Documentário Vento na Fronteira dá cara e voz aos que habitam os dois lados das linhas divisórias – físicas e simbólicas – que historicamente fazem desse povo um estrangeiro em suas terras, e das cores do Brasil um símbolo do genocídio
Por: Silvio Luiz Cordeiro
Sob o atual governo de retrocessos e ruínas, de posturas filofascistas, em que “passar a boiada” é a norma assumida, a secular violência no campo ganha estímulo, revigorada em várias frentes de exploração, que há muito tempo avançam sobre antigos territórios, como ventania renitente, violenta, a soprar desde o passado colonial e amplificada, no tempo presente, em delirante nacionalismo.
No Mato Grosso do Sul, zona essencial da indústria agropecuária brasileira, esse contexto se mostra perturbador e ameaça etnias indígenas, como os Guarani-Kaiowá. Mas como representar o drama histórico e social das disputas envolvidas sobre o domínio de terras ancestrais; e os conflitos que emergem entre modos antagônicos de vida, isto é, entre aquele dos “herdeiros” do colonizador e aquele de herança indígena?
Podemos encontrar uma resposta exemplar em Martírio, filme dirigido por Vincent Carelli sobre a referida etnia nessa região, por dissecar a história em profundidade. Mas outro vento vem soprar a tela e juntar forças nesse ano de riscos, em que urge abrirmos caminhos de reconstrução e reafirmação de direitos, entre eles, a continuidade na demarcação de terras indígenas. Vento na Fronteira, dirigido por Laura Faerman e Marina Weis, com fotografia de Alziro Barbosa, chega para contribuir, em sua força poética.
Em 2022 o quadro geral permanece: parte desse vasto território do Centro-Oeste do Brasil, dominado sob a forma de latifúndios por uma elite ruralista, ultraconservadora, proprietária de terras imemoriais usurpadas, foi retomado em tempos recentes pela volta daqueles que descendem dos antigos habitantes, considerados “invasores” pelos fazendeiros.
O filme flui por dispositivo dicotômico, sugerido já no título, mas não se trata apenas de situar a trama propriamente nessa região fronteiriça entre duas nações (Brasil e Paraguai). Outras fronteiras, ora visíveis, ora sugeridas, permeiam a narrativa, conduzida sobretudo por duas mulheres — uma não-indígena, filha de fazendeiro; a outra, uma educadora Guarani-Kaiowá — em lados opostos, digamos, dessa fronteira mais evidente, cultural, mas também sociopolítica, socioeconômica, socioambiental. São visões de mundo muito distintas, expostas no conflito instaurado. Uma delas, à direita, afirma por um momento no filme que a ameaça das trevas vermelhas será derrotada pela iluminação verde-amarela. Mas o que se revela nesta fala messiânica é pior: pois o que está ainda em marcha, de fato — e a rememorar velhas práticas coloniais — é o extermínio, a ferro e fogo, a veneno e retórica jurídica reacionária, de etnias ancestrais, que habitavam no passado o território hoje em disputa.
A metáfora da cor “ameaçadora” na fala da herdeira do latifúndio reproduz e reitera aquela dos políticos profissionais, todos fiéis do mito (ela inclusive). Ao proferir um discurso de embate entre cores agitadas na perigosa ventania, a herdeira advogada, ao se postar contra a escuridão ameaçadora da flâmula rubra, veste a ideologia-símbolo desta jovem nação, na transposição idealizada em duas cores do lema positivista, em que a garantia e conservação da Ordem (status quo) promoverá o Progresso (exploração), cuja realização, na marcha da história, está embebida a sangue secular indígena, vermelho.
A narrativa flui por contraposições e contrastes na dicotomia entre vários elementos simbólicos; e está aí a força do filme, na medida em que ela se mostra pela montagem a partir da potência poética das paisagens sonoras e das paisagens visuais (inclusive interiores) e seus elementos componentes, enquadrados na fotografia sensível do artista, com a câmera nos lugares indagados, reconhecendo, por exemplo, tanto a paisagem ancestral de Ñande Ru Marangatu (foco da disputa em tela), quanto a paisagem da sede do poder político da nação, além dos vários seres e objetos-signos, estruturas e espaços mostrados (árvores, águas, bois, antigas gravuras rupestres, muros, câmera de vigilância, cercas eletrificadas, telas eletrônicas, botas de couro…).
O conflito se mostra nessa dinâmica contrastante do sentido de fronteira, nitidamente expresso no teor e essência das falas, de um lado, o discurso de tom jurídico, retilíneo e cúbico, na voz da herdeira latifundiária; de outro, um discurso curvilíneo e esférico, que envolve a memória de um povo, na voz de uma liderança indígena feminina, recuperando a oralidade própria de seus ancestrais, herdeiros ameaçados daquele território.
O drama se agita na sucessão de sons e imagens das paisagens envolvidas e seus elementos, na emissão das palavras, ora atiçando o vento do fogo de um porvir incerto, ora afirmando a ancestralidade e forças muito mais poderosas, que estão além da disputa em si, pois alcançam e acessam as relações de sobrevivência própria dos seres.
Assim, chegamos a reconhecer uma fronteira-limite, que hoje se vivencia, entre a violenta exploração imposta por um modo predatório de vida, fragmentador, incentivado por um governo de extrema-direita, em simbiose com militares e setores reacionários; e o tempo antigo, que ainda resiste, na vida daquela gente que se reconhece integrada e parte de um território, habitado junto de outros seres. Discursos contrastantes de universos opostos: da propriedade privada, que explora em escala industrial determinada pela economia hegemônica, contra a cultura de comunhão entre seres na Terra.
{ Silvio Luiz Cordeiro, arquiteto, arqueólogo e documentarista, coordenador da série internacional Antropocênica [https://www.antropocenica.ooo], viajou em 2016 com as diretoras pelo território em disputa }.
Veja em: https://outraspalavras.net/descolonizacoes/o-arame-farpado-na-existencia-dos-guarani-kaiowa/
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