Desde o século XIX, os EUA alardeiam um “perigo amarelo”, mas preconceito recrudesceu (e ganhou o mundo) após a revolução de Mao. Por trás de paranoias anticomunista, está o temor que a China abale sua hegemonia — geopolítica e comercial
Por: Diego Pautasso | Imagem: Facing History and Ourselves. Caricatura de 1898, retratando o imperialismo e o racismo colonial
Nessa jornada de pesquisa e difusão científica sobre a temática da China, não raro encontramos todo o tipo de preconceito. Alguns são simples desconhecimento; já outros revelam xenofobia de graus variados. E se expressa das mais variadas formas, desde os clichês sobre as formas de governo, a desconfiança sobre quaisquer números oficiais, os preconceitos contra produtos até manifestações de hostilidade – que ficaram escrachadas no governo Bolsonaro.
A genealogia desse processo remonta ao século XIX. O Perigo Amarelo foi uma das facetas da expansão do capitalismo e de seus processos coloniais, cuja natureza incluiu sistemáticos processos de desumanização de raça, gênero e classe para permitir a livre exploração. O Perigo Amarelo é uma das consequências da supremacia branca e do seu fardo colonial.
Enquanto pilhava a China em seu Século de Humilhações (1839-1949), as potências capitalistas produziam acelerada diáspora chinesa. Milhares destes foram recrutados para trabalhar lado a lado com afro-americanos nas plantações de açúcar após a Guerra Civil. Muitos trabalhadores chineses (e indianos), os chamados coolies, acabaram servindo também como mão de obra servil para construir as ferrovias que integraram o território estadunidense no contexto da Far West. As tensões trabalhistas (e os salários mais baixos dos imigrantes) e mudanças nas identidades culturais-nacionais acabaram por reforçar a xenofobia do WASP (branco, anglo-saxão e protestante) contra negros, latinos e chineses, sobretudo. Os chineses também foram objeto de leis e políticas anti-asiáticas sobre imigração e naturalização por quase um século. As leis de exclusão codificaram a ideia de que os chineses eram inassimiláveis. Começou com o Ato de Exclusão de Chineses (1882) e chegou ao Ato de Exclusão de Asiáticos (1924), que vigorou até 1965. Sob a narrativa do American Way of Life e/ou do Self Made Man e ao som de Elvis Plesley, os EUA mantinham legislações segregacionistas contra negros e asiáticos.
O racismo colonial interno (Far West) logo iria se globalizar com o imperialismo estadunidense. As alegações da supremacia branca “cientificamente” sustentam o excepcionalismo (presunção da virtude) que, por sua vez, está na raiz de noções de “nação indispensável”, “polícia do mundo”, “império da liberdade” e “líder do mundo livre”. É esse direito autoconferido que legitima as intervenções globais sob alegação de exportar modelos (de mercado ou democracia).
Como toda gramática ideológica, estão repletas de metamorfoses e, portanto, oscilam conforme os contextos históricos e as dinâmicas de poder, visando a ocultar e/ou legitimar interesses. O Perigo Amarelo também foi maleável e mobilizado conforme os objetivos de seu tempo. Ora se voltou contra chineses, ora indianos, ora japoneses. Os japoneses passaram da estigmatização racial à admiração a partir do “ingresso no bloco ocidental”. O mesmo Japão que mostraria que racismo não se refere apenas a cor da pele, pois perpetrou o mais violento e virulento ataque imperialista à China. Para quem desconhece o assim chamado holocausto esquecido, recomendo dois filmes sobre as agressões imperialista e racista do Japão à China: Flores do Oriente e Campo 731 – Bactérias, a Maldade Humana.
Com a rendição do Japão em 1945, surge um novo terror: em 1949, acontece a Revolução Comunista Chinesa. À medida que a China se transforma num competidor a partir da virada do século XX-XXI, a narrativa da Ameaça Chinesa passa a entrelaçar ignorância, racismo e muito anticomunismo. Durante a pandemia de covid-19, os chineses foram representados como fonte de ameaça biológica e contagiosa para o Ocidente.
Sutis e escancaradas, conscientes ou não, a Ameaça Chinesa é arrebatadora. Ora resumindo a China pré-moderna ao “despotismo oriental”. Ora destilando clichês a la Guerra Fria de forma caricata como país “totalitário” – sem que se conheça minimamente o funcionamento institucional do país. Mais comum ainda é desacreditar os dados e fontes chinesas ou até fantasiar sobre as consequências do domínio chinês sobre as comunicações através do 5G – que, ironicamente, estão refém da vigilância estadunidense.
Assim, as políticas estadunidenses de contenção da China, num contexto de erosão de sua hegemonia e crescente competição internacional, tenderão a recrudescer a linguagem do Império voltada a construir a imagem da China como grande ameaça, mesclando da caricatura mais tola, passando pelo ódio racialista e culminando no paranoico anticomunismo.
Veja em: https://outraspalavras.net/geopoliticaeguerra/ameaca-chinesa-raizes-de-um-racismo-colonial/
Comente aqui