Clipping

O ataque de Javier Milei contra as conquistas populares

O libertário lidera o quarto ensaio da intentona reacionária iniciada por Rafael Videla, retomada por Carlos Menem e recriada por Mauricio Macri

Por: Claudio Katz

Javier Milei está organizando um ataque furioso contra as conquistas populares. Pretende instaurar um modelo neoliberal semelhante ao que foi imposto durante décadas no Chile, Peru ou Colômbia. Tenta alterar as relações de força que limitam o despotismo dos capitalistas, submetendo os sindicatos, enfraquecendo os movimentos sociais e aterrorizando as organizações democráticas. Procura introduzir uma hegemonia duradoura dos poderosos.

O libertário lidera o quarto ensaio da intentona reacionária iniciada por Rafael Videla, retomada por Carlos Menem e recriada por Mauricio Macri. Tem muitos parentescos e diferenças com essa trajetória.

Começa com um apoio eleitoral significativo. Ganhou por 11 pontos no segundo turno, venceu em 21 províncias, quase empatou no reduto peronista de Buenos Aires e repintou o mapa nacional de roxo. Conseguiu estes números com um pequeno número de votos em branco. Essa contundência refletiu-se no reconhecimento antecipado da vitória por Sergio Massa. Mais uma vez, as previsões que apontavam para uma eleição renhida falharam.

A convergência com Mauricio Macri permitiu esta vitória esmagadora. O libertário manteve o apoio de seus seguidores e somou o grosso da direita convencional. A neutralidade promovida pela UCR e pela Coalizão Cívica não foi ouvida e o peronismo acrescentou pouquíssimos votos ao parco volume de suas últimas votações.

As eleições repetiram o que aconteceu recentemente no Equador, onde a vitória inicial da centro-esquerda no primeiro turno foi revertida pela unificação da direita no segundo.

Duas expectativas

Javier Milei tenta forjar uma força de extrema direita para sustentar sua agressão contra os trabalhadores. E 30% de eleitores fiéis são a base dessa construção. É um pilar diferenciado dos 26% que o PRO proporcionou à sua presidência.

As explicações mais comuns para o primeiro contingente destacam os ingredientes emocionais. Destacam o ódio, a falta de politização e o comportamento irracional que prevalecem neste setor. Estas características estão muito presentes e em sintonia com a liderança excêntrica do próximo presidente. Com Javier Milei, venceu a pior das opções oferecidas por um sistema político-social baseado na tirania dos poderosos.

Mas a avaliação da base eleitoral de Javier Milei em termos de mero fastio e de voto de protesto impede o registro das motivações deste apoio. O libertário transformou “a casta política” no bode expiatório de todas as desgraças do país. Com essa campanha, obteve uma atração transversal de eleitores e uma simpatia especial junto aos jovens empobrecidos

Utilizou esta bandeira para esmagar Sergio Massa, depois de ter sofrido uma derrota no debate presidencial. Essa derrota, paradoxalmente, deu-lhe força, porque seu adversário confirmou a imagem rejeitada de um político profissional ardiloso, que concentra todas as baixezas da “casta”.

Javier Milei canalizou este repúdio porque procede de um meio diferente. É um outsider instalado pelos meios de comunicação para popularizar a agenda da direita. Difunde uma mensagem ultraliberal com a embalagem pouco habitual do anarcocapitalismo estadunidense. Os delírios dessa corrente incluem apelos bíblicos e mensagens apocalípticas de purificação. Nessa visão tresloucada, inpiram-se os apelos à compra e venda de armas, a criação de um mercado de órgãos humanos e a equiperação do casamento igualitário como um mal-estar semelhante ao causado pelos piolhos.

Em vez de provocar a rejeição esperada dos eleitores, estas extravagâncias garantiram a imagem de Javier Milei como um personagem fora da “casta”. Seu discurso associou-se ao ressurgimento do slogan “que se vayan todos”. Esta exigência reapareceu com o mesmo tom anti-institucional de 2001, mas com um conteúdo oposto a essa revolta. Em vez de impulsionar um protesto contra os poderosos, foi manipulada para preparar o ataque às conquistas sociais e democráticas.

Os seguidores do libertário esperam uma depuração drástica do sistema político. Esta é a ilusão que Javier Milei começou a escavar, com suas confabulações para repartir os cargos no novo governo.

A segunda expectativa que explica o êxito de Javier Milei foi sua promessa de erradicar a inflação por meio da dolarização da economia. O custo elevado é uma desgraça intolerável que a população anseia por extirpar por todos os meios. O cansaço com um flagelo que perturba a vida cotidiana levou à adesão às soluções mágicoexpeditivas postuladas pelo libertário.

Javier Milei não apresentou um exemplo sequer da viabilidade de sua proposta, mas introduziu a ilusão de um funcionamento proveitoso da economia dolarizada. Retomou o mito da convertibilidade menemista, omitindo o desemprego e a regressão produtiva que se seguiram a uma estabilização monetária baseada no endividamento e nas privatizações. Recriou também a ilusão da potência argentina do final do século XIX, ocultando que essa prosperidade agroexportadora só enriqueceu a oligarquia, reforçando o perfil subdesenvolvido do país.

O libertário sempre apresentou seus paraísos imaginários como corolários de um duro ajuste. Mas seus eleitores pressupõem que a “casta” (e não eles) suportará os custos deste sacrifício. Esse devaneio será demolido com os sofrimentos que o novo presidente impulsiona.

Presidencialismo autoritário

Javier Milei anseia por um regime político baseado no predomínio fulminante do executivo. Não pretende anular o Congresso, nem erradicar o Poder Judiciário, mas aspira a neutralizar a centralidade de ambos os organismos. Em várias ocasiões, deu a entender sua intenção de recorrer a um plebiscito para contrapor o bloqueio de suas iniciativas.

O libertário estreará com um pequeno pelotão de legisladores e sem ligações sólidas com os tribunais. Sua meta de presidencialismo autoritário não está à vista, mas tem um plano para atingir um objetivo semelhante à trajetória de Fujimori.

Javier Milei tentará forjar sua própria base político-social com recursos públicos. Tentará transformar o conglomerado disperso de personagens que constitui La Libertad Avanza num aparato de peso territorial. Procurará também complementar essa construção com uma rede de pactos mais sólidos do que as alianças improvisadas com seu espectro heterogêneo de parceiros.

A principal aliança que articulou inicialmente foi com a direita militarista da vice-presidente Villarruel. Este acordo trouxe-lhe o apoio minoritário dos nostálgicos da ditadura e uma grande simpatia dos poderosos, que aprovam as bases repressivas do próximo ajuste. O atropelo que move o libertário exige gendarmes, paus, balas e detidos.

Villarruel tomou partido de Videla, pondo fim às ambiguidades do macrismo. Pretende transformar os genocidas em vítimas, através de um negacionismo reabastecido que recria os piores fantasmas do passado. Seu revisionismo atroz fornece justificações para a criminalização do protesto social. Macri tentou, sem sucesso, esse movimento, identificando a resistência popular com os privilégios dos corruptos.

Javier Milei repetirá essa fórmula, demonizando aqueles que “se opõem à mudança”. Procurará silenciar as vozes dissidentes com proibições e depurações culturais. O anunciado fechamento da Telam, Radio Nacional e TV Pública antecipa esta investida. Villarruel aposta no desmantelamento de todas as conquistas democráticas dos últimos quarenta anos, começando pela anulação dos julgamentos dos genocidas.

Um segundo acordo político entre o libertário e Mauricio Macri visava somar votos no segundo turno. As leituras desse acordo ressaltaram a habilidade do engenheiro para lidar com Javier Milei, moldando o estilo, o tom e a estética do candidato às pautas definidas pelas equipes do PRO.

Mas os acontecimentos posteriores confirmam que o novo presidente não é um personagem manipulável. Ele tem um plano próprio que já provocou fortes tensões com Mauricio Macri. As previsões de que o próximo governo será um segundo turno do Cambiemos são prematuras. As disputas pelo gabinete e pela liderança do bloco parlamentar contrapõem o perfil convencional de direita patrocinado por Mauricio Macri com a aventura plebiscitária que promove o novo presidente

Javier Milei planeja uma terceira aliança com a direita peronista. Já sondou Pichetto, Randazzo, Toma e Scioli para cargos de alta responsabilidade, reforçando as negociações pré-eleitorais com Barrionuevo. Com o mesmo propósito, designou funcionários de Schiaretti para a ANSES [Administração Nacional da Seguridade Social] e para os Transportes.

Esta tentativa visa tirar proveito de uma crise do peronismo, que é estritamente proporcional ao triunfo de Javier Milei. Se o libertário tivesse ganhado por pouco, Sergio Massa teria podido preservar a liderança que tinha conquistado no PJ, tornando competitiva a candidatura de um oficialismo em desagregação. Mas a derrota esmagadora do justicialismo reabriu todas as feridas desse partido. Javier Milei atrai o setor antikirchnerista, que amadureceu um discurso que enaltece o capitalismo e é hostil aos desamparados.

A presidência do libertário traz também um inesperado troféu internacional ao trumpismo. Buenos Aires se tornará um local de presença frequente dos expoentes da onda marrom e já circulam convites para receber Trump, Bolsonaro, Orban, Kast e Abascal. A cerimônia de tomada de posse será uma cúpula da extrema direita mundial. As tensões geradas por este alinhamento na região vieram à tona e os elogios de Bukele contrastam com as palavras duras de Maduro e Petro.

Javier Milei aposta em concatenar essa rede internacional com a construção de seu próprio espaço no país. Ao contrário de seus pares, não conta com um partido de peso nem com forças religiosas e militares que o apoiem. Além disso, sua própria cosmovisão ideológica, baseada na escola austríaca de economia, no anarcocapitalismo e no paleolibertarismo de Rothbard, carece de nexos com as tradições da direita argentina. Sua promoção ativa de ligações internacionais visa contrapor esta situação.

 

Saiba mais em: https://katz.lahaine.org/b2-img/OataquedeJavierMileicontraasconquistaspo.pdf

 

Comente aqui