Familiares das 270 vítimas seguem buscando a condenação de responsáveis por rompimento da barragem da Vale. “A gente se sente abandonado”, dizem atingidos por desastre ambiental e social.
Por: Nádia Pontes | Créditos da foto: Rodney Costa/dpa/picture aliance. Bombeiros em ação após a tragédia de Brumadinho. Quatro anos depois, busca por três pessoas ainda não identificadas continua
Todos os dias, Maria Regina da Silva encara uma das fotos da filha espalhadas pela casa e diz: “Vai haver justiça.” Priscila Elen Silva, a mais velha de cinco filhos, tinha 29 anos quando morreu soterrada pelos rejeitos da barragem B1 da mina Córrego do Feijão, da Vale, em Brumadinho, em 25 de janeiro de 2019.
Em meio à tristeza, Maria Regina diz ter recebido um sopro de esperança quatro anos após a tragédia. Depois de idas e vindas do processo criminal, a Justiça Federal em Minas Gerais entendeu que 15 funcionários e um ex-diretor-presidente da mineradora e da TÜV Süd, empresa alemã que forneceu o atestado de estabilidade da estrutura que rompeu, devem ser julgados pelas acusações de homicídio qualificado.
“A gente também fala pelo Lorenzo e pela Maria Elisa, os nenéns que não nasceram, que estavam na barriga das mães que foram mortas”, afirma Maria Regina, uma das diretoras da Associação dos Familiares de Vítimas e Atingidos pelo Rompimento da Barragem Mina Córrego do Feijão Brumadinho (Avabrum), que representa as 270 pessoas mortas no desastre.
Para honrar a memória da filha, que trabalhava há dez anos na Vale, Maria Regina depôs também em Munique, cidade alemã que julga um outro processo contra a TÜV Süd. “Quero a condenação, e acho que isso acontecerá mais rapidamente na Alemanha do que aqui”, comenta.
Com 58 anos de idade, ela viu pais de vítimas da tragédia morrerem antes que o processo criminal avançasse. Determinada a nunca deixar de falar sobre o episódio trágico que matou Priscila, identificada pelos bombeiros 20 dias após o tsunami de rejeitos, ela lamenta a impunidade.
“Só quem esperou uma ligação do Instituto Médico Legal, só quem recebeu um corpo dilacerado, só quem não pôde abrir o caixão do filho, só quem não pôde se despedir sabe o que é esse crime”, diz
Abalos à saúde mental e ambiental
Andrea Morais, professora que cruzava o Córrego do Feijão para chegar à escola onde trabalhava, perdeu duas alunas na tragédia. Ela assumiu um papel informal de psicóloga diante do adoecimento mental de muitos, e diz que mesmo as tentativas de reparo financeiro da Vale não funcionam.
“Há muita incoerência. Eu recebi indenização, mas minha irmã que trabalhava na mesma escola e fazia o mesmo trajeto que eu, por exemplo, não recebeu. Não entendemos isso, e já estamos cansados de pedir a correção”, aponta Morais, ressaltando que nada se compara à dor da perda de amigos e familiares.
Segundo as assessorias técnicas independentes que prestam serviço aos atingidos em busca de uma reparação justa, o luto coletivo e os danos à saúde mental também são identificados nos estudos.
“Os dados mostram aumento considerável no uso de medicamentos para controle de ansiedade e depressão e na utilização do Sistema Único de Saúde”, pontua Isis Táboas, coordenadora em Brumadinho da Associação Estadual de Defesa Ambiental e Social (Aedas), assessoria técnica que auxilia moradores de Brumadinho, Betim, Mário Campos, São Joaquim de Bicas, Igarapé e Juatuba, chamadas de regiões 1 e 2.
A saúde ambiental e seu efeito nas pessoas do entorno também são preocupantes. “Encontramos uma série de irregularidades nas concentrações de metais pesados, principalmente nas regiões mais próximas ao rompimento ou às obras de reparação. Isso pode provocar doenças respiratórias e dermatológicas”, adiciona Táboas.
Contaminação e vidas comprometidas
A queixa sobre a qualidade da água do rio Paraopeba, na rota dos 13 milhões de metros cúbicos de rejeitos que vazaram da barragem, vem também de locais mais distantes do epicentro da catástrofe ambiental.
A mais de 260 quilômetros da barragem, pescadores na represa de Três Marias não conseguem mais vender peixe. “Os peixeiros de Brasília e de Belo Horizonte que vinham aqui antes para comprar da gente desapareceram. Ninguém quer comprar nosso peixe com medo de contaminação”, diz a pescadora Flávia*.
A pesca na represa não está proibida, mas uma análise feita pelo Instituto Guaicuy, assessoria técnica que atua nas regiões 4 e 5, encontrou alterações nas concentrações de metais como alumínio, arsênio, bário, cádmio, chumbo, cobre, cromo, ferro, manganês, mercúrio, níquel, selênio e zinco em 1.209 amostras estudadas.
A cada dez fígados de peixes analisados, oito apresentaram algum elemento acima dos limites da legislação ambiental. Quanto aos filés, três em cada dez tinham algum elemento químico acima do permitido.
A quantidade de curimatã, corvina, piranha, tucunaré, as espécies mais pescadas, caiu drasticamente. “Antes eram até 250 quilos por dia. A gente pega agora uns 5 quilos”, lamenta a pescadora.
Assim como Flávia, Amilson Carlos Pereira, pescador no mesmo local, nunca recebeu indenização da Vale. “O rompimento afetou diretamente a minha profissão. A gente não consegue mais vender o peixe. A gente também adoece em ver todo o estrago na natureza”, diz.
“A gente se sente abandonado”
Como Pereira e Flávia, muitos atingidos reclamam por não estarem no Programa de Transferência de Renda, parte da reparação que a Vale deve aos atingidos e que atualmente é gerido pela Fundação Getúlio Vargas (FGV).
“É como se a Vale tivesse terceirizado suas responsabilidades. A gente faz um monte de reunião com esse pessoal da FGV, mas nada acontece. Eles dificultam tudo, querem comprovantes de residência difíceis de apresentar quando se mora na zona rural”, reclama Flávia.
Ana Alice Hermisdorff, moradora da comunidade de Padre João, em Esmeraldas, diz que o crime se estende e afeta drasticamente toda a região da calha do Paraopeba. “A gente acaba sendo esquecido. Não temos mais turismo, não tem pesca, isso afeta nossa economia. Temos medo das cheias, que ficaram mais sujas, com muita lama. A gente se sente abandonado.”
Savio*, que comprou um sítio na região afetada em 2014 a um quilômetro do rio Paraopeba, teve a mina de água comprometida e viu sua propriedade desvalorizar após o rompimento. Ele faz tratamento contra um câncer de garganta e nunca recebeu água potável da Vale.
“Eu sinto muito a injustiça. Eu recebo doação dos meus vizinhos de sítio que recebem água potável da mineradora. Eu nunca recebi nada”, conta.
Rio Paraopeba impróprio
Mônica Campos, bióloga e supervisora de pesquisas ambientais do Instituto Guaicuy, afirma que os quatro anos de acompanhamento permitem ter uma visão mais completa da situação do rio Paraopeba pós-rompimento da barragem.
“Nossas análises mostram que existem alterações, violações às normas, aos limites estabelecidos pelas legislações quanto ao alumínio, ferro, manganês, que são elementos metálicos que compõem os rejeitos”, explica Campos, adicionando que o quadro se estende para além da barragem de Retiro Baixo, diferentemente do que é afirmado pela Vale.
A qualidade da água piora no período chuvoso, quando o rejeito depositado é remexido. “Com o rompimento, as concentrações atingiram picos 15 vezes maiores que o permitido. A de ferro, que estava abaixo do limite estabelecido, subiu seis vezes. A de manganês dobrou”, exemplifica Campos.
Hugo Sales, especialista em gerência da qualidade de água e avaliação de risco à saúde do Núcleo de Assessoria às Comunidades Atingidas por Barragens (Nacab), assessoria técnica da região 3, obteve resultados semelhantes em estudos independentes feitos sob coordenação de sua equipe.
A Vale, por outro lado, tentou convencer moradores durante reuniões de que a situação não era tóxica, alegam fontes ouvidas pela reportagem.
“A gente vê que a Vale lança mão desses resultados que, do ponto de vista do Nacab, são questionáveis, para trazer essa visão para as pessoas de que elas não são atingidas, ignorando os direitos delas”, comenta Sales.
O estudo em questão encomendado pela mineradora conclui que o solo na região 3, que abriga 10 municípios da bacia do Paraopeba, não estaria contaminado. E não há menção clara sobre a qualidade da água.
Sales, do Nacab, e Campos, do Guaicuy, reforçam a recomendação do Instituto Mineiro de Gestão das Águas (Igam). “A despeito de qualquer posicionamento da Vale, o Igam mantém a recomendação de não utilização de água bruta até a barragem de Retiro Baixo. As pessoas às vezes caem na narrativa de que não tem mais contaminação e entendem que o uso está liberado, mas não está”, ressalta Campos.
O que diz a Vale
Questionada sobre as denúncias feitas pelos atingidos que recebem apoio das assessorias técnicas, a Vale respondeu às perguntas da DW por e-mail.
Sobre a falta de pagamento emergencial a moradores das zonas atingidas, a empresa alega que “desde novembro de 2021, passaram a valer os termos do Programa de Transferência de Renda, implementado e gerido pelas instituições de Justiça, sem participação da Vale, conforme estabelecido no Acordo de Reparação Integral”.
Em relação à qualidade da água do rio Paraopeba, a mineradora mencionou a recomendação feita pelo Igam sobre a não utilização da água bruta no trecho que abrange os municípios de Brumadinho até o limite da Usina hidrelétrica Retiro Baixo, em Pompéu. Disse ainda que segue o plano de recuperação da bacia, iniciado em 2019, “em conjunto com a implantação de uma série de medidas emergenciais para evitar que os rejeitos continuassem sendo carreados para o rio Paraopeba”.
Segundo a empresa, 700 núcleos familiares de 16 municípios da bacia recebem água de caminhões-pipa entre Brumadinho e Pompéu. “É elegível para essa entrega população que não possuía água encanada e captava o recurso diretamente no rio Paraopeba, além de usuários de poços artesianos e cisternas a até 100 metros da margem”, informou.
Memorial para as vítimas
Na chamada zona quente, onde as 270 pessoas morreram em consequência do rompimento, agentes dos bombeiros seguem a busca por três pessoas ainda não identificadas. As partes de corpos que forem localizadas poderão ir para uma sessão especial do memorial em fase de finalização, num terreno que pertence à Vale, muito perto da antiga barragem que colapsou.
Maria Regina da Silva espera que a Avabrum coordene o espaço em questão. “A Avabrum está num impasse com a Vale pela documentação do memorial. Memorial que só está lá porque ela decidiu matar as pessoas. Porque se ela tivesse decidido tirar as pessoas e parar a mina, a gente não precisaria de um memorial. Então não tem coerência ter a Vale dentro da gerência”, argumenta.
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