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A inusitada mas possível Geopolítica do Comum

Teorias geopolíticas dominantes continuam a se apoiar no conceito de hegemon. Mas a China, emergente, não parece interessada em exercê-lo. Sua recusa pode evitar o desastre e abrir espaço para o multilateralismo e a cooperação

Por: Jeffrey D. Sachs |Tradução: Maurício Ayer |Imagem: Tenentes Melvill e Coghill, 24º Regimento, morrendo de vontade de salvar as Cores da Rainha na Batalha de Isandlwana, durante a guerra Anglo-Zulu, 1879. Do livro África do Sul e a Guerra do Transvaal, Volume 1 de Louis Creswicke, publicado em 1900.

Há um consenso universal de que estamos em um período geopolítico de tensão e escalada. Em uma cronologia grosseira, 1815-1914 foi a era da hegemonia britânica, a não tão pacífica Pax Britannica. O que se seguiu entre 1914 e 1945 foi um período desastroso de duas guerras mundiais e da Grande Depressão. O fim da Segunda Guerra Mundial marcou a ascensão dos Estados Unidos como o novo país hegemônico, bem como o início da Guerra Fria entre os Estados Unidos e a União Soviética. Este período durou de 1947 a 1989. O período de 1989 até cerca de 2008 tem sido descrito (com ou sem razão) como o mundo unipolar, sendo os Estados Unidos amplamente considerados como superpotência única. Na última década, entramos em uma nova era geopolítica, mas de que tipo?

Existem pelo menos cinco grandes teorias sobre a geopolítica atual. As três primeiras são variantes da Teoria da Estabilidade Hegemônica; a quarta é a importante escola do realismo internacional. A quinta é minha teoria preferida, a do multilateralismo, baseada na importância preeminente da cooperação global para resolver problemas globais urgentes.

A Teoria da Estabilidade Hegemônica, defendida pelas elites americanas na política, no governo e na academia, sustenta que os Estados Unidos continuam sendo o líder hegemônico mundial, a única superpotência, embora desafiado por um concorrente em ascensão, a China, e por um competidor menor, mas dotado de armas nucleares, a Rússia.

A Teoria da Competição Hegemônica, às vezes apelidada de teoria da Armadilha de Tucídides, sustenta que a ascensão da China deu início a um período de confronto entre os Estados Unidos e a China, juntamente com o confronto contínuo dos Estados Unidos e da Rússia. A competição EUA-China é comparada à de Esparta e Atenas nas Guerras do Peloponeso, com a China desempenhando o papel de Atenas, a potência em ascensão no mundo helênico do século IV a.C., desafiando Esparta, a potência vigente.

A teoria do Declínio Hegemônico se concentra no fato de que os Estados Unidos não estão mais dispostos ou aptos a desempenhar o papel de estabilizador global (se é que alguma vez estiveram). De acordo com essa teoria, nosso período atual será semelhante ao período de declínio britânico após a Primeira Guerra Mundial e antes da ascensão da hegemonia estadunidense. A teoria do Declínio Hegemônico sustenta que o declínio de um país hegemônico leva à instabilidade global.

A teoria realista sustenta que a geopolítica é definida pela política das grandes potências, com a China, os Estados Unidos, a UE, a Rússia e, cada vez mais, a Índia, desempenhando o papel das grandes potências e compartilhando o cenário mundial com potências regionais (como Brasil, Indonésia, Irã, Paquistão e Arábia Saudita, entre outros).

A teoria multilateralista, a qual subscrevo, sustenta que somente a cooperação global e o multilateralismo, organizados em torno das instituições da ONU, podem nos salvar de nós mesmos, seja da guerra, de tecnologias perigosas ou das mudanças climáticas induzidas pelo homem. O multilateralismo é frequentemente descartado como excessivamente idealista porque exige cooperação entre as nações, mas argumentarei que é de fato mais realista do que a teoria realista.

Claro, existem várias outras abordagens importantes para a geopolítica, incluindo as teorias marxistas focadas nos interesses e no poder do capital financeiro globalmente móvel, a teoria do centro-periferia de Immanuel Wallerstein e a teoria do choque de civilizações de Samuel Huntington. São todas bem conhecidas e têm sido amplamente debatidas. Por uma questão de brevidade, vou me concentrar nas três teorias hegemônicas, no realismo e no multilateralismo.

Impulsionadores econômicos da mudança geopolítica de longo prazo

Os Estados Unidos eram de longe a principal potência mundial no final da Segunda Guerra Mundial. Segundo estimativas do historiador Angus Maddison (2010), os Estados Unidos produziam 27,3% da produção global (medida a preços internacionais) em 1950, embora constituíssem apenas 6% da população mundial (e hoje apenas 4,1%). A União Soviética era a segunda maior economia, com aproximadamente um terço do tamanho dos Estados Unidos, enquanto a China era a terceira, com aproximadamente um sexto. A vantagem americana não estava apenas no PIB total, mas também em ciência, tecnologia, ensino superior, profundidade dos mercados de capitais, sofisticação da organização empresarial e qualidade e quantidade da infraestrutura física. As empresas multinacionais americanas deram a volta ao mundo para criar cadeias produtivas globais.

A predominância dos EUA diminuiu gradualmente desde 1950, principalmente porque outras partes do mundo foram alcançando os Estados Unidos em avanço tecnológico, capacidades e infraestrutura física. Como prevê a teoria, a globalização promoveu a disseminação do conhecimento científico e tecnológico, do ensino superior e da infraestrutura moderna. O Leste Asiático foi o maior beneficiário da globalização. A decolagem do Leste Asiático começou com a rápida reconstrução pós-guerra do Japão durante o período de 1945-1960, seguido da década em que sua renda dobrou, os anos 1960. O Japão, por sua vez, forneceu um roteiro para os quatro Tigres Asiáticos (Coreia, Taiwan, Hong Kong e Cingapura), que iniciaram seu rápido crescimento na década de 1960, e depois para a China, a partir do final da década de 1970, com as reformas de Deng Xiaoping e a abertura do país para o mundo. De acordo com as estimativas de Maddison, as 16 principais economias do Leste Asiático produziram 15,9% da produção mundial em 1950, 21,7% em 1980 e 27,8% em 1990. Na década de 1990, a Índia também iniciou uma era de abertura econômica e rápido crescimento.

Com a dissolução da União Soviética em 1991, os Estados Unidos não enfrentaram nenhum grande concorrente pela liderança global. Embora a economia da Europa Ocidental fosse amplamente comparável em tamanho à economia americana, o continente europeu permaneceu dependente dos Estados Unidos para segurança militar e, de qualquer forma, era um grupo disjunto de nações com políticas externas geralmente subordinadas aos EUA. O Leste Asiático havia crescido rapidamente, mas era uma força geopolítica ainda menor do que a Europa. De acordo com as medições do FMI, o PIB da China medido em dólares internacionais constantes correspondia a 17,5% do PIB americano, apesar de uma população que era 4,6 vezes maior. Sua renda per capita era, portanto, apenas 3,8% da americana, de acordo com as estimativas do FMI. As tecnologias e a capacidade militar da China tinham décadas de atraso em relação aos Estados Unidos, e seu arsenal nuclear era pequeno. Talvez seja compreensível que os formuladores de políticas em Washington presumissem que os Estados Unidos seriam a única superpotência mundial por décadas a fio.

O que eles não previram, é claro, foi a capacidade da China de crescer rapidamente nas décadas seguintes. Entre 1991 e 2021, o PIB da China (medido em dólares internacionais constantes) cresceu 14,1 vezes, enquanto o PIB americano cresceu 2,1 vezes. Em 2021, de acordo com estimativas do FMI, o PIB da China em preços internacionais constantes de 2017 era 18% maior que o PIB dos EUA. O PIB per capita da China aumentou de 3,8% do dos EUA em 1991 para 27,8% em 2021 (estimativas do FMI).

Os rápidos ganhos da China em produção e produção por pessoa foram sustentados por rápidos avanços chineses em conhecimento tecnológico, capacidade de inovar, educação de qualidade em todos os níveis e atualização e modernização da infraestrutura. Os ingênuos e às vezes racistas analistas estadunidenses desprezaram o sucesso da China como sendo tão somente decorrência de roubo do know-how americano, como se os Estados Unidos fossem a única sociedade que pudesse aproveitar a ciência e a engenharia modernas e também como se não dependessem de conhecimentos científicos e avanços tecnológicos produzidos em outros lugares. Na verdade, a China está se recuperando ao dominar o conhecimento tecnológico avançado e tomar medidas para se tornar uma grande inovadora autônoma.

Também não devemos negligenciar o crescente poder econômico tanto da Índia quanto da África, esta última incluindo os 54 países da União Africana. O PIB da Índia cresceu 6,3 vezes entre 1991 e 2021, passando de 14,6% do PIB dos Estados Unidos para 44,3% (todos medidos em dólares internacionais). O PIB da África cresceu significativamente durante o mesmo período, atingindo 13,5% do PIB dos EUA em 2022. O mais importante neste contexto é que a África também está se integrando política e economicamente, com avanços importantes em políticas e na infraestrutura física para criar um mercado único interconectado no continente.

Nos últimos 30 anos, três mudanças econômicas básicas transformaram a geopolítica. A primeira é que a participação dos EUA na produção global caiu de 21,0% em 1991 para 15,7% em 2021, enquanto a da China aumentou de 4,3% em 1991 para 18,6% em 2021. A segunda é que a China ultrapassou os Estados Unidos no PIB total e tornou-se o principal parceiro comercial para grande parte do mundo. A terceira é que os BRICS, formados por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, também ultrapassaram os países do G7 em produção total. Em 2021, os BRICS tiveram um PIB combinado de US$ 42,1 trilhões (medido em preços internacionais constantes de 2017), em comparação com US$ 41,0 trilhões no G7. Em termos de população combinada, os BRICS, com uma população de 3,2 bilhões em 2021, é 4,2 vezes a população combinada dos países do G7, em 770 milhões. Em suma, a economia mundial não é mais dominada pelos americanos ou liderada pelo Ocidente. A China tem tamanho econômico geral comparável ao dos Estados Unidos, e os grandes países de renda média são um contrapeso para as nações do G7. É notável que quatro presidências consecutivas do G20 serão realizadas por países em desenvolvimento de renda média: Indonésia (2022), Índia (2023), Brasil (2024) e África do Sul (2025).

Visões contrastantes da geopolítica

Como a China igualou ou ultrapassou os Estados Unidos em tamanho econômico e se tornou o principal parceiro comercial de muitos países ao redor do mundo, e como os BRICS se igualaram ao G7 em tamanho econômico geral, um debate se espalha tanto nos Estados Unidos como globalmente sobre as mudanças quanto ao papel e o poder dos EUA e as implicações para o futuro da governança global e dos assuntos internacionais. Conforme mencionado acima, existem cinco escolas de pensamento, que agora analiso com mais detalhes.

A teoria da Estabilidade Hegemônica continua sendo a escola de pensamento dominante nos Estados Unidos, pelo menos nos círculos de liderança e nos think tanks e centros acadêmicos da Costa Leste. De acordo com essa visão, os EUA e somente os EUA podem manter a hegemonia geopolítica e, assim, proporcionar estabilidade ao mundo. Quando os Estados Unidos falam de “ordem baseada em regras” não estão falando do sistema da ONU ou do direito internacional. Estão falando de uma ordem liderada pelos estadunidenses, na qual Washington, em consulta com seus aliados, escreve as regras globais.

De acordo com essa visão, a China permanece muito atrás dos Estados Unidos em todas as principais categorias de poder: econômico, militar, tecnológico e de soft power. A Rússia é vista como uma potência regional em declínio, quase extinta, embora com um grande arsenal nuclear. Nesta escola de pensamento, a ameaça nuclear pode ser contida por meio de contra-ameaças e dissuasão. A hegemonia americana garantirá que a Rússia não desempenhará nenhum papel geopolítico importante no futuro. Essa visão hegemônica, conhecida como neoconservadorismo nos Estados Unidos, encontra sua expressão em uma ampla gama de políticas.

A guerra na Ucrânia constitui uma parte central da estratégia de Washington para a continuação da hegemonia dos EUA. Enquanto os formuladores de políticas americanos presumivelmente lamentam a destruição e as mortes na Ucrânia, eles também dão as boas-vindas à oportunidade de empurrar a ampliação da OTAN para o leste e sangrar a Rússia por meio de uma guerra de desgaste. A elite política de Washington não tem pressa em acabar com a guerra.

Também não há qualquer ansiedade em examinar mais profundamente as raízes da guerra, que certamente foi provocada em parte pelos Estados Unidos em sua batalha com a Rússia pela influência política e militar na Ucrânia. Essa competição ficou acirrada depois que George W. Bush pressionou a OTAN em 2008 a se comprometer com sua ampliação para a Ucrânia e a Geórgia. Isso fazia parte de um plano de jogo de longo prazo, delineado por Zbigniew Brzezinski em seu livro de 1997, The Grand Chessboard [O grande tabuleiro de xadrez], para acabar com a capacidade da Rússia de projetar seu poder na Europa Ocidental, no Mediterrâneo Oriental ou no Oriente Médio.

A Rússia presumivelmente lutará a todo custo para impedir a expansão da OTAN para a Ucrânia. Quando o presidente pró-Rússia da Ucrânia, Viktor Yanukovych – que era favorável à neutralidade da Ucrânia em vez da ampliação da OTAN – foi derrubado com apoio financeiro e logístico americano no início de 2014, a guerra russo-ucraniana estourou. A Rússia retomou a Crimeia e os separatistas pró-Rússia reivindicaram parte do Donbas. A guerra aumentou desde 2014, de forma mais dramática com a invasão da Rússia em 24 de fevereiro de 2022. Por sua vez, o G7 e a OTAN se comprometeram a apoiar a Ucrânia pelo tempo que for necessário, com o objetivo de enfraquecer a Rússia a longo prazo.

Além de financiar e armar a Ucrânia, os Estados Unidos adotaram agora a estratégia de conter a China, ou seja, impedir o contínuo progresso econômico e tecnológico da China. A política de contenção em relação à China imita a estratégia americana em relação à União Soviética entre 1947 e 1991. As políticas de contenção anti-China incluem aumentos de tarifas sobre produtos chineses; ações para paralisar empresas chinesas de telecomunicações de alta tecnologia, como Huawei e ZTE; proibições de exportação de semicondutores de ponta e equipamentos de fabricação de semicondutores para a China; dissociar as cadeias de suprimentos americanas da China; a criação de novos blocos comerciais, como o Indo-Pacific Economic Framework, que exclui a China; e uma “lista de entidades” de empresas chinesas que são, de uma forma ou de outra, barradas nas finanças, comércio e tecnologia dos EUA. Na frente militar, os Estados Unidos estão formando novas alianças anti-China, como AUKUS, com o Reino Unido e a Austrália, neste caso para criar uma nova frota de submarinos nucleares e uma base no norte da Austrália para policiar o Mar do Sul da China. Os Estados Unidos também pretendem intensificar seu apoio militar a Taiwan, ou segundo a metáfora neoconservadora: transformar Taiwan em um “porco-espinho”.

A principal visão concorrente da geopolítica hoje é a teoria da Competição Hegemônica, com foco no embate iminente entre os Estados Unidos e a China. Esta teoria é realmente uma variante da teoria da Estabilidade Hegemônica. Argumenta que os Estados Unidos podem perder seu status hegemônico para a China e que, de qualquer forma, uma competição acirrada entre os dois países é virtualmente inevitável.

A principal falha da visão da Competição Hegemônica é sua crença de que a China quer se tornar a próxima hegemonia global. É verdade que os líderes chineses não confiam nos Estados Unidos nem na Europa, especialmente em vista do sofrimento da China nas mãos de potências imperiais externas durante os séculos XIX e XX. A China almeja um mundo em que os Estados Unidos não sejam hegemônicos. No entanto, há pouca evidência persuasiva de que a China queira substituir os Estados Unidos como país hegemônico ou que possa fazê-lo, mesmo que assim o desejasse.

Considere-se que a China ainda é um país de renda média, com décadas pela frente necessárias para se tornar um país de alta renda. Considere-se também que a população da China provavelmente diminuirá acentuadamente nas próximas décadas. Nesse contexto, a China também envelhecerá acentuadamente, com a idade média subindo de 47 anos hoje para 57 anos em 2100, segundo projeções da ONU. Finalmente, considere-se que a política da China ao longo dos séculos nunca buscou um império global. O Reino do Meio sempre foi suficiente. A China não lutou em uma guerra estrangeira em 40 anos e tem apenas algumas pequenas bases militares no exterior, em comparação com as centenas operadas pelos militares dos EUA.

Mais do que aspirações hegemônicas da China, que acredito não existirem de fato, o verdadeiro problema é o chamado “Dilema de Segurança”, segundo o qual tanto a China quanto os Estados Unidos interpretam erroneamente as ações defensivas do outro lado como sendo ofensivas, caindo assim em um modo que só pode produzir uma escalada. Por exemplo, enquanto a China constrói suas forças armadas no Mar da China Meridional, com o objetivo de proteger suas rotas marítimas vitais, Washington interpreta isso como uma ação agressiva da China voltada para os aliados americanos na região. À medida que os Estados Unidos formam novas alianças, como a AUKUS, e fortalecem as alianças existentes, a China as considera tentativas hegemônicas flagrantes de conter a China. Mesmo quando determinadas ações são verdadeiramente defensivas por natureza – e nem todas são – elas são prontamente mal interpretadas pelo outro lado. Esta é de fato uma das principais razões pelas quais a Armadilha de Tucídides facilmente dá origem à guerra: não porque os dois países queiram a guerra, mas porque tropeçam nela ao interpretar mal as ações do outro lado.

A teoria do Declínio Hegemônico é um pouco diferente. Em vez de enfatizar a batalha entre a China e os Estados Unidos, essa terceira teoria enfatiza as implicações do declínio da hegemonia estadunidense, que ela dá como certo. A teoria do Declínio Hegemônico começa com a ideia de que o mundo precisa de bens públicos globais, como políticas de estabilização macroeconômica, controle de armas e esforços comuns contra as mudanças climáticas induzidas pelo homem. Para garantir esses bens públicos, de acordo com essa teoria, um país hegemônico deve arcar com o ônus de fornecer os bens públicos globais. No século XIX, a Grã-Bretanha subscreveu a Pax Britannica. Desde 1950, os Estados Unidos fornecem os bens públicos globais. No entanto, com o declínio gradual dos Estados Unidos, não há mais um país hegemônico para garantir a estabilidade global. Assim, enfrentamos um mundo de caos, não por causa da competição EUA-China, mas porque nenhum país ou região pode coordenar esforços globais para fornecer bens públicos globais.

Charles Kindleberger, o historiador econômico do MIT, foi o criador e proponente mais persuasivo da teoria do Declínio Hegemônico, aplicando-a à Grande Depressão em seu perspicaz livro The World in Depression: 1929-1939 [A depressão global: 1929-1939] (1973). Ele argumentava que, quando a Grande Depressão chegou, a cooperação global foi necessária para lidar com dívidas internacionais, bancos falidos, déficits orçamentários e o padrão-ouro. No entanto, o Reino Unido estava gravemente enfraquecido pela Primeira Guerra Mundial e pela prolongada crise econômica do final da década de 1920 e, portanto, foi incapaz de agir como país hegemônico. Os Estados Unidos, infelizmente, ainda não estavam prontos para assumir esse papel, e o fariam apenas após a Segunda Guerra Mundial.

Todas as três teorias hegemônicas presumem que a existência de um país hegemônico é central para a geopolítica e assim permanecerá. A primeira assume que os Estados Unidos continuam a ser hegemônicos; a segunda assume que os Estados Unidos e a China estão competindo pela hegemonia; e o terceiro lamenta a ausência de um país hegemônico justamente quando precisamos de um. Essa terceira teoria, embora declare que os EUA já eram, de alguma forma ainda os lisonjeia: après l’Etats Unis, le deluge [após os EUA, o dilúvio]

A teoria realista nega o papel central da hegemonia e talvez questione se os EUA em algum momento tenham verdadeiramente exercido uma hegemonia global. Segundo os realistas, a paz requer equilíbrio hábil entre as grandes potências. A essência da teoria realista é que nenhum poder único pode ou deve presumir ditar as regras para o resto; todos precisam administrar suas políticas com prudência para evitar provocar um conflito com os outros poderes. Líderes realistas como Henry Kissinger e John Mearsheimer, por exemplo, pedem um fim negociado para a Guerra da Ucrânia, argumentando sabiamente que a Rússia não vai desaparecer do mapa, nem perder sua importância geopolítica, e enfatizando que a guerra foi parcialmente provocada pelo passo em falso estadunidense que ultrapassou os limites da Rússia, notadamente em relação à expansão da OTAN para a Ucrânia e a Geórgia.

Os realistas defendem a paz por meio da força, armando os aliados conforme necessário e ficando em guarda contra ações agressivas de adversários em potencial que cruzem os limites dos EUA. A paz, na visão realista, é alcançada por meio do equilíbrio de poder e do potencial desdobramento da força, não por meio de boa vontade ou de ideais elevados. A dissuasão importa. A China é um concorrente que deve ser igualado economicamente, tecnologicamente e militarmente, mas não é necessariamente um inimigo militar. A guerra pode ser evitada. O modelo histórico mais famoso para os realistas é a descrição de Kissinger do Concerto da Europa no século XIX, que manteve a paz durante a maior parte do século.

O maior desafio enfrentado pelos realistas é que manter um equilíbrio de poder é muito difícil quando as capacidades relativas das grandes potências estão em grande escalada. O Concerto da Europa fracassou principalmente porque duas grandes potências estavam em ascensão econômica. A Alemanha ultrapassou a Grã-Bretanha em PIB (nas estimativas de Maddison) em 1908. O império russo também estava crescendo economicamente, com um PIB do tamanho da Alemanha de 1870 em diante. A Grã-Bretanha temia a ascensão da Alemanha, e a Alemanha temia uma guerra em duas frentes contra a Grã-Bretanha e a Rússia, que é exatamente o que aconteceu em 1914. De acordo com muitos historiadores, a Alemanha pressionou pela guerra em 1914 com a convicção de que atrasá-la significaria enfrentar uma Rússia mais poderosa no futuro.

Geopolítica como solucionadora de problemas?

O problema essencial dessas quatro teorias geopolíticas predominantes é que elas veem a geopolítica quase inteiramente como um jogo de ganhar e perder entre as grandes potências, e não como uma oportunidade de reunir recursos para enfrentar crises em escala global. A teoria do Declínio Hegemônico reconhece a necessidade de bens públicos globais, mas sustenta que apenas um país hegemônico pode fornecê-los.

A teoria multilateralista parte da premissa de que o mundo precisa urgentemente de cooperação geopolítica para resolver desafios de escala global, como mudanças climáticas induzidas pelo homem e instabilidade financeira, e para evitar a guerra entre as grandes potências. O cerne da visão multilateralista é a crença de que os bens públicos globais podem ser fornecidos cooperativamente pelos estados membros da ONU, e não por um único país hegemônico. O foco está no papel construtivo do direito internacional, das instituições financeiras internacionais e dos tratados internacionais, tudo sob a estrutura da Carta das Nações Unidas e da Declaração Universal dos Direitos Humanos e apoiado por instituições da ONU.

Essa visão é frequentemente considerada irrealista e descartada como muito idealista. Existem muitas razões plausíveis para dúvidas: a ONU é muito fraca; os tratados são inexequíveis; países pegam carona em acordos globais; e o poder de veto dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança (China, França, Rússia, Reino Unido e Estados Unidos) paralisa a ONU. Esses pontos são verdadeiros, mas não decisivos, na minha opinião. A cooperação pode ser fortalecida nesse caso se for mais bem compreendida. Mais importante ainda, nem as três teorias hegemônicas nem o realismo oferecem soluções para nossas crises globais.

A teoria da Estabilidade Hegemônica falha porque os Estados Unidos não são mais fortes o suficiente e interessados em arcar com o ônus de fornecer estabilidade hegemônica. No final da década de 1940, os Estados Unidos estavam prontos para financiar e apoiar bens públicos globais, incluindo o estabelecimento da ONU, da Instituição de Bretton-Woods, do GATT [Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio], do Plano Marshall e outros. Hoje, os EUA sequer ratificam a grande maioria dos tratados da ONU. Os EUA quebram as regras do GATT, evita a descarbonização, subfinancia as instituições da ONU e de Bretton Woods e dá uma ninharia de sua renda nacional bruta (0,16%) como ajuda externa.

A teoria da Competição Hegemônica falha porque pressagia conflito em vez de soluções para problemas. É a melhor explicação para a turbulência global, mas não uma estratégia para a paz, a segurança ou a solução para os problemas globais. É uma predicação de crise. É crucial lembrar que tanto Esparta quanto Atenas sofreram com as Guerras do Peloponeso.

A abordagem realista é muito mais precisa, praticável e útil do que as teorias hegemônicas. No entanto, a abordagem realista também sofre de três grandes fraquezas. Primeiro, embora exija um equilíbrio de poder para manter a paz, não há equilíbrio de poder permanente. Equilíbrios passados ​​rapidamente se tornam desequilíbrios atuais.

Em segundo lugar, como acontece com a teoria dos jogos que sustenta o realismo, tanto a teoria dos jogos quanto o realismo subestimam o potencial de cooperação na prática. Na abordagem realista, a não cooperação entre as nações é considerada o único resultado viável da geopolítica porque não há poder superior para impor a cooperação. No entanto, na teoria experimental dos jogos e na geopolítica prática, há muito mais espaço para uma cooperação bem-sucedida (por exemplo, no jogo experimental Dilema do Prisioneiro) do que a teoria prevê. Este ponto foi enfatizado por décadas por Robert Keohane e também foi enfatizado pelo falecido John Ruggie.

Em terceiro lugar, e mais importante, o realismo falha porque fracassa em resolver o problema dos bens públicos globais, necessários para lidar com crises ambientais, crises financeiras, crises de saúde e outras. Nenhuma hegemonia isolada fornecerá os investimentos globais necessários. É necessária uma abordagem cooperativa global para compartilhar os custos e distribuir amplamente os benefícios.

O roteiro para alcançar o multilateralismo do século XXI requer um ensaio separado. Em suma, o multilateralismo do século XXI deve se basear em dois documentos fundamentais, a Carta da ONU e a Declaração Universal dos Direitos Humanos, e na família de instituições da ONU. Os bens públicos globais devem ser financiados por uma grande expansão dos bancos multilaterais de desenvolvimento (incluindo o Banco Mundial e os bancos regionais de desenvolvimento) e do FMI. O novo multilateralismo deve ser baseado em metas globalmente acordadas, notadamente o Acordo do Clima de Paris, o Acordo de Biodiversidade e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Deve colocar as novas tecnologias de ponta, incluindo a conectividade digital e a inteligência artificial, no âmbito do direito internacional e da governança global. Deve reforçar, implementar e desenvolver os acordos vitais sobre controle de armas e desnuclearização. Por fim, deve buscar força na antiga sabedoria das grandes tradições religiosas e filosóficas. Há muito trabalho pela frente para construir o novo multilateralismo, mas é o próprio futuro que está em jogo.

 

Veja em: https://outraspalavras.net/geopoliticaeguerra/a-inusitada-mas-possivel-geopolitica-do-comum/

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