Na morte de Vitorino Sanches, terceira liderança Guarani-Kaiowaa eliminada em dois meses, a encruzilhada dos povos originários. Impasse no STF obriga-os a partir para autodemarcações. Ruralistas e PMs reagem com massacres
Por: Conselho Indigenista Missionário |Imagem: Christian Braga/Farpa/CIDH
Diante da demora da decisão do julgamento do Recurso Extraordinário com repercussão geral (RE-RG) nº 1.017.365 – que tramita no Supremo Tribunal Federal (STF) – e da política de desmonte dos órgãos de proteção aos indígenas e ao meio ambiente, os casos de violência contra os povos originários continuam crescendo e seus territórios seguem sendo devastados.
O tempo está contra os povos indígenas, que esperam há anos pela demarcação de seus territórios – originalmente habitados por eles –, mas que hoje estão ocupados pelas espinhosas cercas dos latifundiários do agronegócio – grandes fazendas produtoras de soja, cana de açúcar ou gado para exportação -, os verdadeiros invasores das terras reivindicadas, onde milícias praticam arbitrariedades com apoio da polícia e do governo.
No Mato Grosso do Sul, os violentos casos dos Tekohas Jopara (em Coronel Sapucaia), Guapo’y (em Amambai), e Kurupi/São Lucas e Kurupi/Santiago Kue (em Naviraí), que serão descritos abaixo, somam-se ao longos históricos de violências desses povos, reforçando a urgente necessidade de o STF retomar o julgamento do Recurso Extraordinário, em que se discute a tese nefasta e inconstitucional do marco temporal. O julgamento, que começou em 2021, seria retomado em 23 junho, mas o ministro Luiz Fux decidiu retira-lo da pauta do tribunal e, até o momento, não há nova data prevista para a decisão.
Enquanto isso, a resistência dos Guarani e Kaiowá pulsa sobre suas terras ancestrais e as retomadas acabam sendo o único recurso possível para esses povos originários que, nos últimos anos, vivenciam um amplo histórico de violências, com: uso de forças de segurança pública em despejos ilegais; jovens e crianças alvejadas por armas de fogo durante ataques; crianças das retomadas impedidas de frequentar escolas; serviços de saúde sendo deliberadamente negados; mulheres, idosas e crianças sendo ameaçadas de estupro; cenário de guerra inclusive com uso de helicóptero como plataforma de tiro; comunidades sem acesso a água, pois os rios estão contaminados pelos agrotóxicos usados nas fazendas que o cercam; territórios diminuídos ou totalmente extintos, obrigando os indígenas a viverem em situação de vulnerabilidade em acampamentos na beira de estradas; famílias inteiras atingidas por nuvens de agrotóxicos lançados por aviões nas frequentes e sistemáticos pulverizações noturna; aumento das ações de reintegração de posse; e com tantas outras barbáries.
“Sofremos um genocídio planejado e silenciado”, afirma a liderança Guarani e Kaiowá, Erileide Domingues, em declaração entregue ao Fórum Permanente das Nações Unidas para as Questões Indígenas (UNPFII). “Quero denunciar que o governo brasileiro está, atualmente, financiando o arrendamento de nossas poucas terras. Que a própria organização indigenista federal tem organizado e fomentado a invasão de nossas terras”, frisou.
Em Guarani, tekoha é o termo utilizado para se referir a seus territórios, que é muito mais do que simplesmente terra. Para eles tekoha é vida, pois os Guarani e Kaiowá têm uma ligação muito forte com os tekoha, seus territórios sagrados. Sem a demarcação e proteção por parte do Estado desses territórios ancestrais, “meu povo está morrendo de fome porque não temos terra para plantar. As poucas que nos restam, o governo brasileiro está arrendando para os agricultores do agronegócio. (…) queremos ter nossa terra e cultivar nossa própria comida. Nossa autonomia foi roubada e o governo, com essa política de arrendamento, não pretende outra coisa, senão nos exterminar”, reforça Erileide.
Grande parte das terras indígenas dos Guarani e Kaiowá são das reservas criadas na década de 1920 pelo extinto Serviço de Proteção aos Índios (SPI), com a finalidade de confinar os indígenas que ocupavam toda a região e liberar seus territórios para a colonização. Foram oito reservas indígenas criadas pelo SPI na região sul do Mato Grosso do Sul, concentrando cerca de 80% da segunda maior população indígena do país, os Guarani e Kaiowá. Reservas que foram demarcadas com uma área bem menor do que os hectares que constavam no decreto. Ou seja, ao longo das décadas, estas pequenas áreas – insuficientes para a sobrevivência física e cultural dos indígenas – foram sistematicamente invadidas e dilapidadas e os povos alijados de seu território de ocupação tradicional em nome de uma política de desenvolvimento.
Desenvolvimento a qualquer custo
Conscientes dos seus direitos, os Guarani e Kaiowá têm lutado para efetivá-los em processo permanente de diálogo, de mobilizações e de retomadas, mas, além do retrocesso na demarcação de terras e do impasse no julgamento do marco temporal, o discurso genocida do governo Bolsonaro tem, cada vez mais, legitimado os casos de violência contra esses povos, além é claro, das ações controversas do Estado.
Para se ter uma ideia do cenário enfrentado pelos indígenas do Mato Grosso do Sul, segundo levantamento do site Mongabay, o Governo Federal reconheceu mais de 58 mil hectares de fazendas em áreas sob demarcação nos últimos dois anos, reflexo da Instrução Normativa nº 9, publicada pela Funai em 16 de abril de 2020, permitindo o registro de imóveis rurais em Terras Indígenas ainda não demarcadas no Brasil. “Infelizmente, o Mato Grosso do Sul é marcado pela força do agronegócio com o conservadorismo, algo que influencia os tribunais”, afirmou Rafael Modesto, Advogado e assessor jurídico do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) em entrevista para o referido site. “Há magistrados que são grandes donos de terras, o que interfere na razão de suas sentenças”, frisou.
Buscando inibir algumas das ações violentas enfrentadas pelos indígenas, o ministro Luís Roberto Barroso, do STF, prorrogou até o dia 31 de outubro de 2022 a suspensão de despejos e desocupações, em razão da pandemia de Covid-19. A medida poderá resguardar os indígenas que fazem parte das retomadas até – pelo menos – o prazo estabelecido por Barroso.
Acontece que, em maio de 2020, a Corte também determinou a suspensão de todos os processos que tratem do tema e que possam resultar na anulação de demarcações ou no despejo de comunidades indígenas. A decisão do ministro Edson Fachin é válida até o fim da pandemia de Covid-19 ou até o término do julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365 – caso ele ainda não tenha sido concluído quando a crise sanitária for considerada encerrada. Entretanto, as medidas seguem sendo burladas e desrespeitadas por juízes e forças de segurança.
Tekoha Jopara, localizado próxima a reserva Indígena Taquaperi, no município de Coronel Sapucaia (MS)
- 21 de maio de 2022: o jovem indígena Alex Lopes tomba em seu território
No dia 21 de maio deste ano, Alex Recarte Vasques Lopes, de 18 anos, foi assassinado. Segundo o relato de lideranças da comunidade, Alex teria deixado a reserva Taquaperi, onde morava, para buscar lenha em uma área do entorno da Terra Indígena. No local, teria sido assassinado e seu corpo abandonado no Paraguai – em uma área a menos de dez quilômetros dos limites da reserva indígena. Em fotos do corpo do jovem enviadas pelas lideranças ao Conselho Indigenista Missionário (Cimi) Regional Mato Grosso do Sul, foi possível identificar ao menos cinco orifícios compatíveis com projéteis de armas de fogo. Segundo as lideranças da comunidade, ele foi derrubado com um tiro e depois executado friamente – todas as perfurações de bala se encontram na região de seu peito.
Desde então, os Guarani e Kaiowá cobram apuração federal do assassinato e vivem sob constante tensão – temendo ser alvo de violência de policiais e fazendeiros.
Histórico de violência
O município de Coronel Sapucaia – separado da cidade de Capitán Bado, no Paraguai, apenas por uma avenida -, registra um longo histórico de violência de fazendeiros contra lideranças do povo Guarani e Kaiowá. Em apenas dois anos, foram assassinadas três importantes lideranças do tekoha Kurusu Amba, também localizado no município: a rezadora Xurite Lopes, em 2007, e as lideranças Ortiz Lopes, também em 2007, e Oswaldo Lopes, em 2009 – todos até hoje impunes.
O caso de Alex Lopes guarda semelhanças, também, com o caso de Denilson Barbosa, outro jovem Guarani Kaiowá assassinado por um fazendeiro, em 2013, quando pescava com amigos numa propriedade vizinha ao tekoha Pindo Roky – incluído no perímetro da TI Dourados-Amambaipegua I. A terra indígena foi identificada e delimitada em 2016 pela Funai e está com seu processo demarcatório paralisado desde então.
Em comum, além da impunidade dos autores dos crimes, os casos guardam relação com a situação de confinamento e morosidade na demarcação das terras Guarani e Kaiowá, que inviabiliza o acesso a condições mínimas de subsistência e transforma o ato de circular por áreas reivindicadas e até reconhecidas como parte de seu território tradicional em ações perigosas e potencialmente fatais.
- 22 de maio de 2022: mesmo sob pressão, a resistência indígena retoma o território ancestral
Na madrugada do dia 22 de maio, domingo, em protesto contra o assassinato do jovem indígena Alex Lopes, o povo Guarani e Kaiowá retomou uma fazenda no município de Coronel Sapucaia (MS), na fronteira com o Paraguai, vizinha à Terra Indígena (TI) Taquaperi, onde teria ocorrido o assassinato do jovem indígena. A retomada foi denominada pelos indígenas como Tekoha Jopara.
Já no início da tarde daquele dia, o acesso à retomada foi impedido por um bloqueio realizado por viaturas do Departamento de Operações de Fronteira (DOF). A barreira foi posicionada na rodovia MS-286, que atravessa a TI Taquaperi e também dá acesso a outras comunidades indígenas da região – que ficaram, na prática, isoladas.
A situação de extrema violência foi o que motivou os Guarani e Kaiowá a realizarem a retomada, conforme relata uma das lideranças da comunidade, não identificada por razões de segurança.
“Mataram um rapaz de 18 anos, é triste. A família decidiu fazer a retomada onde mataram o rapaz. Precisamos de apoio dos órgãos competentes. Aqui na aldeia Taquaperi, nunca acontecem retomadas, é a primeira vez que acontece isso. Já perdemos muitos parentes na estrada, atropelados. Dessa vez, tomamos a decisão [de retomar]. Chega de perder nossos parentes, é dor para nós”, relata a liderança.
“A família fica com dor no coração, porque além de matar, aqui no vizinho, carregaram e jogaram lá no Paraguai. Parece um animal, é coisa triste. Então, tomamos essa decisão nossa, da família e da comunidade inteira do Taquaperi”, conta o indígena.
Na ocasião, os Guarani e Kaiowá cobraram que o assassinato fosse investigado com urgência pelas autoridades federais, pois temiam que o cenário do crime pudesse ser alterado, inviabilizando a perícia. Além disso, os indígenas salientam que não confiam nas forças de segurança estaduais, que em diversas ocasiões agiram parcialmente em defesa dos interesses de fazendeiros, atacando retomadas e acampamentos mesmo sem determinação judicial. A comunidade pede, ainda, proteção urgente aos sobreviventes do ataque.
A TI Taquaperi é uma das oito reservas indígenas criadas pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI) na região sul do Mato Grosso do Sul. De acordo com o coordenador do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) – Regional Mato Grosso do Sul, Matias Benno, “os indígenas reivindicam uma boa parte da área de Taquaperi que foi subtraída em relação àquela prevista no decreto de criação. E cobram, por décadas, que a Funai estabeleça um estudo para checagem e reavivamento desse território”.. Cerca de 3.300 indígenas vivem neste pequeno espaço, o que inviabiliza que sobrevivam de acordo com seu modo de vida tradicional. O confinamento e a apropriação, ao longo das décadas, de partes da área reservada por fazendeiros é uma das razões para que os Guarani e Kaiowá da reserva frequentem áreas de mata das propriedades vizinhas à reserva, reivindicadas pelos indígenas como parte de seu território tradicional.
“A situação é de extrema negação de direitos”, disse em nota a Caravana Ecumênica, formada por lideranças religiosas de todas as partes do país, que foram até o estado para prestar solidariedade a esses povos originários, ouvi-los e fazer ecoar suas denúncias para as instituições nacionais e internacionais. “Lideranças afirmam já terem ouvido que as crianças que estiverem em área de retomada serão reprovadas nas escolas. Professores indígenas de outras aldeias são ameaçados em seus trabalhos, caso queiram ir ao Jopara. Segundo os relatos, agentes de saúde dizem com todas as letras: “nós não vamos fazer atendimento à comunidade que tá na retomada”. Há crianças e doentes na comunidade, mas nem mesmo remédios são liberados para que as próprias lideranças levem ao tekoha”, relata a Caravana em nota.
- 2 de junho de 2022: o terror continua na retomada do Tekoha Jopara
No dia 2 de junho, as intimidações à retomada do Tekoha Jopara, se intensificaram. Desde que os Guarani e Kaiowá optaram pela retomada, uma série de ameaças ocorreram contra esse povo.
“Os indígenas têm denunciado há dias as movimentações, tentando sensibilizar setores. Inclusive de pessoas portando fuzis em suas caminhonetes. Uma preocupação adjacente é que, nesse local, há circulação intensa e envolvimento de forças ligadas ao mundo do tráfico de drogas. Então, é difícil saber a proporção que pode tomar um ataque nessa zona de fronteira para além dos fazendeiros. Essa força está posta”, afirma Matias Benno, coordenador do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) – Regional Mato Grosso do Sul.
O coordenador explica que, para os indígenas, retomar o território – principalmente após a morte de Alex Vasques –, é um “senso de justiça”. “Os indígenas estão lá com convicção de que a ocupação é um direito, principalmente devido a duas questões: a justiça pelo assassinato brutal do jovem Alex, sem explicações, e, ao mesmo tempo, por ser uma área que pertencia à área indígena. Na lógica da comunidade, se essas pessoas não tivessem invadido o território, não haveria morte. Não haveria essas violações que, constantemente, segundo eles, acontecem advindas dessa fazenda”.
Na ocasião, o Cimi – Regional Mato Grosso do Sul, junto aos indígenas, tentaram deslocar forças de segurança federais até o local, a fim de evitar mais um massacre contra os Guarani e Kaiowá. “Eles [supostos fazendeiros] querem invadir Jopara, querem brigar. Já mandaram o recado. As crianças e mulheres já saíram do local. Eles estão armados, o sangue vai ser derramado de novo”, afirma uma liderança – que não será identificada por questão de segurança.
Saiba mais em: https://outraspalavras.net/outrasmidias/um-assassinato-expoe-a-sinuca-de-bico-dos-indigenas/
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