“Quando passava um avião, minha avó ficava com medo e nos dizia: ‘Onde vamos nos esconder? Veja onde há um buraco grande porque aqueles que vão nos queimar estão chegando.'”
Por: Andrea Díaz Cardona. Enviada especial a La Chorrera, Colômbia| Créditos da foto: BBC MUNDO. Durante mais de 30 anos, a indústria da borracha escravizou povos indígenas da Amazônia até serem quase dizimados
O que a professora Odilia Mayoritoma relata é uma espécie de milagre.
Sua avó foi uma das poucas pessoas que conseguiram sobreviver ao que é conhecido como o “holocausto da borracha”: um período de mais de 30 anos, iniciado em 1879, em que a indústria da borracha escravizou povos indígenas da Amazônia até serem quase dizimados.
Os números não são muito claros. Alguns estimam em 100 mil e outros em 50 mil a população nativa naquela época. O que se sabe é que hoje sobrevivem menos de 4 mil.
Foi um período sombrio, ignorado por muitos, em que uma árvore, um empresário, uma casa, um sequestro, uma expedição e um roubo determinaram o destino da Amazônia colombo-peruana e de seu povo.
A BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC, viajou para La Chorrera, na Colômbia, para entender a história e saber como os povos que habitam hoje essa região conseguiram sobreviver.
A árvore
“Em toda esta floresta não há um tronco saudável. Eles estão cheios de nós, mas se você avançar dois, três ou quatro quilômetros, lá você vê”, diz o cacique Calixto Kuiru, enquanto caminha pela selva perto de sua maloca, localizada na vila de Puerto Milán.
Ele se refere às seringueiras que cresceram selvagens, durante séculos, na Amazônia.
Elas também são conhecidas como “árvores que choram” porque quando um corte linear é feito em seu tronco, elas soltam gotas de um líquido branco leitoso.
Os povos indígenas foram os primeiros a descobrir esse líquido e o utilizaram para fazer objetos como bolas e bastões.
Mas eles tinham um problema. O material era muito volátil: com o calor derretia e com o frio endurecia.
A solução só apareceu em 1839 quando, nos Estados Unidos, foi descoberta a vulcanização; um processo químico que transforma a borracha em um material resistente às condições ambientais.
Décadas depois, surgiram os pneus e com eles bicicletas e carros. Foi assim que o líquido leitoso se tornou o tesouro da economia no final do século 19.
E por isso, também, os troncos das árvores estão cobertos de cicatrizes em meio à exploração excessiva.
O empresário
Julio César Arana, empresário e político peruano, assumiu o negócio de exportar borracha da Amazônia e construiu uma espécie de monopólio no coração da selva.
Era como uma grande fábrica de distribuição. A borracha colhida das árvores era transportada pelos rios e de lá saía pelos portos da Amazônia: Iquitos no Peru e Manaus no Brasil, a caminho da Europa.
Arana conseguiu sua façanha, principalmente, por três motivos. O primeiro é que se apropriou do Putumayo, uma parte da Amazônia localizada entre a Colômbia e o Peru, que na época não pertencia oficialmente a nenhum dos dois países.
A segunda é que conseguiu capital inglês para financiar a operação. Na Inglaterra, não apenas lhe deram dinheiro, mas também forneceram mão de obra de suas colônias. Enviaram trabalhadores de Barbados, país insular da América Central, para servirem como capatazes.
E a terceira e mais macabra, é que ele estabeleceu um regime de terror para dobrar os indígenas e forçá-los a serem seus escravos.
O negócio de Arana dependia totalmente do trabalho indígena, porque as seringueiras estão espalhadas pela floresta, e eram eles que conseguiam atravessá-la sem se perder e sem morrer pelas condições climáticas ou pelos perigos representados por algumas plantas e animais.
Casa
A Casa Arana foi um dos principais centros de coleta de borracha e estava localizada às margens do rio Igará Paraná em La Chorrera.
“Essa era a praça onde chegavam os indígenas de várias partes da floresta, no dia em que a carga era pesada, dia em que também era embarcada”, conta Edwin Teteye, indígena Bora.
Nessa mesma praça, diz Edwin, ocorreram eventos atrozes. “Quando os indígenas não atingiam a quantidade exigida de borracha, eram açoitados. Outros eram pendurados, enforcados e chicoteados para servir de exemplo à população.”
Foi um regime que funcionou graças a uma prática conhecida como “endividamento”, que a indústria da borracha estabeleceu pela primeira vez na Amazônia.
Era uma espécie de troca onde diziam aos indígenas algo como: “Te dou um facão e você me traz três quilos de borracha”.
Funcionava porque ferramentas como o facão eram muito valorizadas na região.
“Os indígenas não tinham acesso a elas e, quando conseguiam, eram muito úteis para seus cultivos e para o dia a dia na floresta”, explica Camilo Gómez, doutor em Antropologia pela McGill University (Canadá).
O problema é que quem estabelecia o valor da dívida eram os próprios capatazes.
“Eles inflavam tanto os preços, que um indígena poderia levar anos para pagar por um único facão ou acabar deixando a dívida para seu filho”, acrescenta.
O sequestro e a expedição
Em 1907, Walter Hardenburg, um engenheiro americano que trabalhava na construção de ferrovias, chegou ao Putumayo.
Arana e sua gente decidiram sequestrá-lo porque temiam que fosse um infiltrado.
Estavam errados, mas não puderam impedir que Hardenburg se tornasse a primeira testemunha a documentar a crueldade excessiva que imperava ali. Quando conseguiu sair, ele decidiu contar ao mundo.
Hardenburg publicou vários artigos em uma revista londrina chamada Truth (Verdade, em inglês) e em 1912 publicou um livro intitulado The Devil’s Paradise (“O Paraíso do Diabo”, em tradução livre).
CRÉDITO, ABEBOOKS. Seus relatos são explícitos e arrepiantes:
“Os pacíficos indígenas de Putumayo são obrigados a trabalhar dia e noite na extração de borracha, sem a menor remuneração, exceto os alimentos necessários para se manterem vivos.
Eles são despojados de suas colheitas, suas esposas e filhos para satisfazer a voracidade, luxúria e ganância desta empresa e seus funcionários, que vivem de sua comida e estupram suas mulheres.
São espancados desumanamente até que seus ossos ficam expostos e suas peles cobertas por grandes feridas em carne viva. Não recebem tratamento médico, e são deixados para morrer, comidos por vermes, quando servem de comida para os cães dos chefes.
São castrados e mutilados, e suas orelhas, dedos, braços e pernas são cortados. São torturados com fogo e água, e amarrados, crucificados de cabeça para baixo.”
O escândalo forçou o governo britânico a tomar medidas.
Decidiram enviar o diplomata Roger Casement à Amazônia. Em 1910, ele viajou com um grupo de pessoas em uma expedição que durou três meses.
Ao seu retorno, Casement entregou um relatório que confirmou as alegações de Hardenburg:
“O peso acumulado das provas que reunimos de posto em posto, e a condição da população indígena, como tivemos a oportunidade de observar, não nos deixaram dúvidas de que as piores acusações contra os agentes da empresa eram verdadeiras.”
O mais escandaloso é que o que estava acontecendo na Amazônia não era novo.
“Já tinha acontecido em vários lugares, por exemplo na África, no Congo. Então foi ver que isso continuava acontecendo que gerou a indignação das pessoas”, explica Gómez.
Mas não foi suficiente. A situação não mudou.
“A guerra começou nos Bálcãs [região sudeste da Europa] em 1912 e toda a atenção do povo britânico e do mundo se voltou para lá. Então começou a Primeira Guerra Mundial. No fim, aquela indignação na Inglaterra e em Londres não serviu para nada porque a borracha continuou a ser extraída do Putumayo”, acrescenta.
O roubo
Em paralaelo ao diplomata Roger Casement, outro inglês, sem intenção, seria decisivo nessa história.
Seu nome é Henry Wickhman. Ele viajou para a América Latina em busca de fortuna. Sem dinheiro e sem nada a perder, aventurou-se a plantar seringueiras, mas as condições da floresta o derrotaram e ele não conseguiu habitá-la.
Ele então decidiu exportar as sementes.
Wickham roubou 70 mil sementes de seringueira da Amazônia e conseguiu levá-las para a Inglaterra, dando origem a um dos primeiros casos do que se conhece como biopirataria.
Embora tenham se passado muitos anos até que as árvores produzissem a borracha necessária, até 1930, as colônias asiáticas haviam se tornado as maiores produtoras das “árvores que choram”.
Transportar a borracha para a Europa deixou de ser lucrativo.
Embora Julio César Arana não pudesse mais competir em preço, ele e sua gente sentiam que eram donos da terra e deslocaram para o Peru muitos dos indígenas que restavam em La Chorrera.
A avó da professora Odilia vivenciou isso. “Minha avó me dizia que a levaram criança para o Peru e que viviam no meio do algodão. Que tinham que trabalhar na roça para o dono da terra, que havia muitos porcos e galinhas.”
Enquanto isso, Arana e sua gente se encarregaram de acabar com tudo o que podiam na Colômbia.
“Mandaram arrancar todas as sementes e todas as frutas aqui no território, para quê? Eles diziam: ‘Bem, para que eles não queiram voltar’. Ou seja, eram ruins e bastante ruins porque queriam nos deixar sem nada e deixar o território desabitado porque era a fazenda deles”, conta a líder Fany Kuiru, enquanto esclarece:
“Eu não estava aqui naquela época, mas meus avôs e avós estavam.”
Os antepassados de Fany e daqueles que hoje habitam La Chorrera também viveram a única guerra que a Colômbia teve com outro país.
Foi um conflito que durou um ano. Peru e Colômbia disputaram a soberania do Putumayo que terminou com o estabelecimento das fronteiras que conhecemos hoje.
Os sobreviventes
Paradoxalmente, a guerra também representou uma oportunidade de fuga para os indígenas escravizados no Peru. Com seus patrões distraídos com o conflito, eles tiveram a oportunidade de planejar sua fuga.
“Minha avó tinha 7 anos e fugiu entre pessoas que não eram de sua família direta. Andaram muito, atravessaram o Putumayo. Muitos morreram no caminho por picada de cobra ou malária”, conta a professora Odilia.
Quando a guerra acabou, alguns indígenas conseguiram retornar ao seu território e outros permaneceram no Peru.
“Em outras palavras, nossa família também está no Peru. Os que conseguiram retornar ao território começaram a reconstruir”, diz Fany.
Mas era uma reconstrução que carregava um passado sombrio.
“O processo de etnocídio, que chamamos, é um processo muito forte. Nossos ancestrais também carregavam muita energia, muito manejo da natureza, então toda essa energia também ficou concentrada neste lugar. E realmente pode-se dizer que era uma referência, como um lugar quase que amaldiçoado porque havia muita dor, havia um imaginário muito negativo”, explica Edwin.
Foi um período tão doloroso que por muito tempo os povos indígenas optaram pelo silêncio.
“Minha avó costumava dizer: ‘Essa história é muito triste e é bom não lembrar porque é insuportável lembrar disso'”, diz Odilia.
Edwin me explica que “muitas pessoas mais velhas em algum momento disseram: ‘É melhor não destampar estes cestos, algo que já está enterrado, que está tranquilo'”.
Mas as novas gerações, como a sua, começaram um trabalho para recuperar essa memória.
“No processo de organização, queríamos, mais uma vez, que nossos jovens conhecessem nossa história, que a Colômbia conhecesse a história, que o mundo conhecesse o que aconteceu aqui nesta região, por isso foram feitas várias ações para dar visibilidade. Também perante o governo colombiano foi solicitado que esta casa fosse considerada como um bem cultural da Nação”.
Passaram-se muitos anos até que os povos originários pudessem recuperar legalmente seu território.
Quando a guerra terminou, Julio Cesar Arana vendeu a terra ao governo colombiano por US$ 200 mil na época.
E o governo colombiano decidiu entregar a gestão dessas terras a uma instituição financeira.
Fany estava presente. “Em 1985, um dia a Caixa Agrária [instituição financeira estatal colombiana] chegou em um pequeno avião a La Chorrera e então alguns engenheiros, arquitetos e o diretor do projeto chegaram para dizer que isso era deles e que eles tinham vindo para construir um centro de pesquisa nas ruínas da Casa Arana.”
Os povos amazônicos se opuseram. Eles temiam que sua cultura fosse ameaçada novamente e empreenderam um longo processo.
“Foram cerca de cinco anos até que finalmente conseguimos que o presidente Virgilio Barco, em 1988, nos intitulasse essas terras como reserva indígena para os povos que vivem aqui. Ou seja, recuperamos nosso território”, explica Fany.
O presente
Hoje a reserva indígena Predio Putumayo compreende quase 6 milhões de hectares localizados no coração da Amazônia colombiana.
“Há a presença de vários povos, mas principalmente os Uitoto, Bora, Muinane e Okaina, embora estes tenham perdido completamente sua língua porque a última pessoa que a falava morreu”, conta Gómez.
E se todas as pessoas em La Chorrera concordam em algo, é que esses povos são caracterizados por seu poder de transformação. Os Uitoto, Okaina, Muinane e Bora se uniram para resistir, transformar e reconstruir seu território.
Um símbolo disso é o lugar que foi a Casa Arana. Hoje está bem ali, às margens do Rio Igara Paraná, e embora mantenha parte da estrutura original, tem outra finalidade.
Chama-se Casa do Saber e foi transformada em escola secundária que atende 840 jovens indígenas de toda a região do Putumayo. Oferece também a modalidade de internato para quem mora em comunidades distantes do centro povoado.
Esses jovens recebem uma educação que busca manter a tradição indígena enquanto aprendem sobre a cultura não indígena. Na escola, por exemplo, há aulas de Uitoto e Bora, mas também inglês e português.
A professora Odilia é uma das responsáveis pelo ensino de línguas indígenas e criou uma peça de teatro com seus alunos sobre a história de sobrevivência de sua avó.
“Na escola, tentamos manter a história viva, primeiro reconhecer quem somos para manter nossa identidade, saber de onde viemos e para onde vamos. Depois, com essa intenção, trabalhamos com os alunos”, afirma.
“Tentamos passar para eles o que sabemos de nossos ancestrais.”
De fato, toda vez que os estudantes da Casa do Saber atravessam a escola de uma ponta a outra, passam diante de um imenso mural, pintado pelo artista uitoto Rember Yaguarcan.
“Esse mural chama-se O choro dos filhos do tabaco, da coca e da mandioca doce. É feito em três fases, a primeira [esquerda] é o tempo inicial, as malocas e a natureza. Depois temos um palco triste [centro], o tempo do genocídio da borracha onde se refletem todas as situações vividas e o terceiro [direita] é a projeção futura, a luta organizacional”, explica Teteye.
Essa obra de arte lembra aos mais jovens que seus povos seguem vivos graças ao fato de que, há um século, seus ancestrais resistiram e sobreviveram ao doloroso “holocausto da borracha”.
Veja em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-62770837
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