Quarta greve geral em dois meses paralisa país, em defesa da Previdência pública. Governo insiste em “reforma” neoliberal rechaçada pela maioria. Mais de 93% dos trabalhadores apoiam movimento – que agora pode tornar-se mais radical
Por: Jon Bernat Zubiri Rey e Régis Arriet | Tradução: Maurício Ayer | Imagem: LP/Jean-Baptiste Quentin
Como já é habitual, um forte movimento social se espalha pela França, liderado pelas organizações sindicais que há um mês e meio se opõem à reforma previdenciária do presidente Emmanuel Macron e de sua primeira-ministra Élizabeth Borne. Tendo construído uma unidade excepcional no fragmentado cenário sindical francês – com oito organizações de representatividade nacional – os quatro dias de ação que aconteceram desde 19 de janeiro levaram a greves no setor público e em muitas empresas privadas.
Os protestos de janeiro reuniram as maiores manifestações do país em décadas, notadamente no dia 31 de janeiro, quando os sindicatos disseram ter mobilizado 2,8 milhões de manifestantes, 1,3 milhão segundo a polícia. No dia 7 de março, voltam a medir forças em nova jornada de greve geral, convocatória de caráter renovável ao menos nos setores de energia e de transporte ferroviário, que pode estender o movimento social por várias semanas, aguardando as centenas de assembleias que serão realizadas durante o dia de mobilização e que votarão para decidir sobre continuidade da greve.
Atraso na idade de aposentadoria
Com esta contra-reforma do sistema de pensões, o governo macronista pretende aumentar a idade mínima de aposentadoria de 62 para 64 anos e também aumentar de 42 para 43 o número de anos trabalhados necessários para se aposentar, aprofundando as reformas de 2010 e, também, a campanha de 2013 da ministra “socialista” Marisol Touraine, que apoiou o liberal Emmanuel Macron em sua campanha. Para as pessoas que não tenham um número suficiente de anos trabalhados, o limite de idade de aposentadoria continuaria sendo 67 anos.
O objetivo comum de todas as organizações sindicais, mesmo as mais moderadas como a CFDT (Confederação Francesa Democrática do Trabalho), é a retirada desta reforma ou, pelo menos, a exclusão do atraso de 62 para 64 anos como idade mínima para se aposentar. O conflito se cristalizou em torno dessa medida que Borne descreveu como “não mais negociável”. O programa presidencial de Emmanuel Macron pretendia chegar a 65 anos, mas foi reduzido para 64 no projeto de lei para satisfazer os deputados ruralistas de direita.
Esse “movimento social”, como é conhecida na França a dinâmica sustentada da greve geral, está inserido em um longo ciclo de luta. Primeiro, o movimento contra a lei trabalhista de 2016, quando as manifestações foram abertas por enormes “colunas de cabeça” e black blocs organizados pelo movimento autônomo, bem como pelas grandes assembleias cidadãs permanentes das “Noites despertas” nesse mesmo ano, que foi seguido pelo movimento auto-organizado dos coletes amarelos entre 2018 e 2020, que durante meses ocupou rotundas e participou todos os sábados de manifestações espontâneas altamente conflituosas. A atual oposição à reforma da previdência marca o retorno à linha de frente de combate de um movimento social liderado pelos sindicatos.
A nova unidade sindical renovou os compromissos entre as diferentes organizações sobre as formas de atuação, como convocar uma manifestação no sábado, 11 de fevereiro, para que mais pessoas precárias possam participar, mas sem que os sindicatos ferroviários convoquem a greve neste dia porque também correspondeu ao início das férias escolares de inverno em um terço do país.
Pequenas cidades mobilizadas
Outra característica do atual movimento são as grandes manifestações em cidades pequenas ou médias, elemento que preocupa o governo mas também os tradicionais deputados de direita eleitos no meio rural, cujo apoio será necessário para que a reforma seja votada, atualmente em revisão no Senado.
Seria o movimento dos Coletes Amarelos, que aumentou a politização dos habitantes dessas áreas, talvez um dos fatores explicativos dessas fortes mobilizações? Outro aspecto a destacar é a composição social dessas cidades, onde a proporção de pessoas com baixa ou média qualificação é significativa e, em geral, são mais afetadas pela reforma da previdência do que aquelas com maior nível de escolaridade.
Deve-se lembrar também que os sindicatos, apesar do enfraquecimento nas últimas décadas, continuam a ter níveis significativos de filiação, além disso distribuídos por todo o território. As maiores, a CFDT e a CGT (Confederação Geral do Trabalho), continuam a registar cada uma mais de 600 mil filiados, e a FO (Força Operária) outros 500 mil. Ainda que os níveis de filiação sejam baixos no contexto europeu, eles são muito maiores do que os contabilizados pelos partidos políticos.
Essa reforma previdenciária também pode ser a gota d’água para populações já abandonadas pelos serviços públicos. Em 31 de janeiro, segundo a polícia, 7 mil manifestantes caminharam pelas ruas de Alès (cidade de 35 mil habitantes na Occitânia), 8.500 em Angoulême (41 mil habitantes, na Nova Aquitânia) e 11 mil em Châteauroux (43 mil habitantes, na região Centro-Vale do Loire).
Assim, ao invés de marchar em Paris, os dirigentes sindicais nacionais optaram por participar da manifestação em Albi (Occitânia), terra do histórico líder do socialismo francês Jean Jaurès, no dia 11 de fevereiro, para apoiar essa dinâmica, organizando uma manifestação que reuniu mais de 15 mil pessoas nesta cidade de 49 mil habitantes.
França contra a reforma das aposentadorias
Parece que a batalha de opinião foi vencida, definitivamente, pelos opositores da reforma. Segundo a pesquisa de opinião Odoxa-Mascaret publicada no final de fevereiro, realizada para o canal de televisão Public Sénat e 20 edições da imprensa regional, 66% da população francesa se opõe a esta reforma previdenciária e 61% apoia a greve do movimento marcada para o dia 7 de março. A oposição ao adiamento da idade mínima de aposentadoria para 64 anos chegou a atingir 93% dos trabalhadores do país, segundo pesquisa do Instituto Montaigne, de linha liberal, realizada com 5.001 trabalhadores ativos e divulgada em 12 de janeiro. Vários elementos podem explicar esses resultados. A primeira coisa, obviamente, é a unidade sindical que lhes permitiu falar com voz forte e clara e dar confiança aos trabalhadores e às trabalhadoras.
Além disso, o governo tem tido dificuldades em justificar a sua reforma, tanto em termos de equidade como da sua necessidade. Em dezembro e janeiro, vários ministros saíram defendendo a reforma como uma medida de justiça, dando a entender que haveria uma pensão mínima de 1.200 euros por mês para cada pensionista. Pouco depois, o jornal Médiapart denunciou a ausência dessa medida no projeto de lei.
Quando o economista de proteção social Mickaël Zemmour (não confundir com o polêmico e político de extrema-direita Eric Zemmour) revelou a falsidade desta declaração em horário nobre na rádio pública France Inter, a apresentadora Léa Salamé ficou abalada e a mentira do governo explodiu na arena midiática.
Na realidade, existia no projeto de lei apenas um mecanismo de reavaliação das pequenas pensões, que, em alguns casos, podia chegar a um aumento de 100 euros. Questionado incansavelmente por jornalistas e deputados do Nova União Popular, Ecológica e Social (Nupes, coalizão de esquerda) o ministro do Trabalho, Olivier Dussopt, teve que admitir em 28 de fevereiro que apenas 10 a 20 mil pessoas, das 800 mil que se aposentam a cada ano, veriam sua aposentadoria chegar a 1.200 euros brutos por mês graças à reforma.
Essa sequência, com episódios dignos de uma série de televisão, pôs fim ao caráter supostamente justo da reforma e, além de revelar as imprecisões e mentiras do governo, ainda leva a pensar se os próprios ministros entenderam os detalhes técnicos da lei que pretendem aprovar.
Justa não é. Mas seria necessária?
Assim, as justificativas do governo para a reforma mudaram ao longo do tempo e o que era uma reforma justa transformou-se, na boca dos governantes, em uma reforma estritamente necessária. O objetivo seria “salvar” o sistema de pensão por repartição – enquanto esta nova reforma abrirá um pouco mais este novo “mercado” aos sistemas privados e individualizados de pensão por custeio. Segundo as previsões do governo, dentro de alguns anos faltariam 12 bilhões de euros por ano para equilibrar os fundos de pensão.
Mas é difícil fazer compreender aos trabalhadores que não sabem onde encontrar estes 12 bilhões de euros quando as reduções das contribuições sociais e dos impostos pagos pelas grandes empresas, como os seus lucros e dividendos distribuídos aos acionistas, atingem níveis sem precedentes. O próprio Conselho de Orientação das Aposentadorias negou que o regime de aposentadoria esteja em risco. Sem contar os duvidosos cenários demográficos sobre os quais repousa o projeto de reforma, questionados pelo famoso demógrafo Hervé Le Bras, entre outros.
Pelo contrário, parece que a motivação profunda do governo para levar a cabo esta reforma foi poupar nas aposentadorias de modo a obter alguma margem de manobra orçamentária face às exigências da União Europeia. Emmanuel Macron pretende também vangloriar-se de ter feito “a mãe das reformas” contra um povo francês refratário a qualquer tipo de corte no seu nível de bem-estar.
Neste ponto do debate sobre a reforma da previdência, a questão se apresenta como um conflito sobre a distribuição da riqueza produzida. O rumo traçado é inequívoco, a reforma ora proposta vai impactar mais pessoas com níveis baixos ou médios de qualificação do que aqueles com níveis elevados de formação, sem corrigir as agudas desigualdades nas condições de trabalho entre classes e sexos.
Trapaças para passar a lei
Em vez de aprovar esta reforma por meio de um projeto de lei, o governo decidiu encaminhá-la como uma lei que altera o financiamento da Seguridade Social, o que confere algumas vantagens à sua aprovação. Essa manobra agressiva do executivo questiona os poderes de representação política, pois impõe tempos muito curtos e acelerados para os debates nas câmaras legislativas, além de dar a possibilidade de utilização do artigo 49.3 da Constituição francesa de 1958, ou seja, a adoção da lei sem votação. Este caminho tortuoso, não condizente com a profundidade da pretendida reforma do sistema de aposentadorias, dá também a possibilidade, caso os debates nas câmaras durem 50 dias, de concretizar a reforma via decreto-lei.
O governo não deve chegar a esse extremo, pois pode contar com o apoio da direita tradicional do LR (Republicanos), o que daria a Macron a maioria absoluta que lhe falta na Assembleia Nacional. Além disso, essa direita tradicional tem maioria no Senado, onde o projeto está em análise até 12 de março.
Diante dessa tramitação forçada por parte do governo, os partidos de esquerda agrupados no Nupes não adotaram uma estratégia parlamentar comum. Enquanto os socialistas, os comunistas e os verdes se opunham fortemente à maioria macronista e de direita mas sem bloquear o processo parlamentar, para chegar a discutir o artigo sobre o adiamento da idade mínima de reforma, tal como solicitado pelas grandes centrais sindicais, A França Insubmissa de Jean-Luc Mélenchon respondeu à estratégia do governo com uma obstrução parlamentar, apresentando milhares e milhares de emendas e bloqueando assim o estudo do texto, monopolizando a palavra na câmara enquanto o ministro do Trabalho, Olivier Dussopt, se dedicava com esmero a fazer palavras cruzadas.
Por seu lado, se a Reunião Nacional de Marine Le Pen é formalmente contra essa reforma da previdência, ela pouco se envolve nessa batalha parlamentar. Mas pode-se temer que, ao final, ela saia ainda mais fortalecida dessa sequência. De fato, a adoção da reforma contra uma maioria muito significativa do povo e apesar de um dos movimentos sociais mais massivos das últimas décadas constituiria uma negação da democracia social por parte do presidente que poderia enfraquecer ainda mais as instituições sociais. Nesse sentido, o secretário-geral da CFDT, Laurent Berger, comentou na rádio Europe 1 no dia 20 de fevereiro: “Marine Le Pen está se escondendo, ela não tem muitas convicções sobre as aposentadorias, mas ainda se beneficia da mobilização, o que é um problema para os demais”.
Os escassos 20 dias a que se limitou o processo acelerado de estudo do texto terminaram a 17 de fevereiro, com uma Assembleia Nacional à beira de um colapso nervoso. O ministro Dussopt gritando para a bancada dos insubmissos, com voz rouca, “vocês estão me insultando há quinze dias, agora caiam fora, ninguém teve um colapso nervoso”, enquanto os insubmissos entoavam o hino dos coletes amarelos, e os macronistas, com a direita e extrema-direita, o hino nacional. A lei certamente passará por tramitação no Senado, se a mobilização social não impedir com o novo dia de greve geral que se realiza hoje. A França tem forte capacidade de barrar as reformas legislativas a partir das ruas, onde foi forjada a própria ideia de democracia que impera no país.
Veja em: https://outraspalavras.net/movimentoserebeldias/a-centelha-da-luta-social-incendeia-a-franca/
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