos: em 2019, lucrou mais de 1 bilhão de reais, apesar de ter fechado o ano de 2020 – quando teve início a pandemia – com um prejuízo de 247 milhões.

O apetite dos compradores ficou evidente. Na primeira rodada do leilão, os agentes públicos esperavam arrecadar 10 bilhões de reais. Conseguiram 22,7 bilhões, na maior concessão de infraestrutura de saneamento da história do país. Mas o ágio altíssimo – a diferença de valor entre o mínimo fixado e o que foi alcançado – se deve também às boas condições oferecidas aos compradores, na análise do engenheiro Wagner Victer, ex-presidente da estatal. “A Cedae continuou com os passivos e vendeu os ativos. O desafio das empresas privadas vai ser grande, mas, financeiramente, compraram um filé, porque pegaram basicamente a receita”, diz ele.

Isso quer dizer que a Cedae vendeu às empresas a estrutura de distribuição de água (tubulações, adutoras, reservatórios etc.), mas manteve em seu nome os passivos judiciais e os planos previdenciários dos empregados. Só de empréstimos e financiamentos antigos, a dívida chega a 478 milhões de reais, segundo a própria companhia. “Não vejo como o estado pode deixar de bancar esses prejuízos”, afirma Victer. Ele dá um exemplo: se a Cedae fez um financiamento para construir um reservatório, agora a estrutura é da empresa privada, mas a dívida continuará em nome da estatal. “Quem vai pagar por isso? O princípio conceitual para vender uma estatal é vender algo que vai dar prejuízo. Não era o caso da Cedae. Não é uma empresa que mereceria ser desfeita”, avalia.

Fato é que a Cedae nunca conseguiu atender plenamente às demandas da população do estado do Rio. No Ranking de Saneamento Básico de 2021, elaborado pelo Instituto Trata Brasil com dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), quatro dos dez piores municípios brasileiros no quesito saneamento ficam na Região Metropolitana do Rio de Janeiro – Duque de Caxias, Belford Roxo, São Gonçalo e São João de Meriti. Segundo o SNIS, o banco de dados do Ministério do Desenvolvimento Regional, em 2019 mais de 64% da população do estado tinha coleta de esgoto, mas somente 39,8% eram tratados, o que significa que mais da metade do esgoto foi despejada nos cursos d’água sem tratamento adequado.

Os efeitos desse problema não se limitam aos bolsões de pobreza do Rio. Em Copacabana, o Posto 5 ficou conhecido por ser um point do mau cheiro. Uma elevatória de esgoto no local, que bombeia o esgoto da Zona Sul para o mar, contamina o ar e afasta moradores e turistas das calçadas. Há muitos anos, a Cedae prometeu realizar obras no local e tornar tudo mais cheiroso com dispersores aromáticos de eucalipto e jasmim, mas a operação foi paralisada.

Na avaliação de pesquisadores ouvidos pela Piauí, os investimentos na área de saneamento e meio ambiente – cerca de 30 bilhões de reais previstos nos dois primeiros contratos – são o principal ponto positivo da concessão. O edital prevê que a tão sonhada universalização dos serviços de água e esgoto no Rio seja alcançada nos doze primeiros anos de contrato. No Brasil, Curitiba é a capital mais próxima dessa universalização: 100% da população tem abastecimento de água, e 99,9%, esgoto tratado, segundo o ranking do Instituto Trata Brasil.

Para o professor Isaac Volschan Jr., do Departamento de Recursos Hídricos e Meio Ambiente da Escola Politécnica da UFRJ, a desestatização é uma oportunidade única para fazer o trabalho que o poder público nunca fez no estado do Rio. “As empresas privadas tornaram-se grandes concorrentes graças à ineficiência das companhias estaduais para investir no setor”, diz ele. Isso porque a maior parte da arrecadação, no caso da Cedae, era usada para bancar o custo da máquina (pagar pessoal e contas, comprar produtos químicos etc.) e não para investir na melhoria do serviço.

Em dezembro do ano passado, as duas empresas vencedoras do primeiro leilão – Iguá Saneamento e Águas do Rio – já haviam iniciado algumas intervenções para aprimorar o sistema. A Iguá se concentrava inicialmente em obras na Estação de Tratamento de Esgoto da Barra da Tijuca e trabalhos de limpeza do Sistema Lagunar de Jacarepaguá, retirando lixo das margens da Lagoa do Camorim e implantando 50 mil mudas de plantas nativas, de modo a recuperar a área de mangue da região. A Águas do Rio havia gastado 120 milhões de reais em materiais para obras de emergência: troca de tubulações inadequadas por falta de manutenção, recuperação de estações elevatórias e instalação de bombas. A empresa trabalha com metas de redução de perdas, o que gera maior disponibilidade de água dentro do sistema e, em teoria, melhora o fornecimento para quem sofre com a falta dela.

A Águas do Rio iniciou, em fevereiro passado, a implantação de uma rede de abastecimento para a comunidade do Sebinho, em Mesquita, na Baixada Fluminense. Concluída a obra, os 3 mil moradores da região receberão água pela primeira vez. Antes dessa intervenção, as casas não eram ligadas ao sistema, e os moradores precisavam improvisar buscando água fora da comunidade.

Nos termos do edital, as empresas devem priorizar o investimento para despoluição de corpos hídricos estratégicos – inclusive a despoluição da Baía de Guanabara e o fim do despejo de esgoto não tratado no Rio Guandu. O contrato prevê que 90% do esgoto lançado na baía seja tratado até 2033 com uma rede tradicional (nos primeiros cinco anos de contrato, municípios no entorno da baía receberão uma solução provisória, com o esgoto ligado à rede pluvial, que capta água da chuva). A ideia de recuperar a Baía de Guanabara não vem de hoje. Os primeiros projetos começaram a ser feitos a partir da década de 1990, atravessaram ao todo nove governos – e nunca foram concretizados. A Águas do Rio e a Secretaria de Estado da Casa Civil garantem que, desta vez, a odisseia chegará ao fim.

Especialistas também indicam os pontos negativos da desestatização. Em cidades do interior do estado, a empresa concessionária será responsável por todo o processo de abastecimento, inclusive a produção de água tratada. Mas na cidade do Rio e na área metropolitana da capital, que operam com os maiores reservatórios – dos sistemas Guandu e Laranjal –, a captação e o tratamento da água serão ainda responsabilidade da Cedae. A estatal venderá a água às concessionárias, que cuidarão da sua distribuição e da coleta de esgoto.

A pesquisadora Ana Lucia Britto, coordenadora do Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento (Ondas) e professora do Laboratório de Estudos das Águas Urbanas da UFRJ, prevê um “jogo de empurra-empurra”, com chances de se transformar em enorme imbróglio. De um lado, diz ela, estará a companhia estadual vendendo água de qualidade duvidosa, devido à contínua poluição dos corpos hídricos do estado e ao sucateamento da companhia. De outro, empresas privadas, que vão ter que distribuir essa mesma água e cobrar pelo serviço. Wagner Victer, o ex-presidente da Cedae, chama esse modelo híbrido de “jabuticaba”. “A Cedae vai produzir água só para continuar existindo e para carregar seus passivos”, diz.

A “jabuticaba” já começou a gerar atritos. Em novembro do ano passado, um dos superintendentes da Águas do Rio, Cleyson Jacomini, afirmou que neste ano a geosmina voltará à água fornecida pela Cedae. A geosmina é uma substância produzida por algas e cianobactérias que proliferam em épocas de calor e se avolumam ainda mais nos tanques de água com a liberação de esgoto não tratado, afetando a cor, o odor e o sabor da água. Em 2020, em pleno verão e pouco antes da pandemia, cariocas de todas as regiões e moradores da Região Metropolitana do Rio começaram a receber nas torneiras de suas casas uma água em tons terrosos, com odor muito forte e gosto peculiar. A crise durou mais de um mês, mas até hoje os cariocas desconfiam da qualidade da água de suas torneiras.

Quando soube da declaração de Jacomini, o atual presidente da Cedae, Leonardo Soares, ligou para o presidente da Águas do Rio, Alexandre Bianchini. “Eu falei com quem realmente é o ator desse debate e ele me passou que esse sujeito [Jacomini] não participava das conversas”, conta Soares. A Cedae afirmou que adota todos os protocolos para garantir a qualidade da água em suas estações de tratamento. A Águas do Rio, por sua vez, disse que Jacomini apenas havia explicado que os investimentos para despoluição do Rio Guandu serão realizados ao longo de cinco anos, não gerando impacto imediato neste verão – mas que isso não significa necessariamente que a geosmina vai reaparecer nas torneiras. “Evitar a geosmina continua sendo uma responsabilidade da Cedae”, frisou a Águas do Rio, em nota enviada à Piauí. A concessionária explicou que fará testes laboratoriais independentes na água e que acompanhará o trabalho técnico da estatal.

Outro possível imbróglio da concessão relaciona-se ao corte da água em caso de inadimplência. No passado, a Cedae não tinha uma política forte de restrição dos serviços por falta de pagamento. Por ser uma estatal, evitava cortar a água em áreas mais pobres, pois isso podia representar risco político para os governantes da vez. De acordo com pesquisadores, esse procedimento pode se tornar comum com o controle das empresas privadas, que precisam distribuir lucro aos acionistas. As concessionárias vencedoras do leilão, por outro lado, afirmam que não pretendem realizar grandes cortes e, se preciso, vão negociar eventuais dívidas com os consumidores.

O contrato de concessão determina que as empresas privadas ofereçam tarifa social – com valor abaixo do preço de mercado – a 5% dos clientes de baixa renda. Mas também estabelece que esse benefício poderá ser revisto, caso a proporção de população sujeita ao pagamento de tarifa social ultrapasse 5%. A Águas do Rio disse que trabalha para conceder o benefício a um número maior – 10%. Segundo dados de 2020 da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD), do IBGE, mais de 20% da população fluminense vive abaixo da linha da pobreza. Ou seja: com qualquer percentual, 5% ou 10%, sobrarão moradores pobres pagando pela água a mesma tarifa dos consumidores mais abastados.

No contrato não está previsto aumento da tarifa – os valores serão corrigidos apenas pela inflação. Mas nada impede que isso ocorra, em caso de “reequilíbrio econômico-financeiro”, um recurso ao qual as empresas privadas recorrem em negócios com o poder público. Em 2020, pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) analisaram a minuta do documento e declararam, em nota conjunta, ter encontrado 26 brechas para as companhias conseguirem ajustes mais elevados.

O ministro da Economia, Paulo Guedes, costuma citar a telefonia como exemplo bem-sucedido de privatização, mas ignora o argumento mais usado pelos que a defenderam: a ampliação da concorrência. No caso da água, o mercado é cativo: se o cliente não estiver satisfeito com a empresa que ganhou a concessão na área em que vive, ele não poderá escolher outra, pois o contrato entrega o serviço a uma única e exclusiva companhia por um período de 35 anos.

Até hoje, apenas uma empresa estadual de saneamento foi totalmente privatizada no Brasil: a Companhia de Saneamento do Estado do Tocantins (Saneatins). Ela teve seus ativos vendidos em 1998 para a Emsa – Empresa Sul Americana de Montagens S.A., que os revendeu em 2011 para a Odebrecht Ambiental, hoje BRK Ambiental, uma das maiores companhias privadas de saneamento do país. Essa privatização, que afetou 139 cidades, é um caso exemplar de fracasso. O governo tocantinense precisou criar uma autarquia para gerenciar o serviço em 78 municípios, a maioria na zona rural, que saíram do acordo de privatização, pois as empresas não haviam cumprido os acordos firmados. A Agência Tocantinense de Saneamento passou a ser responsável pelo serviço nesses municípios em 2013. A BRK ficou com o filé, dispensando o osso: continuou a gerenciar a capital Palmas e as cidades mais populosas do estado.

Todas essas mudanças trouxeram pouco proveito para a população do Tocantins. Em 2020, apenas 27% dos moradores do estado haviam conseguido acesso à rede de esgoto (em 2010 eram 13,5%), segundo dados do SNIS – um avanço muito pequeno e, mesmo assim, concentrado nas áreas mais ricas. “As pesquisas mostram uma priorização do investimento nas áreas rentáveis, onde a população tem capacidade de pagamento de tarifas mais altas. É lá que o operador privado faz mais investimentos”, diz a pesquisadora Suyá Quintslr. “Enquanto isso, nas outras áreas, as mais pobres, as redes começam a ficar obsoletas e sem manutenção adequada.” Para Quintslr, é grande a chance de que isso ocorra também no Rio de Janeiro.

O edital de concessão fixou um valor mínimo de investimento em áreas “irregulares” não urbanizadas na cidade do Rio de Janeiro – ou seja, áreas rurais e comunidades com baixa infraestrutura urbana, para onde serão alocados 1,8 bilhão de reais visando à ampliação de saneamento. A Secretaria de Estado da Casa Civil disse que a prioridade é focar em áreas onde há “planejamento de urbanização do poder público” e “maiores condições de segurança”. Mas não explicou no contrato o que entende por áreas “seguras” no Rio de Janeiro. “Em lugar de as definições serem norteadas pelo critério de saúde pública, priorizando as áreas mais insalubres, a modelagem adota o critério de rentabilidade [relacionado a áreas onde o governo já tem planos econômicos] e de segurança”, disse uma nota emitida pelos pesquisadores da Fiocruz.

A relação entre as empresas privadas e a Cedae durante a prestação do serviço será mediada pela Agência Reguladora de Energia e Saneamento Básico do Estado do Rio de Janeiro (Agenersa) – órgão que, segundo Ana Lucia Britto, “não tem pessoal nem capacidade técnica para fazer a regulação desses contratos”. Atualmente, menos de vinte funcionários concursados trabalham na Agenersa, que até meados de 2021 estava impedida de realizar concursos públicos. “Enquanto a agência reguladora é frágil, as empresas vencedoras são gigantes e têm um setor jurídico implacável”, diz.

“No Rio, estamos no nível mais baixo possível de regulação e não há nenhum esforço no sentido de preparar a agência para esse enorme desafio que está colocado”, avalia Volschan Jr., da UFRJ. Ele acredita que as agências reguladoras ainda precisam construir uma cultura própria para o enfrentamento de conflitos e definir os métodos a serem seguidos. Nos bastidores da Cedae, as críticas são mais ferozes: quem entende dos meandros do setor de saneamento afirma que a Agenersa simplesmente não tem corpo técnico com competência e qualificação adequada para regular as empresas privadas e o contrato bilionário feito entre elas e o estado.

 

Saiba mais em: https://outraspalavras.net/outrasmidias/rio-abrindo-a-torneira-da-agua-mercadoria/

Comente aqui