Clipping

Elogio do artesanato

O entorno é a matéria-prima do artesão. A arte é seu sustento, mas também expressão das riquezas invisíveis da comunidade. E do viver coletivo. Talvez esse universo sensorial possa dar pistas para uma vida não-alienada

Por: Antonio Lafuente | Tradução: Rôney Rodrigues

O que resta de um produto artesanal local fabricado a milhares de quilômetros de distância? Não é uma pergunta retórica, já que grande parte dos alebrijes, dos guadalupes e até dos chiles mexicanos vêm da China. E o mesmo se pode dizer dos chapéus vueltiao colombianos, dos talheres Albacete de Espanha ou das bonecas de alpaca peruanas. Se uma peça for replicável, encontraremos sempre uma maneira de precarizar sua produção. E, em seguida, proteger os resultados em vez dos processos pode significar a rápida destruição deste patrimônio popular.

A noção de indústrias criativas ou, como também são reconhecidas, de economia laranja não pára de nos mostrar fissuras e inconsistências que a tornam questionável. Sua promessa é imaginária e pouco convincente. Precisamos revisitar os fundamentos em que ela se baseia. Tudo indica que, em muitos lugares, ela funciona como outras indústrias extrativistas: retiram riqueza sem consideração, destruindo o ecossistema que a sustentava.

Por outro lado, as indústrias criativas apenas miram aquilo que pode atingir valor no mercado, ignorando os muitos artesanatos que reivindicam as diferentes formas de nos alimentar, curar ou divertir. A ideia de lucratividade introduz a competição e divide o mundo local entre os bem-sucedidos e os perdedores. Uma minoria aproveita um estilo de vida que destrói progressivamente o entorno social.

Cuidar da comunidade obriga-nos a ter em conta outras dimensões do problema que não sejam as impostas pela necessidade de nos conectar com as regras do mercado. Este texto foi escrito para imaginar outras maneiras de abordar este frágil ecossistema. Não vamos nos contentar em evocar memórias nostálgicas, peças pitorescas, mestres virtuosos e oficinas recônditas. O que nos interessa nestes mundos é a sua condição de respostas situadas e capacidades mobilizadas.

Os artesanatos nos emocionam, mas não podemos deixar de vê-los como parte de algo em rede e que existe porque muitas outras dimensões da vida local também foram infraestruturadas de forma experimental, coletiva e prática. Estamos falando de um mundo que artefactualizou a maneira de morrer, de narrar e de cantar, sem esquecer os modos de cultivar, regar, destilar, fermentar ou conservar, nem devemos desdenhar a relação com outras espécies vivas e seres afins, como os pássaros, rios ou florestas. Todas e todos fazem parte do mesmo mundo e a alienação de qualquer um deles ameaça o ecossistema que os sustenta.

Patrimônios antipáticas

A palavra patrimônio acaba sempre adquirindo um tom reverencial. É um termo que costuma ser reservado para falar de coisas importantes. É constituído por tudo aquilo que queremos legar aos nossos descendentes e que, quando qualificamos de público, preservamos do mercado. Patrimônio era um conceito vinculado ao excepcional, ao excelente ou ao extraordinário. Os bens patrimoniais eram tratados como tesouros, guardados por especialistas, registrados como únicos, expostos com dignidade e reunidos em palácios.

Tudo o que estava relacionado com patrimônio distinguia-se, de alguma maneira, do ordinário, do utilitário ou do abundante. Ir aos museus, então, continua a ser uma maneira de nos reconciliarmos com a nossa condição humana e esquecermos momentaneamente a nossa natureza subordinada, ignorante ou invisível. Os museus, então, mais do que uma vitrine de habilidades exóticos, funcionam como um espaço de cuidados, um lugar onde parte de uma linhagem admirável pode ser reconhecida.

As indústrias culturais, ligadas ao turismo e mais recentemente à educação e ao ócio, estão empenhadas em apresentar-nos estes objetos numa passarela que ensina o que nunca seremos, e não o que merecemos ser. Os museus estão se transformando em espaços mais indecifráveis e grandiloquentes do que abertos e afetivos, embora a cada dia invistam mais na comunicação, extensão e publicidade.

Não é estranho que muitas pessoas olhem para estes objetos como se fossem de outro mundo ou falassem uma linguagem incompreensível. Em suma, são objetos que não nos dizem respeito, não nos exigem e não nos procuram. Estão situados em outro universo linguístico e experiencial. Eles só precisam de nós como espectadores. No seu conjunto representam uma oferta bulímica, exagerada e supérflua. Não é incomum, então, que surjam propostas mais próximas entre si e que, já há algumas décadas, estejamos falando de artesanato e paisagens como coisas que merecem mais atenção.

Culturas do artesanato e heranças empáticas

O artesanato é um mundo conectado à experiência cotidiana. E não dedicaremos mais de uma linha para explicar como eles podem se tornar uma expressão de habilidades que não apenas nos comovem, mas que compreendemos. Os bordados, os bolos, os chapéus, os vestidos e as gravuras fazem parte desse universo secular, anônimo e festivo. Sempre houve quem nos rodeasse que soubesse fazer belezas, versos ou temperos, bem como algumas pessoas que os praticavam de forma mais virtuosa. Todos temos em casa algum pedaço que guardamos como testemunho de algo que valeu a pena viver. Às vezes guardamos para grandes ocasiões, e são coisas que as avós sempre dão um jeito de passar para as netas. Eles transpassam uma coisa, mas acima de tudo um mundo.

Há muitas coisas que poderíamos dizer sobre as culturas artesanais, mas não queremos ser entendiantes nos alongando. Há, no entanto, três características sobre as quais nos deteremos em breve: são a expressão do trabalho bem feito, são a resposta a uma necessidade e são o testemunho de uma riqueza invisível.

Um bom artesão entende os materiais que manuseia e busca sempre uma forma de aproveitá-los ao máximo, de fazê-los dizer coisas diferentes, de compor outras formas ou de dialogar com novos acabamentos. Um artesão nunca sente que está se repetindo porque cada dia é diferente e, em cada movimento, pode surgir alguma singularidade, tanto nos materiais ou procedimentos, como nos mercados ou visitantes. Fazer bem é o normal. É uma expressão da necessidade do que é fiável, do que merece confiança e, em última análise, de tudo o que nos constitui como comunidade. Um artesanato é um dom que cria um nós baseado na fiabilidade de nossas práticas.

Os artesãos vivem do seu trabalho, o que equivale a dizer que atendem uma necessidade que gera um mercado para bens e serviços. Coisas bem acabadas têm que ser funcionais e, de alguma forma, cada objeto oferecido não é apenas útil, mas também aprimora o mundo das capacidades individuais. São objetos que ampliam o universo da sensorialidade, multiplicam as nossas possibilidades e tornam a nossa existência mais confortável. Estamos falando de objetos que, belos ou não, baratos ou não, populares ou não, têm muita política: dizem-nos o que podemos ou não fazer. E isso significa que podemos sempre pedir-lhes que façam mais coisas ou que as façam de uma maneira diferente.

Os artesãos são então uma amostra das capacidades socializadas por uma comunidade: funcionam como um mostruário do melhor de nós mesmos e são a expressão mais viva de uma riqueza invisível. Se um vizinho do povoado faz algo com particular virtuosismo, é lógico que a sua fama se espalhe por toda a região e ele obtenha um notável reconhecimento. Estamos falando de pessoas que conhecem sementes, cogumelos, fermentos, destilações, plantas medicinais, doces ou conservas, entre muitas outras coisas. Estamos falando de uma verdadeira riqueza escondida dos territórios.

Vista com atenção, a soma de todas estas formas de fazer comunidade, melhorar as condições de vida e criar riqueza socializada pode ser considerada como uma trama de pequenas infraestruturas distribuídas que sustenta e alimenta o mundo que simultaneamente as cria. Sustenta o mundo que os cria. É difícil falar de sociabilidade sem nos referirmos às infraestruturas que a tornam possível. A comunidade não é compreendida se separarmos o humano do técnico. E, com efeito, estamos falando de formas relacionais que foram infraestruturadas. Afinal, eles são a maneira de instraestruturar os cuidados.

Não podemos abandonar esta linha de argumentação sem dedicar algumas linhas à música, aos cantos, às histórias, às orações, aos rituais, às festas, aos símbolos, aos duetos, aos espíritos ou aos santos. Não é necessário gastar muitas linhas para afirmar a sua importância. Os acadêmicos chamam-lhe patrimônio imaterial e é verdade que todas estas formas de encontrar-se no espaço público configuram uma teia de dispositivos capazes de regular os tempos e os ritmos para umas relações de produção de natureza mais afetiva do que funcional. Ou, em outras palavras, nos referimos a eventos cuja finalidade é reprodutiva e, consequentemente, nos dão oportunidade de atualizar vínculos, fortalecer negócios e rever rastros.

Falamos de processos reprodutivos porque os produtivos são óbvios. Os artesãos vivem dos objetos que vendem e nas festas as pessoas comem, bebem ou se vestem de maneira especial. Existe um mercado de pequena escala que facilita o fluxo de coisas e uma redistribuição equilibrada de bens. Sempre existiu aquele mercado para produções ou práticas singulares que hoje chamamos de indústrias criativas. A questão da dimensão deste mercado não é uma questão menor porque quando a escala cresce aumenta também o risco de processos de acumulação de riqueza que ameaçam a comunidade aumentando as desigualdades, fomentando a concorrência e facilitando as economias rentistas.

O invisível, o inédito e o intangível

É normal que haja muitas pessoas que queiram proteger este mundo que mal esboçamos. É comum ouvirmos pessoas falando com emoção sobre o capital relacional que essas práticas artesanais criam e mobilizam. Não é incomum então pensarmos neles como se fossem patrimônio. Inclusive, não faltam até museus que tentam se colocar valor. Faz muito sentido que as pessoas tenham orgulho do que acontece na sua cidade e do que os seus vizinhos fazem. Tanto que, como já dito, hoje chamamos de patrimônio. E ao fazê-lo, deixamos de reservar esta palavra ao elitismo e atribuímos-la também ao popular.

Ao qualificá-lo como patrimônio, não estamos apenas dizendo que é muito valioso, mas também o estamos inscrevendo numa categoria administrativa que subordina este mundo a decisões que serão tomadas por especialistas em direito, cultura e economia local. De alguma maneira, esses valores de que falávamos são parcialmente expropriados e convertidos em assunto público e, consequentemente, regulamentados. Nada é gratuito, nem é que a estes mundos locais, artesanais e populares sejam outorgados a condição de bem patrimonial protegido.

Não está claro o que está protegido ou deveria ser protegido. Claro que tudo aponta para os produtos e isso implica que estaríamos falando de coisas que, claro, não podem vir da China, como infelizmente se torna cada dia mais frequente. Mas, além das produções, fala-se também na pureza dos procedimentos. E quando falamos de pureza e origem certificada, surgem novos atores e toda a sua parafernália de dispositivos de depuração, sempre prontos a dividir o mundo entre aqueles que cumprem as normativas e aqueles que devem ser excluídos devido à sua natureza bastarda, híbrida ou turva.

Tudo indica, porém, que aquilo que protegemos ameaça o que há de mais valioso. O que tem valor (administrativo) destrói o que é (antropologicamente) valioso. É um absurdo que, para proteger a produção artesanal, tenhamos de destruir o estilo de vida artesanal. É incrível que, para impulsionar a criatividade, tenhamos de destruir o seu modo de existência. É como se a condição de artesão e criativo fosse incompatível. E talvez seja, porque se você é criativo você vive do resultado e para o resultado: você vive para os resultados. É por isso que um criativo mantém os procedimentos em segredo, vangloria-se de conquistas e se insere no mercado.

Não existe criatividade situada. A criatividade local pode ser um estorvo se exigir atenção além do folclórico, do simples e do pitoresco. É possível ser criativo independentemente do lugar onde se intervenha. Suas produções são validadas no mercado: o mercado é a instância suprema. O mercado diz o quão bons são os seus designs e o quanto a sua criatividade é apreciada. Temos todo o direito de questionar a própria noção de criatividade. E certamente a necessidade.

Se a criatividade não estiver situada, precisamos de outra palavra para nomear este vínculo entre o próprio e o apropriado. Se a criatividade nada tem a ver com a utilização de materiais, saberes e práticas locais, se é uma função individual, localizada numa cabeça e não num território e organizada em torno de um mercado e não para uma comunidade, então a criatividade é outro cavaleiro do apocalipse.

Deveríamos falar sobre inventividade local, ou algo semelhante. A forma como o nomeamos é menos importante do que reconhecer a necessidade de dar vida com palavras a outro modo de existência que não aquele proposto pela maquinaria abstrata da criatividade. E antes de implantar uma inteligência dos limites, das essências ou das autenticidades (espaços com denominação de origem), dispomos de outra alternativa que consiste em imaginar formas de proteger o que é próprio, o que é nosso ou o que nos é próximo, privilegiando tudo o que mostra certa capacidade de resistir à escalabilidade ou, em outros termos, de ser capturado pelo mercado.

Falar de artesanatos obrigou-nos a falar de um ecossistema sutil e de práticas que, no seu conjunto, sustentavam um modo de vida. Uma modo de nos relacionarmos tecida com fios imperceptíveis, dita através de sussurros e mobilizada com gestos efêmeros. Tudo muito frágil, mesmo que fosse secular. Um mundo que só percebemos como importante quando está ameaçado e próximo do seu desaparecimento. São estas circunstâncias que nos ensinam a valorizar a nossa dependência do comum ou, em outras palavras, dessa trama singular construída entre todos que fazem uma infraestrutura dos cuidados sem esquecer os resultados.

Patrimônio, tradicional, comunitário

A frequente associação entre os adjetivos patrimonial e tradicional, antigo e, muitas vezes, ultrapassado, não é correta. As práticas populares tiveram origem associada a usos, materiais ou formas de organização geralmente inovadoras. Não são apenas a resposta a uma necessidade, mas também a adaptação da resposta às condições locais de produção. São soluções situadas, que nascem da interação entre quem as desenha e quem as utiliza.

São propostas coproduzidas que exigem a capacidade de escuta, mas também uma inteligência do lugar e dos seus habitantes capaz de oferecer soluções, talvez provisórias, mas que têm de ser verdadeiramente funcionais. Eles se enquadram perfeitamente na nossa visão atual do que chamamos de inovação. Eles não nasceram velhos, mas vanguardistas. Muito provavelmente eram as ideias de bricoleurs, mas conseguiram reunir materiais, práticas ou recursos de maneiras inesperadas e talvez brilhantes. Poderíamos ver estes ofícios como uma manifestação de novas tecnologias.

Algumas práticas dessa época, tradicionais na sua forma de produção, podem ser muito inovadoras na nossa. Aquilo que ali é feito de forma redundante poderia ter uma solução radical em outro lugar. Falamos, por exemplo, de modos de utilizar a água, de fertilizar a terra, de gerir sementes, de conservar alimentos ou de hibridizar plantas, bem como da utilização de diferentes materiais para fazer as mesmas coisas ou de formas particulares de resolver conflitos, educar crianças, cuidar dos bebês, abordar enfermidades, tratar a diversidade ou promover o convívio. Visto desta forma, o que para muitos poderia parecer antigo, seria revelado a outros como inovador.

Os mestres artesãos não seriam responsáveis pela transmissão de saberes, outrora inovadores, entre gerações. Agora queremos explorar a possibilidade de serem atores de vanguarda, pessoas capazes de responder às necessidades futuras. Para alguns, como sugerimos no parágrafo anterior, eles já os são. E isso é inspirador porque nos remete a uma relação com a tradição que não é nostálgica, pitoresca ou conservadora. Poderíamos imaginar cenários onde fossem os atores locais que fizessem evoluir as demandas locais sem ignorar as demandas externas, para que ambas se encontrassem num espaço que é produtivo e também experimental. O que impede os artesãos de hoje de se comportarem como os artesãos de então e de utilizarem o que têm à sua disposição, montando as coisas de forma a obter um resultado satisfatório?

Vamos parar neste ponto. Muitas vezes vi workshops em que os mestres se esforçavam para me mostrar a qualidade, a beleza ou a originalidade dos seus produtos. Mas meu interesse estava mais nos procedimentos do que nos resultados. Fiquei mais atraído pela agulha ou pela máquina com que costuravam do que pela bolsa que me foi mostrada. Noutra ocasião, ao visitar uma oficina de xilogravura, mostraram-me cordéis primorosamente acabados, mas o meu interesse estava direcionado para os temas que abordavam e para a maquinaria de gravura. Em todos os casos verifiquei que as máquinas vieram do exterior e que na sua época eram objetos vanguardistas de desejo.

Assim vamos encerrar um argumento fácil de resumir: queríamos mostrar a ligação entre o patrimônio popular e as novas tecnologias. Originalmente, pelo menos, os produtos que hoje são vendidos como artesanato estavam duplamente ligados a soluções vanguardistas: primeiro, porque eram montagens inovadoras e, segundo, porque incorporavam saberes externos de ponta. Poderíamos ter ampliado a casuística, mas não achamos necessário esclarecer a nossa posição: mostrar o artesão como epítome do tradicional é uma posição tão legítima quanto vinculá-lo ao mais inovador.

Vamos levar esse argumento ao limite. Podemos imaginar este coletivo genericamente associado à categoria das indústrias criativas como o conjunto de atores a quem poderíamos confiar o futuro produtivo do território de acordo com os valores comunitários que souberam gerir com tanta sabedoria no passado. Nada nos impede de ensaiar um conjunto com o melhor dos dois mundos. Nada nos impede de desejar um mundo menos individualista, competitivo, esbanjador, financeirizado ou desigual, e que seja compatível com o uso de novas tecnologias ou com o design mais inovador. Nada nos impede de fazê-lo porque foi assim que agiram aqueles que criaram os artesanatos que hoje são vendidos como objetos tradicionais, idiossincráticos e típicos. Objetos que são vendidos aos turistas e que, consequentemente, mudaram o seu setor produtivo, pois começaram como soluções criativas para problemas locais e terminaram como propostas decorativas para satisfazer os desejos consumistas.

O seu alojamento atual constitui uma dupla traição à sua origem situada, comunitária e inovadora, pois agora serve para sustentar o mundo do supérfluo, do consumismo e do turistificado. Chamar tudo isto de patrimônio é uma banalização interessada de um mundo que está mesmo perto de desaparecer, seja porque os turistas não vêm ou porque se cansam de comprar coisas que já têm. A frivolidade, a criatividade e a curiosidade são qualidades que movem o mundo e merecem ser protegidas, mas devemos estar atentos a qualquer coisa que ameace a convivência, seja porque exagera a importância da originalidade ou da rentabilidade, seja porque presta culto desmensurado ao tradicional e canônico.

Criar mundos, dar existência

Voltemos à criatividade entendida como maneira de ativar a inteligência coletiva orientada para a busca de respostas práticas. Até meados do século XX, criar e cuidar, ambos derivados da palavra latina creare, tinham significados intercambiáveis, embora a palavra criar estivesse sempre associada ao que só Deus poderia fazer, enquanto criar era algo que estava ao alcance de todos os humanos.. A criatividade, em todo caso, era principalmente uma qualidade dos cientistas e um termo que mal saiu do mundo acadêmico antes da década de 1980. Desde o final do século XX, a condição da produção original tem sido enfatizada em detrimento da produção cabal. Criar, nesse sentido, é típico de pessoas extraordinárias, enquanto cuidar é típico de pessoas comuns.

Cuidar algo é acompanhar a existência de coisas que de alguma forma infraestruturado o cuidado ou, em outras palavras, dão existência a coisas funcionais para necessidades coletivas. Uma prática artesanal sobrevive quando se instala e se entrelaça com as restantes práticas que juntas constituem um mundo habitável, porque é (auto)sustentável. Não há maneira de falar sobre esses mundos sem que a noção de território apareça onipresente e com ela a de cultura local e práticas situadas.

Não importa como o expressemos, a comunidade que se constitui através de ritos, protocolos, normas e histórias sempre fica atrás, mais ou menos invisível. Certamente os objetos que criaram, assim como as técnicas e ferramentas com as quais foram criados, não são pouca coisa. São as respostas que encontraram para suas necessidades. São as soluções que garantem a vida em comum. E assim, para além de propostas funcionais, são também expressão do estilo de vida que autorizam ou promovem. Marcam os limites do mundo que criam, cuidam também uma multiplicidade de interações possíveis. Os objetos criados e as técnicas criadas têm muita política.

Boas respostas são importantes e, até pouco tempo atrás, eram preferíveis às originais. Não temos nada contra a originalidade, excepto quando ela é usada como desculpa para justificar o segredo, para estimular a competição ou para legitimar a desigualdade. Antepor um valor a outros possíveis é uma decisão com muitas implicações. A criatividade no sentido de originalidade é o cavaleiro laranja do apocalipse.

 

Veja em: https://outraspalavras.net/poeticas/o-elogio-do-artesanato/

 

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