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Brasil e Argentina: os porquês do Sur, moeda comum

Desdolarizar as relações financeiras entre os dois países, pode ser um grande passo para a região e o mundo. Mas é preciso evitar o risco de uma moeda-prisão, regida por banqueiros e tecnocratas, como o euro

Por: Antonio Martins

Ao viajar à Argentina apenas três semanas depois de empossado, e ao comparecer hoje (24/1) a uma reunião emblemática da Celac – a Comunidade de Estados Latinoamericanos – Lula procura enfrentar um grande retrocesso. A integração latinoamericana regrediu demais (e em todos os aspectos) nos últimos dez anos, quando uma onda de governos de direita dominou a região. A Unasul – União das Nações Sulamericanas, projeto mais ambicioso, de unidade política – está semimorta. O próprio comércio entre os países refluiu, conforme mostra o gráfico abaixo, relativo às relações entre Brasil e Mercosul. Governantes como Bolsonaro e Maurício Macri (Argentina) jamais esconderam sua predileção por laços com Washington. Neste contexto, a possível criação do Sur, uma moeda comum para trocas entre fronteiras, desperta grande atração.

Uma arquitetura financeira internacional anacrônica obriga os países latinoamericanos a recorrer ao dólar, para se relacionar economicamente entre si mesmos. Cada operação de câmbio implica uma comissão paga a um intermediário financeiro, mas este é apenas o menor problema. Quando os dólares tornam-se escassos num dos países (é o caso hoje da Argentina, obrigada ao pagamento de uma dívida criminosa junto ao FMI), o comércio regional, que seria um respiro, reflui. E quem depende de dólares está sujeito a sanções, bloqueios e sequestros dos Estados Unidos. Elas atingem neste momento Cuba e Venezuela, de quem foram congelados 20 bilhões de dólares.

alternativa esboçada por Lula e Alberto Fernández é o Sur, uma unidade comum de troca. Os estudos necessários para criá-lo começarão em seguida. Projeta-se que, quando existir, ele funcionará como uma referência para transações econômicas internacionais. Uma empresa argentina interessada comprar máquinas no Brasil não precisará mais ir atrás de dólares. Usando como base as cotações do Sur e das moedas nacionais, depositará o valor correspondente em pesos. O vendedor brasileiro receberá em reais. Simples assim – e a intermediação imperial da moeda estadunidense terá sido contornada.

Nas condições atuais, ninguém escapa à hegemonia do dólar, que ainda reflete a ordem internacional surgida no pós-II Guerra. Como Washington emite dinheiro segundo seus próprios interesses, isso lhe dá vantagens incomparáveis. É essencial, por exemplo, para financiar seu imenso orçamento militar. Nos últimos anos tem se acelerado a busca, como alternativa, de um sistema monetário multilateral. O processo é muito demorado, pois depende de que os agentes econômicos confiem num dinheiro novo, inclusive como expressão de sua riqueza. A China, que tem potência para iniciar a construção, empenha-se. O surgimento de blocos regionais desdolarizados (como o que pode nascer em torno do Sur) pode ser parte da montagem, como se vê neste ensaio. E uma novidade recente – a aparição das moedas digitais emitidas por bancos centrais será provavelmente um forte acelerador.

Há uma grande armadilha a evitar, porém: a tentação de um novo euro, com a qual flertou o ministro da Economia argentino Sergio Massa. Nas condições atuais, uma moeda assim só poderia ser gerida por uma entidade tecnocrática, sem vínculos com as instituições democráticas dos países-membros e, portanto, submissa à aristocracia financeira. Quem decidira as condições em que seria emitida? Os Estados nacionais perderiam a condição de usar o dinheiro como instrumento de política – emitindo-o para financiar serviços públicos de excelência ou a transição energética, por exemplo. É o que já ocorre na Europa, onde o fim das moedas nacionais é uma das causas maiores do declínio do Estado de bem-estar social.

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Embora obscurecida pelo debate em torno da moeda única, a agenda de Lula em Buenos Aires é vasta. Medidas óbvias de integração, negligenciadas durante mais de dez anos, estão sendo retomadas. Se prosperarem, a Argentina poderá, por exemplo, escoar para o Brasil o gás natural que extrai do campo de Vaca Muerta, no norte da Patagônia – e receber, em contrapartida, eletricidade brasileira. Brasília, que hoje tem balança comercial positiva e fartas reservas em divisas, tem condições de ajudar Buenos Aires a livrar-se da escassez de dólares. Em contrapartida, ao invés de comprarem insumos industriais dos EUA ou da China, os argentinos poderão fazê-lo aqui.

Ainda mais importantes são as perspectivas de reconstrução da integração lationamericana. À reunião de cúpula da Celac, hoje em Buenos Aires, comparecerão entre outros – além de Alberto Fernández e Lula — Gustavo Petro (Colômbia), Gabriel Boric (Chile), Miguel Diaz-Camel (Cuba) e Luís Alberto Lacalle (Uruguai). Há muito, o ex-chanceler Celso Amorin vem afirmando que a superação do fascismo e a reconstituição de um governo democrático no Brasil poderia produzir o ressurgimento da integração. É o que se espera – e valerá acompanhar de perto — a partir de agora.

 

Veja em: https://outraspalavras.net/descolonizacoes/brasil-e-argentina-os-porques-do-sur-moeda-comum/

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