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No Pará, somem os peixes do Xingu e do litoral

Pesca industrial e hidrelétricas agravam crises ecológicas – e secam a fonte de sustento de ribeirinhos. Várias espécies desapareceram. Sem dinheiro para a gasolina, muitos lançam-se aos perigos do mar aberto para alimentar suas famílias

Por: Por Cícero Pedrosa Neto e Fábio Zuker

“Duzentos quilos de peixe era na hora. Hoje em dia você leva 2 mil metros de rede, e você não arranja pra comer. Tem caboclo que não traz 3 quilos para pagar a gasolina”, desabafa o pescador Antônio Bispo do Rosário, morador da comunidade do Tamatateua — uma das 43 comunidades que constituem a Reserva Extrativista (Resex) Marítima Caeté-Taperaçu, no nordeste paraense.

A pesca é uma atividade central na região, uma Amazônia marítima cuja paisagem de manguezais, igarapés e praias de água salgada não é exatamente a imagem que se tem em mente quando se pensa na floresta. “Fala-se na Amazônia como se fosse só uma floresta de terra firme”, diz Célia Regina Nunes das Neves. Ela é pescadora, marisqueira, líder comunitária e uma importante articuladora nacional na defesa das práticas tradicionais das comunidades pesqueiras. Célia é moradora da comunidade Umarizal, situada na Resex Marinha Mãe Grande de Curuçá — junto à Resex Marítima Caeté-Taperaçu, os dois territórios fazem parte das 12 reservas extrativistas marinhas do Pará, divididas entre a região do Salgado paraense e Caetés.

A explicação para a falta de peixe, segundo os moradores, é a pesca industrial, que impediria a tradicional de ser desenvolvida como antes. Os pescadores relatam que os barcos de maior porte praticam a pesca de arrasto, com redes de até 30 quilômetros de comprimento que impedem que os peixes cheguem mais próximos à costa.

Barcos estão reunidos próximo a área litorânea
Pescadores tradicionais apontam que pescaria industrial e mudanças climáticas têm diminuído o pescado

“A causa disso são esses arrastões, porque eles pescam só lá no criador do peixe. Só em abril que eles param porque o Ibama cancela o arrastão. Aí começou de novo em maio e vai até não ter mais nada”, conta Antônio. “Aqueles peixinhos miúdos, assim, morrem tudo. Eles levam só os peixes que servem mesmo para as firmas. O que não serve, eles jogam fora. Isso aí era pra ser proibido, proibido!”, diz. Ou seja, peixes menores ou de espécies com baixo valor comercial, que poderiam servir à alimentação das populações locais, ou mesmo filhotes em fase de crescimento, são simplesmente descartados mortos no mar.

Líder comunitária da comunidade Umarizal está na frente de uma moradia
“Fala-se na Amazônia como se fosse só uma floresta de terra firme”, diz Célia Neves, pescadora, marisqueira e líder comunitária da comunidade Umarizal

“Gurijuba, não vi mais: antes tinha, pegava muito. Agora a gente pega umas gurijubinhas no mínimo”, desabafa Antônio. Uma das técnicas tradicionais utilizadas pelos pescadores são os chamados currais, uma espécie de armadilha, um cercadinho, muitas vezes rodeados por redes, feito com estacas de madeira fixadas no fundo para capturar peixes. Célia explica que nos “currais de beira”, que estão mais próximos às comunidades, os peixes “não estão mais chegando”. “Os peixes que nós consumimos, a corvina, já não se vê mais; a gó [conhecida também pelos nomes de pescadinha, pescada-dentão ou mesmo pescada-gó] tá escassa”, relata.

Pescador há 41 anos, Lourival Alves da Silva, da comunidade Tamatateua, aponta outros aspectos que dificultam o trabalho dos pescadores da região: o custo da gasolina e o fato de os pescadores não serem donos dos barcos que utilizam. Com barcos mais simples e frágeis, quando comparados aos da pesca industrial, os pescadores da comunidade expõem-se a riscos em alto-mar, tendo cada vez mais que se afastar da costa, para conseguir competir pelos peixes. Isso faz que muitos precisem buscar barcos mais robustos para avançar mar adentro em busca do peixe. Uma canoa de médio porte chega a custar entre R$ 12 mil e R$ 14 mil. Se a pessoa não tem condições de possuir uma, é obrigada a trabalhar para um patrão que tenha o barco, que fica com metade de tudo o que for pescado.

Pescador está em um barco no rio
“O dono dessa canoa [aponta para a canoa em que está sentado], o que vem do mar é rachado no meio, a metade é dele”, explica Lourival. Os pescadores então incorporam a despesa e dividem entre si a outra metade.

Menos peixes no mar. Endividamentos. Poucas chances de sucesso. Riscos crescentes. Mais gastos. Não são poucos os desafios para as comunidades pesqueiras do Salgado Paraense.

“Maretórios” sob ataque

Para Célia, um dos motivos principais do impacto da pesca de arrasto é a preferência por determinadas espécies que possuem valor de mercado, enquanto outras são jogadas fora. “Eles tiram da rede dele e jogam fora porque pra eles só interessa o camarão ou então a pescada-amarela, por causa do mercado da grude.”

Grude é o nome da bexiga natatória que regula a quantidade de ar no peixe, garantindo-lhe navegabilidade e equilíbrio, capacidade de emergir e submergir. A grude, além de utilizada na indústria como emulsificante, é consumida seca na China e outros países asiáticos como iguaria, o que cria maior demanda pela pescada-amarela e aumenta a pressão na espécie, criando distorções: “A grude vale muito mais que o peixe. Então, às vezes, é mais explorado o peixe pela grude, do que pelo próprio peixe”, explica Victoria Isaac, professora da Universidade Federal do Pará (Ufpa) e especialista em biologia pesqueira.

Essas atividades de pesca agressivas, junto aos efeitos globais das mudanças climáticas, estariam afetando as aves, com consequências inesperadas para os peixes e para a saúde das populações pesqueiras. Segundo Célia, “as aves migratórias já nem estão vindo; ou as que vêm não estão voltando. E a gente está preocupado com isso, porque essas aves migratórias contribuem muito para um equilíbrio dessas espécies”.

Ela conta que as aves se alimentam de um parasita chamado de “piolho do peixe” (argulus) pelas comunidades, que se aloja nas guelras ou na cabeça do peixe, fazendo-o perder peso e até matando-o. Célia explica que, como as aves se alimentam desses parasitas, havia um equilíbrio. Mas, diante da constatação dos pescadores de menor presença das aves no território, aumentou o número de peixes com parasita.

Com tamanhas dificuldades enfrentadas pelas comunidades pesqueiras, muitas têm sido forçadas a se adaptar à agricultura em terrenos desfavoráveis, arenosos ou lamacentos. É o que explica Marly Lúcia da Silva Ferreira, secretária nacional de mulheres da Confederação Nacional de Fortalecimento das Reservas Extrativistas Costeiras e Marinhas (Confrem). “No caso de escassez de produtos de pesca, e que ele não tenha mais viabilidade de se sustentar, de se autossustentar ali, ele vai ter que migrar, buscar outras alternativas”, afirma Marly, moradora da comunidade de Tamatateua, na Resex Marinha Caeté-Taperaçu, na cidade de Bragança, no nordeste do Pará.

Mulher com cabelos grisalhos sorri para a câmera
“O que vai acontecer?”, pergunta Marly Ferreira sobre a escassez da pesca

A escassez da pesca faz com que comunidades inteiras, antes dependentes do pescado, migrem, por exemplo, para junto do mangue, para se alimentar de caranguejo. “Se não houver um ordenamento para captura, para o manejo desse crustáceo, o que vai acontecer? Vai acabar”, reflete Marly.

É por isso que, para ela e para as comunidades pesqueiras da Amazônia marítima, território e segurança alimentar não podem ser separados. Daí a demanda pela preservação e expansão dos limites das Resex marinhas, como a Mãe Grande de Curuçá e a Caeté-Taperaçu. Em uma reunião com pescadores em 2018, Célia criou o conceito de “maretório”, que deriva da palavra “maré” e aponta a relação entre corpos, comunidades e os movimentos das águas: “Nós somos realmente o ambiente que nós ocupamos, o ambiente das marés, dos manguezais”.

“Maretório” é, para ela, “a autenticidade das nossas vivências, o acontecimento do dia a dia no território, a conjuntura produtiva de uma diversidade de proteínas. É dessa produção que a gente organiza a nossa economia, organiza o nosso consumo sustentável, a moradia”. Nas palavras da líder, trata-se de “convivência, dos nossos diálogos sobre a importância desses espaços, desses ambientes onde nós nascemos, onde nós vamos conservando toda a nossa historicidade de vida, toda a universalidade das nossas vidas, dos saberes, dos fazeres”.

“É no ‘maretório’ que nós vamos buscar o ápice da nossa produção. E toda a nossa produção está naquilo que nós compreendemos como a nossa força legítima de vida, que é a soberania alimentar. Sem alimento a gente não vive, a gente morre, a fome mata”, conclui.

Pescador ajoelhado no mangue
Pesquisadores apontam que espécies mais valorizadas pelo mercado correm mais risco, o que deixa aos pescadores tradicionais os pescados que geram menos dinheiro
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